Intervenção de Jerónimo de Sousa na Assembleia de República, Debate sobre o Estado da Nação

PCP confronta Governo com o agravamento da situação económica e social do país

PCP confronta Governo com o agravamento da situação económica e social do país

Sr. Presidente,
Sr. Primeiro-Ministro,
Não se exigiria, com certeza, que viesse aqui, revisitando aquele episódio histórico de Egas Moniz, com a corda ao pescoço, ou, nos tempos modernos, pedir desculpa aos portugueses e aos Deputados.
É admissível que sobrevalorize esta ou aquela medida pontual positiva, mas já não se entende, Sr. Primeiro-Ministro que, num quadro de debate do estado da Nação, tenha feito um discurso que, de facto, não corresponde à realidade que o País vive.
É irrefutável a afirmação de que hoje temos um País mais injusto, mais desigual, mais dependente e mais endividado.
Sabemos que a crise internacional do capitalismo teve, e tem, consequências profundamente negativas que levaram a deixar mais expostas as nossas fracturas e vulnerabilidades, mas isso não iliba a culpa nem os erros próprios que decorrem de uma política e de medidas que, situadas neste século, demonstram que vivemos uma década perdida.
Não se queixe da direita, Sr. Primeiro-Ministro. É uma direita política e económica que tem a consciência de que não teria força nem base social bastantes para executar as medidas
económicas e sociais que estão a fazer o País a andar para trás, cobrando a factura dolorosa aos
trabalhadores e à população; direita política e económica que, com tacticismo pensado, quer que o PS alise o terreno, que sangre em vida para salvar a política de direita a garantir os interesses e privilégios dos poderosos, a concentração e a centralização da riqueza à custa do empobrecimento do País e da maioria dos portugueses.
Não se queixe, Sr. Primeiro-Ministro. A opção foi sua, do seu Governo e do seu partido, mesmo depois da perda da maioria absoluta, quando afirmou que ia manter o mesmo rumo da política nacional. Se alguma coisa mudou foi para pior, acudindo ao capital financeiro, aos que tiveram
responsabilidades directas no agravamento da crise, transferindo verbas colossais de dinheiros públicos e reabrindo o buraco da dívida e dos défices das contas públicas com o aplauso ou o silêncio cúmplice do PSD.
Aprovando o PEC e as medidas adicionais com o apoio do PSD, o Governo vem afirmando que estamos num estado de necessidade na repartição dos sacrifícios.
Sr. Primeiro-Ministro, a primeira ideia com a qual gostaria de o confrontar é no sentido de saber se é justo que paguem tanto os culpados como aqueles que não tiveram culpa nenhuma. O problema é que quem paga mais é precisamente quem não contribuiu para a crise — no IRS, no aumento do IVA, nos cortes aos subsídios de desemprego, nos cortes aos apoios sociais, que não poupam desempregados, crianças, doentes acamados, pessoas com deficiência, idosos e os mais fragilizados.
Diga lá, Sr. Primeiro-Ministro — pode recorrer ao Sr. Ministro de Estado e das Finanças para responder —, qual é a fatia sacada a quem vive dos rendimentos do seu trabalho e qual é a quantia facturada à banca, às mais-valias bolsistas, aos lucros acima de 50 milhões de euros, aos
capitais que voam para os offshore.
Eram contas interessantes.
E diga lá outra coisa, Sr. Primeiro-Ministro, se faz favor: nas medidas adicionais do PEC, para além do regresso da ditadura do défice das contas públicas, existe uma estratégia, uma ideia que seja, visando sair da crise, para defender o nosso aparelho produtivo, a nossa produção nacional, para promover o emprego? Diganos, Sr. Primeiro-Ministro, qual é a ideia, a estratégia dizendo que, se agora estamos pior, em 2013 estaremos melhor. Já sabemos que o Sr. Ministro de Estado e das Finanças tem a resposta: confiemos nos astros, confiemos nas estrelas. Mas isso é perigosíssimo, porque também o seu discurso de hoje demonstrou que continua a olhar para as estrelas em vez de pôr os pés na terra, em vez de verificar que o estado da Nação
não é aquele que disse, Sr. Primeiro-Ministro.
O estado da Nação é muito mais grave. Exige, com certeza, confiança e determinação. Portugal não é um País pobre e pode sair da crise, mas não é nem com discursos nem com retórica que ultrapassamos os problemas nacionais. É por isso que estamos de acordo consigo numa coisa, Sr. Primeiro-Ministro: também confiamos em Portugal, também confiamos nos portugueses, mas sem uma mudança, sem uma rotura com este caminho, inevitavelmente vamos continuar a assistir ao afundamento.
Sr. Primeiro-Ministro, acreditamos que é possível um País melhor, mas não é com a sua política, não é com a política económica e social com que, neste momento, somos confrontados.
(…)
Sr. Presidente,
Srs. Deputados:
O estado da Nação, que aqui e agora debatemos, é o estado de um país em regressão em domínios essenciais da sua vida colectiva.
É o estado de um país a braços com uma grave crise económica, social e cultural que se dilata, sem fim à vista, numa sociedade cada vez mais injusta e desigual.
Neste momento de passagem para uma nova década, o balanço à vida e à política portuguesas exige, a nosso ver, não apenas um olhar para a dura realidade do presente, mas, de forma crítica, um olhar para a trajectória passada sobre a evolução dos problemas, que são determinantes na configuração do País que hoje temos e, naturalmente, para as políticas que se projectam para o futuro.
Não se pode alterar o rumo se não se reconhecer o caminho errado. A dimensão dos problemas que, com toda a evidência, estão hoje presentes na sociedade portuguesa, o elevadíssimo desemprego, a prolongada estagnação económica, a sufocante dívida externa global (pública e
privada), o agravamento das balanças externas e a crescente dependência do País, a degradação dos serviços públicos essenciais ao bem-estar das populações, a amplitude da precariedade das relações laborais que estão a contribuir para o acelerado retrocesso das condições de vida da grande massa trabalhadora, não se podem desligar do que foram todos estes últimos anos de política de direita conduzida ora por governos do PS, ora por governos do PSD, com ou sem o CDS-PP.
A trajectória da sua evolução mostra que eles radicam não apenas na recente crise do capitalismo internacional, que, sem dúvida, agravou os problemas e expôs as fragilidades do
País, mas são o resultado de uma prolongada acção política orientada para promover uma escandalosa centralização e concentração da riqueza a favor de uns poucos, ao mesmo tempo que fechava os olhos aos principais problemas do País.
É ver a trajectória da evolução do desemprego em agravamento constante em toda esta primeira década, cuja taxa mais que duplicou.
É ver a trajectória da evolução da nossa economia, que nos últimos 10 anos teve um crescimento
rastejante e deprimente – em média, 0,9% –, enquanto a oligarquia financeira e os seus impérios empresariais acumulavam, ano após ano, colossais lucros.
É ver a trajectória da evolução do endividamento externo líquido.
É ver a trajectória das nossas balanças, nomeadamente da nossa balança corrente, cujo saldo negativo permanece como um dos mais elevados do mundo e que reflecte uma balança comercial profundamente deficitária.
É ver a evolução do rendimento nacional e verificar que é cada vez maior a parte do rendimento produzido em Portugal que sai para o estrangeiro, para lá das agudas desigualdades na sua distribuição que permaneceram e se acentuaram.
É ver a sistemática trajectória de divergência no plano económico e social com a média da União Europeia.
É esta evolução que confirma que a solução dos problemas do País não se podem encontrar através de uma insustentável fuga em frente, acentuando os traços mais negativos de uma política que fracassou, como o faz o PS, cada vez mais a reboque de um PSD que se apresenta a defender mais do mesmo, em dose reforçada e em ritmo mais acelerado, esse PSD que o PS caracteriza como tendo, hoje, a mais radical orientação de direita mas com o qual concerta, através do PEC, a mais brutal das ofensivas contra as condições de vida dos trabalhadores e do povo português e os seus direitos sociais, condenando o País à estagnação e ao declínio.
É este percurso de regressão, que se aprofundou com gravíssimas consequências sociais nesta segunda metade da década e que coincide com a acção dos governos do PS, que se projecta continuar, no futuro, com a estratégia suicida do PEC, de renúncia de uma política de crescimento e de emprego, para dar lugar ao regresso, a todo o vapor, da ditadura do défice, outra vez erigido como o problema central do País.
É o Portugal das injustiças que sobressai de uma governação e de uma política que se diz vinculada à defesa do «Estado social» mas que o vai desmantelando peça a peça, medida a medida.
O recente pacote de medidas anti-sociais e a cessação das medidas sociais anticrise, que atingem as camadas mais fragilizadas, dos desempregados aos doentes, dos pensionistas de mais fracos rendimentos aos excluídos e marginalizados, não é apenas expressão de insensibilidade social, mas o resultado de uma deliberada opção de paulatina desresponsabilização e desvinculação das obrigações do «Estado social» ou, melhor dizendo, das funções sociais do Estado de Abril.
É o Portugal das injustiças que se aprofunda com as actuais políticas de ataque aos salários e às pensões, de aumento dos impostos sobre os rendimentos do trabalho e sobre o consumo, incluindo sobre os bens essenciais.
É o Portugal das injustiças que avança com o ataque aos serviços públicos, um ataque que tem sido uma constante da política de direita nos últimos anos, particularmente agravado nesta altura.
As medidas agora tomadas pelo Governo e PSD vão agravar a situação que está criada e afastar ainda mais largos sectores da população da concretização dos seus direitos, como a saúde e a educação. Temos ouvido, nos últimos dias, inflamadas declarações do Primeiro-Ministro e de outros dirigentes e personalidades do PS sobre a defesa do Serviço Nacional de Saúde, reagindo às propostas do PSD para alterar o figurino constitucional sobre a saúde e sobre outros sectores sociais, como o da educação. É verdade! É verdade que o PSD não desiste de impor, também na Constituição, uma concepção retrógrada em relação ao Estado e aos sectores sociais, procurando a sua privatização e a sua transformação de direitos em negócios vantajosos para os grupos económicos privados.
O que é extraordinário é que o Primeiro-Ministro e o PS se afirmem como opositores dessa concepção quando, na verdade, a sua política aponta exactamente no mesmo sentido.
Quando se encerram serviços por todo o País, como escolas ou unidades de saúde, quando se diminui a sua capacidade, diminuindo ou eliminando a contratação de pessoal, quando se atacam os direitos dos profissionais da educação e da saúde, quando se corta radicalmente no
investimento nos serviços públicos, o que se está a abrir é o caminho à privatização e à negação dos direitos das populações.
É o Governo PS que está a transferir milhões de euros do Orçamento do Estado para os hospitais privados, ao mesmo tempo que condena os hospitais públicos ao descalabro financeiro.
O PSD quer consagrar na Constituição o que vai sendo posto em prática pelo Governo do PS; o PS faz, na prática, aquilo que diz não querer na Constituição.
O actual estado da Nação é, também por isso, o resultado de uma política que se deslegitima, tal como os seus executantes e apoiantes, porque fazem o contrário daquilo a que se comprometeram perante os portugueses.
Soa cada vez mais a hipocrisia o argumento invariavelmente utilizado, que justifica todas as reformas mutiladoras do sistema social, os cortes nas funções sociais, os encerramentos dos serviços públicos, a anulação e restrição dos direitos sociais, como medidas indispensáveis para defesa e garantia do futuro desse «Estado social».
Soa a oco a proclamada distribuição equitativa dos sacrifícios no combate ao défice quando se extinguem as medidas sociais anticrise e se mantêm as destinadas a beneficiar o sistema financeiro, que apresenta avultados lucros.
Soa cada vez mais a falso o discurso de moralização da vida pública, que visa centrar nos excluídos e nos desempregados a atenção da opinião pública em relação a práticas de fuga aos deveres sociais, mas que reserva um conivente silêncio em relação às escandalosas práticas dos que arrecadam milhões de lucros e não pagam os impostos correspondentes.
O espelho do estado social da Nação, nestes tempos que correm, vê-se na manutenção de cerca de 2 milhões de portugueses a viver abaixo do limiar da pobreza, mas, igualmente, noutros tantos milhões que se aproximam desse limiar pela via da precariedade do trabalho e dos baixos salários, como estudos recentes vão revelando, enquanto emergem umas
novas centenas de milionários.
Quis o Sr. Primeiro-Ministro reduzir este debate à décima ou às seis décimas, se quiserem, do nível da pobreza, com números de 2008. Olhar para a realidade deste ano de 2010 é que é importante.
Desça do seu pedestal, Sr. Primeiro-Ministro, desse autocontentamento, ouça a inquietação que vem das instituições, das IPSS, das autarquias, dos pobres, dos desempregados, daqueles que têm vergonha de ser pobres, e perceberá que disse aqui algo que merece um clamor de revolta e de denúncia.
A dramatização à volta do défice das contas públicas a que estamos a assistir, e que se desvalorizou e negligenciou quando se impôs dar cobertura às políticas de recapitalização do sistema financeiro à custa dos contribuintes, revela não só que se mantém como objectivo fazer pagar aos trabalhadores e ao povo a factura da crise, mas também deixar na penumbra os problemas que estão na origem dos desequilíbrios estruturais do nosso País.
Não é a dívida pública o principal problema económico do País mas a sua dívida externa global, como, há muito, vimos referindo, consequência da desindustrialização continuada, da degradação do aparelho produtivo, das profundas alterações verificadas nos sectores estratégicos da economia nacional, com a sua privatização, do contínuo crescimento do domínio do capital estrangeiro sobre a economia do País e a sua «financeirização», mas também de uma política monetária e cambial altamente penalizante das nossas exportações e actividades produtivas.
O PEC é bem a negação da política de que o País precisa. A cada versão, vista, revista e aumentada de medidas de austeridade, corresponde um cenário cada vez mais sombrio da evolução da situação económica e social do País. O Relatório de Orientação da Política Orçamental, três meses passados da versão do PEC 1, aí está a confirmá-lo.
A prosseguirem estas políticas, o País corre o risco não apenas de prolongar a situação de estagnação em que se encontra mas de regressar a uma mais dolorosa recessão.
Num momento em que se avolumam os perigos e se compromete o futuro do País, reafirmamos que há outras soluções e um outro caminho capaz de relançar o País na direcção do desenvolvimento económico e social.
Apesar de ter um povo empobrecido, Portugal não é um país pobre e tem potencialidades.
O País e os portugueses precisam de uma nova política de ruptura, patriótica e de esquerda, ao serviço do povo e dos interesses nacionais. Uma política que, designadamente, aposte decisivamente na produção nacional, tenha como objectivo o pleno emprego e o emprego com direitos e, com sentido estratégico, invista nas potencialidades da nossa agricultura, na nossa economia do mar, na industrialização do País.
Uma política que coloque no centro das suas prioridades uma mais justa repartição da riqueza, a valorização do trabalho, a protecção social, a justiça social e a cultura.
Uma política que enfrente com coragem os grandes grupos económicos e vá buscar recursos onde eles existem, nomeadamente obrigando a banca a pagar os 25% de taxa efectiva de IRC, limitando as operações no offshore da Madeira, visando pôr-lhe fim, aplicando uma taxa extraordinária de IRC a empresas que tenham mais de 50 milhões de euros de lucros por ano, impondo, no imediato, a tributação das mais-valias realizadas na bolsa e, em 20%, as transferências financeiras para os paraísos fiscais.
Uma política que, como a Constituição consagra e projecta, inverta este caminho de injustiças, de retrocesso social e de declínio nacional.
O PCP acertou na análise, mas não nos confortamos com isso! O que nos anima e aquilo por que nos batemos, com a determinação que nos caracteriza, é por concretizar algo que é possível, ou seja, uma vida melhor para os portugueses, num País de progresso, democrático e soberano. Esta é a razão principal da nossa luta!

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