Obras Escolhidas (Tomo II) de Álvaro Cunhal

Apresentação pública de Obras Escolhidas (Tomo II) de Álvaro Cunhal
Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-geral do PCP

Este segundo volume de Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal, lançado pela Editorial “Avante!” e acompanhada empenhadamente por Francisco Melo, refere um período histórico de grandes acontecimentos nacionais, internacionais e partidários entre 1947 e 1964. É parte importante mas indissociável do período antecedente deste, a fundação do Partido, e não separável da contribuição de Álvaro Cunhal até ao final da sua vida, contribuição que ajuda à compreensão do entendimento do Partido que temos e do Partido que somos.

Sublinhe-se também, e como ele próprio afirmou posteriormente, estes materiais não podem ser lidos como um romance para que se possa dizer mais tarde que já se leram. Será necessário lê-los e relê-los, é necessário compreendê-los.
Neste tomo de Obras Escolhidas é referido o período em que se retomam relações internacionais do PCP com a viagem de Álvaro Cunhal à Jugoslávia e à União Soviética, o tempo em que ele é sujeito à prisão e à bárbara violência de tortura e agressão por parte da PIDE, em que perante o Tribunal Plenário, invocando corajosamente a sua defesa e do seu Partido, se transforma de acusado em acusador implacável ao regime fascista, em que, após a condenação e a tentativa de liquidação intelectual e anímica pela via do isolamento e da incomunicabilidade, luta, resiste, estuda e cria, participa na fascinante e portentosa fuga da Cadeia do Forte de Peniche, é um destacado protagonista no intenso debate ideológico tanto no seio do Partido como no plano do movimento comunista internacional. Culmina este tomo com o histórico “Se fores preso camarada”, que embora sujeito a alterações resultantes de experiências acumuladas constitui um documento impressionante na forma de defender o Partido e expressão da superioridade moral dos comunistas onde era preciso ir para além das próprias força do medo e da capacidade de sofrimento humano. Só produz um texto destes quem passou por uma experiência própria e se inspirou em exemplos exaltantes de outros camaradas.
Fazendo uma retrospectiva histórica que está amplamente desenvolvida no I Tomo das Obras de Álvaro Cunhal, a reorganização do Partido de 1940-41, confirmada pelos III e IV Congressos, num quadro de tremendas dificuldades face à sombra negra do fascismo que cobriu quase toda a Europa e em que no plano nacional o regime fascista de Salazar reafirmava e intensificava os métodos repressivos, o Partido avança com a definição teórica da identidade do Partido e a concretização prática dessa identidade edificada na complementaridade indissociável de um conjunto de traços identitários que incorporam a sua natureza de classe, o projecto e ideologia, as normas de funcionamento democrático interno, a estreita ligação às massas e à defesa dos seus interesses e ao seu carácter patriótico e internacionalista.

E se os avanços no plano partidário eram significativos, o Partido sentia a necessidade de colmatar a ausência de contactos com o movimento operário internacional, aproveitar as experiências da acção e da luta de outros partidos comunistas, coordenar correctamente a luta em Portugal com a luta dos outros países pela democracia e pela paz.
Nos seus relatórios e artigos para publicações do movimento comunista internacional, transcritos neste Tomo, caracteriza com rigor a política externa do Estado fascista, demonstrando a cumplicidade activa e a descarada colaboração com as forças da agressão franquista, a sua subserviência aos ingleses e americanos, enquanto envia matérias primas para a indústria de guerra de Hitler durante a segunda Guerra Mundial.
Com acutilância demonstra que a perda de soberania económica acaba por determinar a dependência política e consequentemente a perda da independência nacional.
Com uma capacidade de previsão notável confrontou e combateu o atentismo e o conformismo dos defensores da ideia de que a derrota do fascismo em Portugal só se daria com a derrocada do regime de Franco em Espanha.
Álvaro Cunhal confiava no povo português e na sua luta. E a sua análise era sustentada na tese, confirmada com a Revolução de Abril, que não se dava ao povo português a ajuda que precisava e merecia e por outro lado e no que toca ao povo espanhol não se tinha em conta um dos principais apoios do regime de Franco. Sem o referir, Álvaro Cunhal alicerçava a concepção do PCP como partido patriótico e internacionalista.

Neste livro refere-se um extenso documento sobre o Partido e as eleições presidenciais, a propósito da apresentação da candidatura do general Norton de Matos e sobre as condições e base unitária de apoio à candidatura.
Valorizando a apresentação da candidatura mas observando as ilusões de muitos democratas quanto a uma possível abertura por parte do regime como consequência da concorrência eleitoral, alertou para o facto de que sem condições mínimas, sem recenseamento honesto e fiscalizado, sem liberdade de propaganda e participação  nas mesas de voto, não só a derrota seria estrondosa como permitiria ao regime fascista o branqueamento interno e externo. Nesse documento dá conta das tendências oportunistas no movimento unitário democrático que na mira de atrair gente mais ou menos descontente com o regime salazarista pugnava por isolar o PCP e rejeitar os votos dos comunistas na base de uma aliança antifascista e anticomunista.
Neste processo o anticomunismo estava encharcado em oportunismo mas tanto aí como até aos dias de hoje o anticomunismo tem sempre um conteúdo antidemocrático.
Significativa foi também a postura elitista de recusa de qualquer mobilização e empreendimento das massas democráticas confiando apenas na negociação e compromisso.
Num rasgo que vale uma tese, Álvaro Cunhal escreveu que era um erro pensar que com eleições livres se derrubaria o fascismo. O que era necessário era derrotar o fascismo para realizar eleições livres.
Álvaro Cunhal, ao afirmar o Partido Comunista Português como Partido da classe operária, considera que nem na longa e dura luta pela democracia e independência nacional, nem nos presentes e nos próximos combates no terreno das eleições presidenciais, o movimento democrático pode dispensar as forças da classe operária e do seu Partido.

Após o seu regresso a Portugal, e no seguimento do processo da “política de transição” que já tinha sido analisado no IV Congresso, Álvaro Cunhal faz cinco observações à autocrítica de Ramiro (Júlio Fogaça), com frontalidade e sinceridade e, de um ponto de vista de crítica leninista, conclui que tal debate foi feito na base dos princípios do marxismo-leninismo, pôs a nú o perigo das concepções oportunistas, realizado a par da defesa intransigente dos princípios orgânicos do Partido e dentro dos princípios do centralismo democrático, da disciplina, da crítica e da autocrítica à definição mais sólida da linha política do Partido, na preparação política dos quadros, nas ideias das responsabilidades de modéstia e da autocrítica. Não se pretendendo auto-flagelação ou penitência, mas o reforço político e orgânico do Partido.  Uma lição revolucionária do facto e no tempo que aconteceu, mas simultaneamente um ensinamento que temos sempre presente.
Em Março de 1949 Álvaro Cunhal é preso no Luso conjuntamente com Militão Ribeiro, que viria a morrer na prisão fascista, e com a camarada Sofia Ferreira (hoje aqui connosco) citada pela sua coragem e firmeza perante a polícia na defesa feita pelo camarada perante o tribunal fascista. Quase 4000 dias de prisão, metade em regime de isolamento acrescido de mais um ano incomunicável.

Álvaro Cunhal com a consciência que o fascismo queria mutilar a sua coragem revolucionária e as suas capacidades intelectuais, reagiu de forma admirável, fazendo da cadeia um espaço de luta, estudo, reflexão e criação.
Perante o tribunal fascista ante o inimigo, transformou o banco dos réus numa tribuna defendendo-se e defendendo o Partido, desmascarando implacavelmente o regime fascista. Sublinhe-se que são parte integrante do património histórico do nosso Partido outros casos, antes e depois, da defesa e acusação de Álvaro Cunhal em Tribunal Plenário, onde muitos camaradas se portaram com grande coragem. Mas o impacto do julgamento e da defesa de Álvaro Cunhal foi para além fronteiras.
Na prisão, as dezenas de cartas  para o Director da Cadeia Penitenciária de Lisboa, para o seu advogado António Bacelar, para juízes e instituições, Álvaro Cunhal deixa revelar a sua determinação, inteligência e sagacidade, inclusivé acusando o fascismo pela ilegalidade de nem sequer cumprir as suas próprias leis.

Ali aprofunda estudos na área económica, da história e da arte. Ali traduz o Rei Lear de Shakespear, ensaia um romance, escreve para a Vértice sob pseudónimo. Mas a sua dimensão intelectual não era dissociável do comunista mantendo o contacto com o Partido naquelas condições adversas. Entre as suas cartas à Direcção releva um, sobre o Programa do Partido, estabelecendo a diferença entre o que era o Programa do Partido e  que poderia ser um programa eleitoral. A sua fundada preocupação em sublinhar o objectivo que sempre nos animou e anima da criação de uma sociedade comunista, e que tal sociedade será alcançada através da edificação de uma sociedade socialista sem classes. Da reafirmação do marxismo-leninismo – quem o conheceu de perto sabe que Álvaro Cunhal era contrário ao excesso de adjectivação, mas defensor da afirmação e prática da ideologia e projecto.

Após a audaciosa fuga da cadeia do Forte de Peniche elaborou um texto de grande actualidade sobre a tendência anarco-liberal da organização do trabalho de Direcção e o desvio de direita nos anos 56 e 59.
O combate ao excesso de centralismo e o culto da personalidade (transposição mecânica e dogmática da realidade soviética à realidade portuguesa) e base ideológica da tendência anarco-liberal deu margem à defesa do “igualitarismo e nivelamento” da direcção à fácil promoção de elementos débeis, à diminuição de autoridade dos organismos superiores do Partido, a concepções rotativistas no desempenho de tarefas de maior responsabilidade, ao liberalismo, ao afrouxamento geral da disciplina.
Álvaro Cunhal tem a consciência de que as duras condições de clandestinidade o obrigam ao rigoroso centralismo e a limitações à democracia interna. Como Lénine afirmava, uma organização revolucionária (e, no nosso caso concreto vivendo as duras condições de clandestinidade e perante uma feroz ditadura) por muito que se deseje um democratismo amplo, ele não tem aplicação porque aplicá-lo na prática significa facilitar amplas colheitas à polícia e consagrar eternamente os métodos primitivos do trabalho.

Mas nesse texto Álvaro Cunhal sublinha que o reforço do centralismo, sendo uma necessidade imposta pela realidade, será sempre temporária e acrescenta que isso não significa a impossibilidade de apreciação e discussão ampla e livre, em todas as organizações do Partido, de toda actividade do Partido ou da actuação dos seus quadros, a forma de tomar decisões em cada organismo do Partido através de um debate franco e livre e de votação no caso de não existir unanimidade, são aspectos da democracia interna que podem e devem ser fortalecidos sempre que as imposições da segurança e defesa o não impeçam.
O respeito pelas opiniões do Partido, o cuidado em chamar sempre que possível camaradas menos responsáveis ao trabalho de Direcção, o interesse em conhecer a informação e opiniões da base e dos trabalhadores sem Partido, o estímulo à crítica e autocrítica, o combate sistemático aos processos autoritários, a modéstia, a identificação dos dirigentes com a base do Partido, com a classe e com as massas, são formas de fortalecimento da democracia interna do Partido, mesmo nas condições de clandestinidade. Mas a situação concreta e as condições concretas da época não poderiam permitir um democratismo que facilitasse o objectivo do fascismo de liquidar à força o capital de resistência e de luta organizada.
Com o derrube do fascismo e a vitória de Abril, tal concepção é hoje um dos traços que prevalecem no Partido com desenvolvimentos na sua obra O Partido com Paredes de Vidro.

Permitam-me uma referência em relação à sua visão sobre o derrubamento da ditadura fascista.
Para Álvaro Cunhal, com base na experiência própria do Partido e na análise à realidade o afastamento de Salazar nunca seria uma consequência da desagregação do seu próprio regime. A desvalorização da luta de massas, do papel da classe operária e do seu Partido permitiu o desenvolvimento de ilusões ora legalistas ora golpistas. Com uma perspectiva confirmada pela história, Álvaro Cunhal considerou que um levantamento popular suficientemente poderoso para derrubar a ditadura teria de contar com a participação duma importante parte das forças armadas. Com esse trabalho não era um golpe militar que se tinham em vista, mas assegurar a vitória do movimento popular, criar as condições para um levantamento popular vitorioso.
Uma última referência ao texto sobre a situação internacional onde se destaca a questão da divergência entre o PCUS e o PC da China.

Com frontalidade vai às causas das divergências, mas o que releva é a sua consideração sobre a necessidade da unidade, da busca incessante do fundamental na luta contra o imperialismo, apesar das divergência que acabaram por prevalecer com todas as dramáticas consequências que decorreram para  movimento comunista internacional. Tanto por razões de sectarismo e dogmatismo, como por oportunismo de direita nalguns partidos.
Mas como afirmou Álvaro Cunhal na sua última intervenção em Congressos do nosso Partido “o projecto e proposta do nosso Partido de uma sociedade socialista em Portugal diferencia-se em muitos aspectos da construção do socialismo proposto ou em curso noutros países. O nosso Congresso confirma porém a nossa frontal recusa em participar em campanhas do imperialismo e a nossa determinação de aprofundar e reforçar os laços de cooperação, solidariedade recíproca e amizade com partidos comunistas e revolucionários, com os trabalhadores e o momento operário, com as forças progressistas e com os partidos no poder que insistem no objectivo de construir o socialismo nos seus países.”
A situação mundial impõe cada vez mais a compreensão, a solidariedade recíproca, acção comuns ou convergentes na luta contra o imperialismo.

O lançamento deste segundo volume das obras de Álvaro Cunhal é feito no quadro de discussão e preparação do nosso XVIII Congresso, num quadro de crise do capitalismo, de grande ofensiva da política de direita, mas também de grandes lutas.
Em muitos textos deste tomo nós compreendemos melhor a história do Partido, fonte de inspiração para as nossas orientações e tarefas. Aprendemos! Mas como o próprio Álvaro Cunhal afirmou mais adiante estes materiais sendo para conhecer e compreender não podem criar a ideia que estudar é tudo e afastarmos os quadros do trabalho corrente para os tornarmos em teóricos petulantes pois o marxismo-leninismo é uma ciência ligada à vida e às condições de lugar e de tempo, uma ciência que se enriquece com novas experiências e novos conhecimentos, e daí a necessidade que o estudo dos teóricos do marxismo seja acompanhado da nossa realidade. É como dizia “das respostas novas às novas situações, aos novos acontecimentos, é ter em conta as mudanças e proceder constantemente à análise das realidades, é encontrar os métodos e formas de organização, de comunicação, de propaganda, de intervenção e luta adequadas às exigências de situações concretas”. Mas que se desiludam os que em nome da renovação, pensam numa mutação da sua identidade, na abdicação dos seus princípios.

Temos aqui nesta obra mais uma preciosa ferramenta para trabalhar e lutar melhor. Uma ferramenta forjada por um revolucionário, um comunista que temperado na resistência e na luta, também aprendeu com a classe operária, os trabalhadores e as massas populares, que neles confiou como principais protagonistas e obreiros da transformação social que preconizamos. Um documento de valor histórico onde se sacode o enevoamento, o branqueamento e a usurpação da memória; que relembra e releva os combates e a luta de milhares de comunistas, os avanços e os recuos, as vitórias e as derrotas, os acertos e os erros da nossa intervenção colectiva, mas donde emerge sempre mas sempre, como pedra angular da história do PCP, a disponibilidade para prosseguir a luta, intensificá-la e alargá-la na senda da vitória de Abril, com tudo o que comportou de liberdade, transformação e conquista revolucionária, sempre mas sempre com os trabalhadores e o povo, sempre mas sempre tendo como horizonte o socialismo e o comunismo.

Quem ler o Projecto de Teses para o XVIII Congresso lá encontra a matriz insubstituível e sempre renovada deste Partido, da sua natureza, identidade, ideologia, projecto e princípios, lá encontra o Partido que faz boa cara e peito firme ao mau tempo da ofensiva do Governo e da sua política, que não se limita a lutar mas a trazer para a luta todos os que defendem uma vida melhor, uma sociedade mais justa, um mundo onde prevaleça a paz e a democracia, sem abdicar da visão mais avançada da construção do socialismo. Um Partido Comunista do nosso tempo que honra a sua história, as razões da sua fundação e da sua luta passada e presente, que honra a memória e a luta de Álvaro Cunhal e de milhares de comunistas, tentando acertar o passo do sonho com a realidade de pôr fim à exploração de um homem por outro homem.

  • PCP
  • Central
  • Álvaro Cunhal