Intervenção de Miguel Tiago na Assembleia de República

A política de direita desenvolve um dos mais brutais ataques à cultura

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Declaração política de censura ao Governo por não defender uma política cultural e de apoio às artes

Sr.ª Presidente,
Srs. Deputados:
O Governo PSD/CDS está a aplicar uma política de desvalorização da cultura e das artes, através de um garrote financeiro às estruturas de criação, aos grupos de teatro, às companhias de dança, aos artistas, aos realizadores, cancelando, à margem da lei, a realização de concursos para o apoio às artes.
É a imposição de uma outra forma de censura, de outros modos e por outras vias — é certo! —, mas de deliberada censura sobre a criação cultural e artística e, assim, também sobre a
fruição.
É grave que o Governo não cumpra a lei, mas não é estranho. É, aliás, um sinal da sua natureza de classe, da natureza política deste Governo, que entende a cultura apenas como uma mercadoria e não como uma expressão humana e um direito de todos.
É uma opção política pela generalização da mediocridade, pela aculturação e colonização cultural, pela massificação de uma cultura orientada exclusivamente para o lucro e para a instrumentalização da consciência do indivíduo e do coletivo, a política da monocultura imposta pela grande distribuição, uma espécie de prisão intelectual do entretenimento, onde a livre expressão artística é subjugada ao investimento dos grandes grupos de produção e distribuição.
Milhares de cidadãos, rapazes e raparigas, homens e mulheres, participam democraticamente em processos criativos, individuais ou coletivos, cooperativos, empresariais ou associativos, fabricando o tecido cultural que mantém viva a identidade nacional e que a renova a cada dia que passa, através das mais diversas formas de expressão: o teatro, o cinema, a pintura, a escultura, a literatura, a dança, o movimento.
Esses cidadãos, esses grupos de teatro, essas companhias, esses realizadores, independentemente da qualidade e da quantidade das suas produções, só podem continuar a criar se o Governo cumprir a Constituição e garantir os apoios do Estado.
Esses milhares de criadores não têm o apoio dos gigantes cinematográficos, não têm o amparo da grande distribuição livreira nem do monopólio editorial, que vem silenciando quem ousa
escrever diferente, nem têm meios para anunciar as suas peças de teatro nos grandes jornais.
E se é verdade que a não realização dos concursos de apoio às artes e o estrangulamento financeiro, por redução dos apoios a meio de contratos-programa bienais e quadrienais, tal como a não realização dos concursos para o apoio à produção cinematográfica, o desmantelamento da Tobis, a fragilização da DGArtes (Direção-Geral das Artes), o subfinanciamento dos teatros nacionais, se é verdade que tudo isto sacrifica a produção e impede a livre criação artística, não é menos verdade que essas políticas limitam o acesso a esses produtos culturais, por se tornarem inexistentes. Se o Estado não apoia as artes, os portugueses não deixam apenas de poder produzir teatro, dança ou cinema, os portugueses deixam de poder ir ao teatro, à dança e ao cinema. A liberdade de criação das estruturas de produção é, simultaneamente, a liberdade de fruição dos cidadãos.
A limitação dos apoios chega hoje ao cúmulo de se manifestar em cláusulas dos contratos assinados com as companhias, onde se lê que o Governo apenas garante o financiamento do 1.º trimestre. Ora, então não se está mesmo a ver este Governo assinar um contrato-programa com uma grande empresa, digamos, por exemplo, a Lusoponte, e dizer que só assume as responsabilidades por um trimestre?!
Não!… Para esses contratos-programa, o Governo trata sempre de garantir a disponibilidade da verba necessária, mesmo quando esses contratos são ruinosos para os portugueses e para
o Estado. O Governo acaba de disponibilizar, decorrente do pacto de agressão da troica, um fundo de 12 000 milhões de euros para os bancos. Pagará mais de 33 000 milhões de euros em juros por uma intervenção externa.
Estes montantes, para que os possamos quantificar, correspondem ao orçamento de 241 anos de política cultural.
Ou seja, aquilo que o Governo entrega, de mão beijada, às forças que hoje destroem o nosso País seria o suficiente para duplicar o Orçamento do Estado para a cultura durante 120
anos.
Enquanto se estrangula a produção cultural independente e alternativa e se destrói o serviço público de artes e cultura, garante-se o alargamento do mercado do entretenimento, a total
mercantilização do acesso e da fruição culturais, deixando para as elites o acesso aos bens e à produção cultural de qualidade e para as massas a cultura descartável.
Não é aceitável que este Governo cancele a realização dos concursos para apoios anuais e pontuais às artes, tal como não podemos aceitar o fim do apoio à produção cinematográfica.
Não é aceitável que este Governo se demita das suas responsabilidades constitucionais, mas é
compreensível, dado o comportamento das forças que o compõem — PSD e CDS —, que entendem que o Estado existe para defender os grandes patrões, os grandes negócios e não para distribuir a riqueza ou garantir os direitos das populações.
O Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português alerta todos os artistas, criadores, técnicos, atores, autores e intérpretes, realizadores, intelectuais criativos, para a ameaça que a direita lança sobre a democracia. Não deixemos que a censura, agora orçamental mas não menos política do que a do lápis, amordace a voz dos criadores e a cultura do povo.
Não deixemos que o ataque aos nossos direitos e o pacto de agressão da troica se imponham acima da identidade e da liberdade dos portugueses.
Não deixemos que os juros da dívida, o défice orçamental e a economia se tornem nos desígnios e remetamo-los ao plano de instrumentos, de onde nunca deveriam ter saído.
Os desígnios, os desígnios são a elevação da qualidade de vida dos portugueses, dos trabalhadores, a elevação da formação cultural do nosso povo e o aprofundamento da nossa democracia.
Uma política ao serviço do povo, com a economia como instrumento, e não uma política ao serviço da finança, fazendo do povo o instrumento — é neste campo que o PCP se posiciona, é nesta luta que participa e é para esta luta que convoca todos aqueles que veem na cultura e na arte pilares fundamentais da nossa democracia e do projeto de Abril.
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr.ª Deputada Inês de Medeiros,
Bem-vindo seja o PS à defesa da cultura.
Fica-lhe melhor defender a cultura, Sr.ª Deputada, do que defender o Governo de Sócrates, que atacava a cultura todos os dias.
Sr.ª Deputada, tem razão na maior parte da caraterização que faz, aliás, sabe que o PCP acompanha a caraterização dessas políticas de direita e os seus impactos na cultura, mas
não começou a fazer essa caraterização quando o PSD e o CDS foram para o Governo, porque grande parte da política que está agora a ser seguida, e relembro, por exemplo, os cortes nos contratos plurianuais com as estruturas de criação artística, já vinha do anterior Governo.
Estou certo de que a veemência com que a Sr.ª Deputada Inês de Medeiros agora ataca a política da direita não é a mesma com que atacaria a política do Partido Socialista, mas «vale mais tarde do que nunca», Sr.ª Deputada.
Pergunta ao PCP o que podemos fazer para vencer este golpe contra a cultura, para valorizar e defender a cultura. Sr.ª Deputada, o PCP está e esteve, em todas as lutas, ao lado daqueles que entendem a arte e a cultura como elementos fundamentais da nossa democracia; do PS, não tenho a certeza se poderei dizer o mesmo. O PCP esteve ao lado dessas lutas, e estará, e traz as suas propostas à Assembleia da República.
Mas a resposta a esse desafio, sobre o que podemos fazer todos juntos, é muito simples: rejeitar a política de direita que tem vindo a ser imposta ao povo português, deixarmo-nos de falas mansas, da ideia de que, entre aqueles que assinaram o pacto e aqueles que o combatem, há possibilidade de chegarem a entendimentos, porque essa não é a realidade.
Mas, no dia em que sairmos desta Assembleia e formos para junto das greves, das lutas, das manifestações, estar com aqueles que defendem o teatro, que defendem o cinema, que
defendem a cultura e as artes, não só dentro desta Sala mas fora dela, estou certo de que todos juntos conseguiremos vencer esta política.
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr.ª Deputada Catarina Martins,
De facto, da parte do PCP, não há nenhuma dúvida sobre a marca e a opção ideológicas que presidem às opções do Governo, seja na privatização da Tobis, no cancelamento da realização de concursos pontuais e anuais para o ano 2012 ou no constante adiamento dos prazos e critérios para os concursos bienais e quadrienais para 2012, como não há nenhuma dúvida no que toca à opção ideológica de cancelamento dos concursos para o apoio à produção
cinematográfica e a justificação orçamental é um mero pretexto. Aliás, estamos a falar de um orçamento para a cultura que revela bem a insignificância que este Governo lhe atribui.
Portanto, a falta de dinheiro é o pretexto para cumprir a política e não é um instrumento para a cumprir. A opção ideológica deste Governo é a de retirar o Estado da cultura, manter a cultura submissa, única e exclusivamente ao mercado.
Sr.ª Deputada, sobre as considerações que fez no que respeita ao ACTA, como, aliás, já discutimos nesta Câmara, da parte do PCP, conte também com a rejeição dos princípios e dos
moldes desse acordo.
Sr.ª Deputada, resta-me dizer-lhe que o PCP tem uma certeza: o teatro, as artes e a cultura nunca morrerão, porque também são peças de resistência, também são instrumentos de resistência, mas serão sempre mais fortes e mais pojantes quanto maior for a liberdade de criação e de fruição.
É isso que este Governo está a tentar negar, mas nunca matará as artes, a cultura e muito menos o teatro!
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr.ª Deputada Ana Sofia Bettencourt,
De facto, há um mar que nos separa e não é preciso muito para o identificar. Esse «mar» chama-se Constituição da República Portuguesa, que estabelece o papel do Estado no apoio à cultura e na garantia da liberdade de acesso à produção, à criação e à fruição cultural.
A Sr.ª Deputada faz as perguntas, mas depois não dá muita atenção às respostas…
A Sr.ª Deputada está igualmente a confundir cultura com entretenimento e com a indústria dos videojogos.
A cultura de que estamos aqui a falar não é a do entretenimento nem a dos videojogos, as indústrias criativas de que a Sr.ª Deputada veio falar‼
A cultura de que estamos a falar é a das manifestações livres e espontâneas da arte de um povo que, como é óbvio, deve ser apoiada pelo Estado, porque, caso contrário, não terá o apoio das grandes produtoras, das grandes distribuidoras, das grande livreiras e da grande edição.
Mas, Sr.ª Deputada, também há um grande mar que nos separa: quando o PS cortou os apoios aos programas plurianuais, o PSD atacou o governo do Partido Socialista e disse que o
Partido Socialista estava a atacar o apoio às artes. Agora, este Governo aplica um corte de 100% no apoio às artes e a Sr.ª Deputada já vem dizer que ao Estado não compete intervir nas artes.
Também há um mar ideológico que nos separa: a Sr.ª Deputada entende que o Estado deve fazer tudo para que os grandes grupos económicos façam da cultura apenas mais um negócio e, então, aqueles que podem pagar terão acesso à cultura. O PCP entende precisamente o oposto, ou seja, que o Estado deve fazer tudo para que todos, independentemente da sua capacidade económica e da sua posição social, tenham não só capacidade de criar mas também de fruir.

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