Projecto de Resolução N.º 1110/XII/4.ª

Pelo Reforço dos Cuidados de Saúde Primários de Proximidade às Populações

Pelo Reforço dos Cuidados de Saúde Primários de Proximidade às Populações

A prestação de cuidados de saúde em Portugal foi uma das áreas que mais beneficiou com o 25 de abril de 1974 e com o processo revolucionário que se seguiu. A consagração na Constituição da República Portuguesa (1976) do direito à saúde – artigo 64º e, em 1979, a criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS) permitiram que, pela primeira vez, milhares de pessoas tivessem a oportunidade de ter acesso a uma consulta médica.

O Serviço Nacional de Saúde possibilitou a cobertura generalizada do território nacional de Cuidados de Saúde Primários.

Os Cuidados de Saúde Primários significam, em Portugal, a primeira forma de contacto dos cidadãos com o Serviço Nacional de Saúde, sendo entendidos como o primeiro meio de acesso aos cuidados de saúde.

A criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS) a par da descentralização e disseminação dos centros, postos e extensões de saúde pelo país possibilitaram a evolução muito positiva dos indicadores de saúde, em poucos anos, designadamente, no aumento da esperança de vida, na redução da mortalidade infantil e na promoção da saúde. Para a Organização Mundial de Saúde, os Cuidados de Saúde Primários (CSP) são parte integrante do desenvolvimento socioeconómico da sociedade e do SNS, de que constituem função central e são o principal núcleo.

Apesar da importância estratégica dos Cuidados de Saúde Primários ser reconhecida mundialmente, apesar dos avanços legislativos e práticos em Portugal depois de 25 de Abril de 1974, tem havido um progressivo desinvestimento neste domínio por parte dos sucessivos governos e, sobretudo do atual, pese embora a contínua propaganda em torno da valorização dos Cuidados de Saúde Primários. Desinvestimento que tem sido reconhecido por diferentes organizações representativas do setor (sindicatos, associações representativas de profissionais e utentes), por académicos e estudiosos, como recentemente foi admitido pelo Observatório Português dos Sistemas de Saúde no relatório da Primavera e pelo Tribunal de Contas.

No relatório do Tribunal de Contas, publicado em agosto do corrente ano, sobre a auditoria ao desempenho de unidades funcionais de cuidados de saúde primários, é afirmado que “ o “desinvestimento” evidenciado no quadro supra [quadro em que é explanada a aplicação de fundos /financiamento destinados aos Cuidados de Saúde Primários entre 2009 e 2012] é contrário à pretensão sucessivamente anunciada de uma aposta séria na dinamização dos cuidados de saúde primários.” Mais adiante acrescenta “[o] ano de 2012 destaca-se pelo afastamento mais acentuado, comparativamente aos anos anteriores, entre o financiamento destinado aos cuidados hospitalares e o destinado aos cuidados de saúde primários.”

O desinvestimento nos Cuidados de Saúde Primários tem-se traduzido, por força de 38 anos de política de direita, na diminuição da sua capacidade de resposta, conduzindo à redução da proximidade, da desvalorização social e profissional dos profissionais que neles trabalham e, sobretudo, por causa da carência de dotação de recursos humanos, financeiros e técnicos que possibilitem a assunção dos objetivos que norteiam a prestação neste nível de cuidados de saúde.

Desinvestimento que o atual Governo PSD/CDS-PP tem prosseguido e intensificado, por via do desinvestimento público, da privatização de serviços, do ataque aos direitos dos trabalhadores e de transferência dos custos da saúde para os utentes. Estas orientações e medidas colocam em causa o futuro do Serviço Nacional de Saúde e dos Cuidados de Saúde Primários.

A diminuição da capacidade de resposta dos Cuidados de Saúde Primários deve-se não só aos fortes constrangimentos orçamentais mas também ao encerramento de serviços de proximidade, à carência de profissionais de saúde, ao desinvestimento na área da saúde pública e à não atribuição de médico de família a todos os utentes.

Um pouco por todo o território encerram, ou estão em preparação encerramentos de extensões de saúde, serviços de atendimento permanente (SAP), reduzem-se horários de funcionamento de serviços e valências, ficando as populações praticamente sem resposta no período noturno e nos fins de semana e feriados, afastando os cuidados de saúde dos utentes.

Se é certo que coube ao Partido Socialista e ao então ministro da saúde – Correia de Campos, o início do processo de encerramento de serviços de saúde de proximidade, o Governo atual (PSD/CDS-PP) prosseguiu-o tal como é demonstrado nos seguintes exemplos. Encerramento do SASU do Porto, substituindo-o por um atendimento complementar com horário de funcionamento muito mais reduzido; encerramento do SAP de Sesimbra durante as 24 horas e redução do horário de funcionamento do SAP de Amora, no Distrito de Setúbal; encerramento dos SAP no Distrito de Viana do Castelo, nomeadamente em Melgaço, Arcos de Valdevez, Valença e Paredes de Coura; encerramento do atendimento complementar de Alhos Vedros, encaminhando os utentes para o atendimento complementar da Baixa da Banheira, no Distrito de Setúbal; encerramento do SAP de Idanha-a-Nova e de Oleiros durante as 24 horas, no Distrito de Castelo Branco e o encerramento da extensão de saúde em Caldelas, no Distrito de Braga.

Acresce ainda o facto de haver localidades em que os SAP foram substituídos por serviços designados por de “atendimento complementar” ou “consulta aberta”, com menos recursos humanos e com um horário de funcionamento muito restrito, que impossibilita uma resposta adequada às necessidades das populações.

O encerramento dos serviços de proximidade dificulta cada vez mais a acessibilidade dos utentes aos cuidados de saúde.

Como acima foi mencionado a carência de profissionais de saúde nos centros de saúde é uma evidência. Faltam médicos, enfermeiros, técnicos de saúde, assistentes técnicos e operacionais. Esta realidade resulta da forte restrição na contratação de trabalhadores que tem sido imposta pelos sucessivos Governos. Os trabalhadores que se aposentam ou saem por outros motivos não são substituídos. Regista-se ainda um aumento do número de trabalhadores sem vínculo à função pública, com contratos de trabalho em funções públicas a termo certo, ou a contratação de profissionais através de empresas de trabalho temporário, privilegiando a instabilidade e a precariedade e gerando desmotivações.

Nem as Unidades de Saúde Familiares (USF) escapam ao desinvestimento nos Cuidados de Saúde Primários. As USF também sofrem com os constrangimentos financeiros e de meios humanos e técnicos, condicionando a prestação de cuidados de saúde

Segundo os dados de abril de 2014 do BI USF (da responsabilidades da USF-AN), havia 396 USF que abrangiam cerca de 4,9 milhões de habitantes. Cerca de 50% dos utentes não se encontra neste modelo organizacional. Se no passado o ritmo de criação de USF era relativamente acelerado, atualmente a criação de novas USF está praticamente estagnada, assim como a passagem de USF do modelo A para USF do modelo B.

Os atrasos no pagamento dos incentivos previsto no quadro legal para os profissionais de saúde que integram as equipas das USF, quando atingidos determinados objetivos, são constantes.

Há uma grande desigualdade nas condições de funcionamento das USF e das Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP). As UCSP são preteridas e funcionam, muitas delas, com insuficientes condições ao nível de meios humanos, técnicos e de instalações, quando comparadas com as USF. Na prática, há utentes de primeira e de segunda, o que contraria o disposto na Constituição da República Portuguesa, quando refere que o SNS é universal e geral. Por exemplo, o relatório anual de acesso aos cuidados de saúde nos estabelecimentos do SNS e em entidades convencionadas referente a 2013, refere que 23,1% dos inscritos nas UCSP não têm médico de família, enquanto nas USF somente 1,4% não têm médico de família.

O modelo em que assentam as USF, possibilita a privatização dos cuidados de saúde primários, nomeadamente através da criação de USF do modelo C, o qual rejeitamos, tendo o Grupo Parlamentar do PCP já apresentado um projeto-lei que revogava as USF do modelo C.

Claramente o atual Governo PSD/CDS-PP aposta no caminho da privatização dos cuidados de saúde. A degradação dos cuidados de saúde no setor público insere-se numa estratégia mais ampla, procurando deslegitimar o Estado perante os cidadãos, criando a ideia de que o Estado não é capaz de prestar cuidados de qualidade, para justificar a gradual entrega de setores da saúde aos grandes grupos económicos, tornando-os num negócio bastante lucrativo, fazendo crer aos cidadãos que não importa a natureza da prestação de cuidados ser pública ou privada. Altos representantes dos grandes grupos económicos com atividade no setor da saúde em Portugal, declaram que a saúde é o grande negócio do Século XXI.

As dificuldades na prestação de cuidados de saúde decorrem também dos recorrentes e persistentes problemas com o parque informático colocado ao serviço do apoio clínico (quer médico, quer de enfermagem). Nos últimos tempos têm-se sucedido episódios de inoperacionalidade dos sistemas informáticos que bloqueiam e, em algumas situações, impedem a realização de alguns atos médicos como a prescrição de medicamentos, de meios complementares de diagnóstico e terapêutica ou ainda encaminhamentos/ referenciação para consultas hospitalares. Para além das situações de total inoperacionalidade, os profissionais de saúde referem que o sistema informático bloqueia com muita regularidade e tem um processamento demasiado lento, havendo relatos de demora de 15 minutos a iniciar o programa ou de 10 minutos para emitir um receituário. Tais situações não trazem eficiência na prestação de cuidados de saúde. Estes problemas decorrem, em grande medida, do facto de o equipamento informático estar obsoleto ao que acresce a qualidade da rede que não suporta o software instalado.

O desinvestimento constitui assim uma das linhas de destruição do SNS, que impossibilita que tenha os recursos necessários para corresponder às necessidades das populações.

A realidade de todos os dias mostra, tal como as últimas iniciativas levadas a cabo pelo Grupo Parlamentar do PCP o comprovam, que o país necessita de defender o Serviço Nacional de Saúde dos ataques que lhe têm sido desferidos e, particularmente, no reforço do investimento nos Cuidados de Saúde Primários, pois só desta forma podemos garantir que todos os utentes têm direito a cuidados de saúde com qualidade e de forma universal.

I – Pelo Reforço dos Cuidados de Saúde Primários

Em 1977, em Alma-Ata, a Assembleia Mundial de Saúde definiu os Cuidados de Saúde Primários como “a assistência sanitária essencial, baseada em métodos e tecnologias práticas, cientificamente fundamentados e socialmente aceites, colocados ao alcance de todos os indivíduos e famílias de uma comunidade, mediante a sua plena participação e a um custo que a comunidade e o país possam suportar, em todas e cada uma das etapas do seu desenvolvimento, com um espírito de autorresponsabilidade e autodeterminação”.

Na definição de Cuidados de Saúde Primários estão subjacentes dois conceitos centrais dos Cuidados de Saúde Primários: um centrado na doença, o outro na prevenção e na promoção da saúde. Enquanto o primeiro nos remete para uma perspetiva mais remediativa e curativa, o segundo conduz-nos para uma visão mais promocional e capaz de dotar os indivíduos de competências que lhe permitam prevenir as doenças.

Inerente aos conceitos atrás enunciados está a conceção de saúde como “estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade.”

Assim sendo, a prestação de Cuidados de Saúde Primários deve ser o mais abrangente e multidisciplinar possível de molde a englobar a promoção e a prevenção da saúde física, mental, visual, oral e dos hábitos alimentares saudáveis, entre outros. Porém, para que tal seja alcançado, é necessário que haja um reforço de meios humanos e financeiros ao nível dos Cuidados de Saúde Primários.

Nesta perspetiva, os Cuidados de Saúde Primários devem contemplar para além dos médicos especialistas em clínica geral e familiar, enfermeiros, assistentes sociais, assistentes técnicos e operacionais, psiquiatras, pedopsiquiatras, psicólogos, nutricionistas, profissionais da área da saúde visual, estomatologistas e médicos dentistas, técnicos de diagnóstico e terapêutica (terapia da fala, fisioterapia).

Para além do reforço dos meios humanos e materiais dos Cuidados de Saúde Primários é importante que as diferentes áreas da saúde envolvidas neste nível de prestação de cuidados de saúde sejam efetivamente reforçadas, nomeadamente a área da saúde pública.

A especialidade de saúde pública tem, no caso dos Cuidados de Saúde Primários, um papel importantíssimo ao nível do conhecimento dos níveis de saúde da população / comunidade, no desenho, implementação, execução e avaliação de programas de intervenção em saúde, na vigilância e investigação epidemiológica decorrente de casos e surtos de doenças transmissíveis e na promoção da saúde da população. Porém, ao longo dos anos tem-se verificado um forte desinvestimento nesta área quer pela diminuição dos recursos humanos quer pela desvalorização da importância do estudo e do conhecimento aturado da condições de saúde da população para a elaboração de medidas e políticas de saúde tendentes a melhorar a qualidade de vida e de saúde dos portugueses. Esta tendência deve ser invertida, pelo que urge um reforço desta área de intervenção da saúde nos Cuidados de Saúde Primários.

O reforço dos Cuidados de Saúde Pública também se faz por intermédio da valorização e consagração de unidades de saúde de proximidade. Assim, deve existir pelo menos um serviço de atendimento permanente por Concelho, assim como a atribuição de médico de família deve ser assegurada a todos os utentes.

Consideramos que, mesmo no contexto de dificuldades em que se encontra o nosso país, é possível assegurar o direito à saúde a todos os portugueses, em cumprimento da Constituição da República Portuguesa, com mais investimento público, reforçando as equipas de profissionais nos cuidados de saúde primários, integrando todos os profissionais de saúde com vínculo à função pública e reforçando a qualidade e a eficiência.

Pugnamos assim por um Serviço Nacional de Saúde de carácter público, universal e gratuito para todos. Só desta forma é possível assegurar a todos os portugueses os cuidados de saúde de que necessitam.

É neste quadro de agravamento das políticas em aplicação que o PCP considera ser urgente a adoção de medidas concretas de reforço dos Cuidados de Saúde Primários de molde a que se proteja a saúde e a vida dos portugueses e defenda o Serviço Nacional de Saúde.

Nestes termos, ao abrigo das disposições constitucionais e regimentais aplicáveis, o Grupo Parlamentar do PCP apresenta o seguinte Projeto de
Resolução

A Assembleia da República recomenda ao Governo que:

1. Planifique e implemente uma rede de Cuidados de Saúde Primários de proximidade, em todo o território nacional, que responda às necessidades de prestação de cuidados de saúde às populações, que atenda às características geográficas, demográficas e epidemiológicas do meio envolvente, as acessibilidades e as condições sociais e económicas das populações;

2. Dote os Cuidados de Saúde Primários (nos quais se incluem as Unidades de Saúde Familiar, as Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados e as Unidades de Cuidados na Comunidade) de meios financeiros, técnicos e humanos necessários ao cumprimento das suas missões remediativa, preventiva e de promoção da saúde;

3. Promova a atribuição de médico de família a todos os utentes e proceda à concretização do enfermeiro de família com brevidade;

4. Constitua as equipas de profissionais de saúde onde estejam contemplados para além dos médicos especialistas em medicina geral e familiar, médicos especialistas em psiquiatria, pedopsiquiatria, estomatologia e medicina dentária, psicólogos, assistentes sociais, técnicos de diagnóstico e terapêutica (terapeutas da fala, fisioterapeutas, entre outros), profissionais ligados à saúde visual e assistentes técnicos e operacionais;

5. Valorize e reforce a área da saúde pública dotando-a de meios humanos e materiais que lhe permita prosseguir a missão e objetivos consignados;

6. Valorize social e e profissionalmente os profissionais de saúde, assegurando-lhes as condições de trabalho, de formação, de vínculos de carreira e remuneração que assegurem a sua máxima disponibilidade e qualificação e a estabilidade do serviço de saúde onde se encontram, no quadro do respeito pelas normas deontológicas que presidem à sua intervenção;

7. Ponha fim às desigualdades existentes ao nível das condições de funcionamento entre Unidades de Saúde Familiar e Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados, garantindo que não há diferenciação no acesso e na prestação de cuidados de saúde aos utentes, independentemente da estrutura organizacional que os presta;

8. Garanta a existência de pelo menos um serviço de atendimento permanente por Concelho, mantendo em funcionamento os atualmente existentes e instalando aqueles cuja necessidade se justifique considerando o número de habitantes e as características da população;

9. Promova uma verdadeira articulação entre os Cuidados de Saúde Primários, os Cuidados Hospitalares, os cuidados continuados e a saúde pública, de molde a permitir uma resposta mais célere e integrada aos utentes do SNS;

10. Proceda à atualização do parque informático nos Cuidados de Saúde Primários, e tome medidas provisórias, através da implementação de um software adequado às condições técnicas existentes, até à conclusão da atualização do parque informático.

Palácio de São Bento, em 16 de setembro de 2014

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