Intervenção de Paulo Raimundo, Secretário-Geral do PCP, Audição Pública Sobre o Plano Ferroviário Nacional

O Plano Ferroviário do Governo arrisca-se a ser apenas mais um planozinho, mais uma operação de propaganda, enquanto a ferrovia, na prática, continua a degradar-se

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Não é possível uma ferrovia sem ferroviários.

Isto não é uma frase vazia, ou coisa que é dita para campanhas eleitorais. Esta afirmação reflecte o projecto transformador, revolucionário, do PCP.

E não apenas, e já não seria pouco, porque são os trabalhadores que produzem toda a riqueza. Mas porque concebemos a economia como uma actividade social, planificada, onde o trabalho humano transforma a matéria satisfazendo necessidades humanas e mais gerais, criando riqueza com vista à sua distribuição.

E esta acção que se quer planificada não faz sequer sentido nem é possível sem a participação activa dos trabalhadores.

A ferrovia é um sector onde é particularmente fácil ilustrar como a nossa visão está correcta, é a que corresponde às necessidades e a visão que se impõe.

A visão correcta e que se opõe à opção errada da actual ideologia dominante, neoliberal, assente na concorrência e na propriedade privada dos sectores estratégicos da economia.

Olhemos, como exemplo, para o Plano Ferroviário Nacional e salta desde logo à vista que é um Plano Ferroviário sem ferroviários. Os ferroviários, os conhecedores, os que têm a mão na massa, os que põem literalmente a máquina a carburar, esses, com todo o conhecimento e experiência que têm, ficaram de fora.

Não foram envolvidos, não foram chamados, não foram responsabilizados na elaboração do Plano Ferroviário Nacional. E fica a pergunta, é possível definir um plano para a ferrovia, um plano que se quer que responda às necessidades do País e do povo, deixando de fora os seus maiores conhecedores e até interessados?

É claro que não é possível um Plano Nacional Ferroviário sem ferroviários no seu conteúdo.

Faltam ferroviários, na operação, na manutenção, na fiscalização, no projecto, na construção.

Falta preparar a saída de muitos ferroviários que se aproximam da reforma e têm de conseguir transmitir o seu saber.

Falta formar, motivar e valorizar esses ferroviários, falta e é urgente valorizar as carreiras e aumentar os salários, acabar com o congelamento ou redução salarial que está a degradar as remunerações reais de um vasto conjunto de trabalhadores e técnicos altamente especializados.

Falta uma opção política estruturante também ao nível do financiamento da CP.

O resultado das empresas públicas de transportes é sempre o reflexo do seu modelo de financiamento.

Nos anos em que o Estado as subfinancia, elas têm prejuízos e acumulam dívida, como aconteceu com a CP ao longo de demasiados anos, no momento em que estas são devidamente financiadas obtêm resultados operacionais equilibrados.

As empresas públicas não devem dar prejuízo, mas o seu objectivo não pode ser o de gerar lucros para o Estado. 

O que é exigido às empresas públicas é o de assegurar a prestação de um determinado serviço, contribuir para o desenvolvimento sustentado do País, gerando emprego de qualidade e o desenvolvimento do aparelho produtivo nacional.

Veio a público que a CP obteve um resultado líquido positivo em 2022. Para este resultado não é indiferente o facto de o Governo nesse ano não ter optado pelo subfinanciamento e a implementação de algumas medidas que o PCP defende há muitos anos, nomeadamente a reintegração da EMEF na CP e a adequada compensação financeira à CP.

Este resultado ressalva a justeza e a importância de retirar da CP, tal como propomos há muito, a dívida que o Estado nela parqueou ao longo dos anos, saneando a CP tal como o PS prometeu fazer em 2022 e não fez.

É preciso ainda acabar com a excessiva externalização de serviços.

Trabalhadores que têm uma vida inteira nos comboios, muitas das vezes em situação precária, que garantem serviços indispensáveis e diários, na limpeza, na manutenção e reparação de infraestrutura e comboios, nos Bares (cuja luta daqui saudamos), no projecto, na fiscalização, trabalhadores que há muito que deveriam e têm de passar a ter o seu posto de trabalho na CP.

Estes trabalhadores só assim estão, os serviços só assim o são, em resultado das teses neoliberais, que criam muitas oportunidades de negócio para uns poucos, sempre à custa da precarização e exploração do trabalho de muitos.

Neste Plano Ferroviário Nacional faltam também as empresas dos ferroviários.

Falta a crítica ao processo de fragmentação e pulverização da CP, e o apontar de um caminho para a reconstrução de uma forte e una empresa ferroviária nacional.

Falta um balanço ao desastre da fusão da EP com a REFER, e apontar um caminho para desfazer tal enguiço.

Falta a clara identificação da necessidade de reforçar a engenharia ferroviária, para recuperar capacidade de projecto, de fiscalização, de execução.

Riscar uma linha Lisboa-Porto, ou Chaves-Silves, ou Tavira-Viana do Castelo, demora menos de segundo, basta um pedaço de papel e um lápis.

Mas pensar, projectar, construir, operar e manter uma rede ferroviária, por mais simples que seja, envolve milhares de homens e mulheres.

Aliás, há um desafio que aqui foi feito logo pela intervenção inicial cuja resposta é esclarecedora: olhemos para o Ferrovia 2020. Porque está concluído apenas a 15% quando já passaram mais de 2 anos sobre a data da sua prevista conclusão?

É verdade que uma parte do problema é o enrolanço que o PS foi provocando, para adiar investimentos, permitindo fazer as promessas de obras sem gastar o dinheiro em investimento e antes usando-o para reduzir o défice. Em parte foi isso, é verdade. Mas não foi só isso.

O factor decisivo é que foi retirado ao País, com políticas sucessivas de destruição da capacidade produtiva, a capacidade de concretizar aquele plano naqueles prazos.

Falta a estrutura que foi desmantelada, faltam trabalhadores que entretanto saíram e os seus lugares não foram ocupados.

Faltam ferroviários e faltam por opção. O Plano Ferroviário Nacional que o País tem de  discutir exige também alterações de fundo nas opções mais amplas para o País.

Além de faltarem ferroviários, faltam comboios no Plano Ferroviário Nacional.

Como é possível desligar desta forma a roda e o carril? De que serve electrificar uma linha sem adquirir o material circulante eléctrico para nela circular e para que o aumento e a modernização da oferta faça crescer a procura?

Claro que não é inocente esta ausência de comboios no PNF. Corresponde à visão – ao serviço das multinacionais  – da Comissão Europeia.

Uma visão onde os Estados investem na infraestrutura supostamente para beneficiar os seus utentes, só que estes utentes, na cartilha  neoliberal, não são cada um de nós que utiliza os transportes públicos em particular os comboios, os utentes neste caso são as empresas privadas, que usam a infraestrutura pública para depois venderem serviços aos seus clientes – os passageiros, ou as empresas que necessitam de transportar mercadoria. Ou seja, os utentes passam a ser as empresas e os passageiros passam a ser clientes.

Esta falta de planificação é tanto mais grave quanto a concretização do investimento em material circulante é complexa e demorada, o que depois provoca um desperdício do investimento na própria infraestrutura.

Mas planificar a satisfação das necessidades de comboio tem uma outra importante vantagem: permite alavancar a reconstrução da construção de material circulante em Portugal, na medida em que permite criar uma linha de investimento consistente e prolongada no tempo.

E a máxima uniformização possível do material circulante tem ainda importantes vantagens no plano da manutenção e da elasticidade da operação.

Os recentes resultados da CP, cujos lucros foram ontem anunciados, mostram duas coisas. Mostram que a CP pode ser equilibrada se o Estado pagar as respectivas indemnizações compensatórias; e mostram também a importância da integração da manutenção ferroviária para uma enorme economia de recursos, confirmando a importância económica e social das empresas públicas. 

Sem esta intervenção e visão de fundo, o Plano Ferroviário Nacional arrisca-se a ser apenas mais um planozinho, mais uma operação de propaganda, para colocar o País a discutir hipóteses na teoria enquanto a ferrovia, na prática, continua a degradar-se e a empobrecer.

Enquanto se discute a futura ligação em alta-velocidade a Barcelona, a Sevilha e ao centro da Europa, o que é preciso fazer imediatamente é o que pode avançar já – a reposição dos comboios nocturnos a Madrid e Paris.

Enquanto se reflecte sobre eventualidades, o que é preciso e está desde já ao alcance, é activar a ligação diurna a Madrid e concluir o troço Évora-Caia.

Sim, porque neste Plano Ferroviário também falta uma definição clara de prioridades.

O PCP estimou em 30 mil milhões de euros o investimento público necessário nos próximos 25 anos - em material circulante, infraestruturas e pessoal – para concretizar um ambicioso mas necessário Plano Ferroviário Nacional.

Um plano cujas linhas mestras apresentámos há uns meses e estamos a discutir aqui e em muitas outras  iniciativas.

30 mil milhões parece muito, e é muito. Mas falamos de um investimento a 25 anos, um plano e uma visão de futuro, e basta que a paulatina concretização de um verdadeiro PFN crie as condições para que em 10 anos o País esteja capaz de dedicar 0,5% do PIB ao investimento na ferrovia. Trata-se de uma opção de investimento que todos, pelo menos em teoria, reconhecem como prioritária para o País.

Desde logo pelas vantagens ambientais e pelo contributo para uma transição energética que esteja de acordo com os interesses nacionais, mas que pode e deve ser muito mais.

Pode e deve ser mais no contributo para a dinamização da actividade económica, para o reforço do aparelho produtivo e da indústria nacional, para a criação e fixação de emprego qualificado, coesão territorial, para a diminuição de importações, para a redução da dependência do transporte individual, para a modernização e desenvolvimento do País.

Durante mais de 20 anos travámos – o PCP e os ferroviários – uma dura luta contra a destruição da ferrovia, contra as tentativas de privatização da CP, da EMEF, da CP Carga, da Tex, da REFER, da IP Telecom, contra a liberalização e os pacotes ferroviários, contra sucessivos Governos, ora do PS ora do PSD, apostados na total liberalização e destruição do sector. Tivemos derrotas, sim, mas também tivemos muitas e significativas vitórias, e podemos dizer que se ainda há um sector ferroviário público onde encetar a reconstrução do sector ferroviário nacional, muito se deve a essa luta.

Nos últimos anos o combate foi diferente, o que também foi resultado dessa longa luta.

Existe um amplo consenso sobre a importância da ferrovia.

Mas os investimentos arrastam-se, o Governo do PS, por opção, não se liberta da tutela das multinacionais e do espartilho da União Europeia, e a ferrovia nacional continua a degradar-se em vez de responder às necessidades do povo e do País.

E essa incapacidade, essa falta de vontade de cumprir o que se promete, está a alimentar as forças e sectores mais reacionários da sociedade portuguesa. Na ferrovia, tal como no País, há um longo caminho a percorrer.

As potencialidades existem, os perigos são evidentes.

Há que responder e alargar às necessidades dos trabalhadores, das populações e do País. Há que ter confiança no povo e nos trabalhadores, há que ter confiança nos ferroviários. Temos muitas potencialidades, temos conhecimento, temos trabalhadores altamente especializados com vontade e empenho, temos gente disponível para pôr a coisa no carril.

Se assim é, então há que pôr isto a andar. Contamos convosco, podem continuar a contar com o PCP.

A luta continua!

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