Intervenção de Bruno Dias na Assembleia de República

A nova etapa no ataque à RTP e ao serviço público

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Declaração política mostrando-se contrária à privatização da estação pública de televisão e ao plano de reestruturação da empresa

Sr.ª Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:
Ao longo das épocas e das legislaturas, há uma jóia, nunca esquecida, que sempre se destaca, resplandecente aos olhos do poder económico e do poder político, que a ele se subordina.
O serviço público de televisão sempre esteve na mira dos interesses privados e de quem os serve. Agora, nesta pilhagem que está a ser feita, do património e dos recursos do povo e do País, na transferência de riqueza dos trabalhadores para os grupos económicos, a tão cobiçada televisão e rádio pública não podia faltar ao cardápio, e aí temos o Governo em «voo picado» sobre a empresa e os seus trabalhadores.
Foi há dias noticiada a entrega ao Governo, pela administração da RTP, de um «plano de reestruturação» da empresa, encomendado pelo Ministro Miguel Relvas. Segundo foi noticiado na comunicação social, este processo poderá apontar para a extinção de mais de 300 postos de trabalho na empresa, no contexto de uma estratégia governamental orientada para a privatização.
Apesar de esforços da comissão de trabalhadores para ser ouvida no processo de elaboração do referido plano, os pedidos da estrutura representativa, que legalmente deve participar na reestruturação da empresa, não foram atendidos, quando a lei estabelece a obrigatoriedade de
consulta.
Desse documento, preparado nas costas dos trabalhadores e dos cidadãos, não foi dado conhecimento nem à Assembleia da República nem à comissão de trabalhadores da empresa.
Entretanto, há um grupo de trabalho, chefiado por esse grande especialista em serviço público, audiovisual e multimédia, chamado João Duque, nomeado para estudar o que há-de ser o serviço público e o sector empresarial do Estado neste sector. Nada conta para nada e tudo serve para o mesmo: desmantelar o que se diz reestruturar e do serviço público fazer serviço mínimo.
Aqui está, Srs. Deputados, a autêntica farsa que está montada neste processo, aqui está a que ponto chegou o vale tudo na manipulação e na demagogia.
O Governo, pela voz do Ministro Miguel Relvas, diz que o serviço público de televisão custa demasiado, que é preciso cortar, cortar, cortar. Atira números para a discussão, que tanto podem ser 400 quanto 550 ou 300 milhões. Nós perguntamos: mas cortar quanto? Cortar o quê? Para chegar onde? Qual o montante aceitável para o Governo? O Ministro nada responde, porque aquilo que o Governo sabe mas não diz é que a RTP, na comparação entre receitas operacionais das estações de serviço público, está no fundo da tabela dos países da União Europeia e todos os indicadores (montantes absolutos, média por habitante, percentagem do
PIB, etc.) aparecem abaixo da média europeia.
E quanto às dívidas e ao seu pagamento, o Governo bem pode fazer o papel de escandalizado com a situação que encontrou. É que a situação que encontrou foi a que estava prevista e programada na reestruturação financeira da RTP, decidida em Setembro de 2003 pelo então Governo PSD/CDS-PP.
Diga-se a verdade, Srs. Deputados: o que está a acontecer é nada mais do que o retomar de um projecto que vem de longe, de neutralização e apagamento do serviço público nesta área; de reconfiguração e entrega, aos interesses privados dos grupos económicos, de um poder dominante no sector dos média e, em particular, da televisão. Os pretextos podem mudar aqui e ali — quando mudam —, mas o objectivo é exactamente o mesmo.
Aliás, é preciso que a memória não seja curta!
Há pouco mais de nove anos, desta mesma tribuna, o PCP denunciava os propósitos de desmantelamento do serviço público de televisão pelo então Governo PSD/CDS-PP, que anunciava, por esses dias, a transformação da RTP numa «outra coisa», destinada à «emissão de um canal generalista de televisão».
Já em 1994 — citando o Tribunal de Contas, em 2002 — era apontada a «falência técnica» da RTP.
Em 2006, era a própria Comissão Europeia a constatar e a reconhecer o subfinanciamento crónico a que a empresa era submetida durante anos e anos a fio — mais de 1000 milhões de euros até 2003!
Agora, a situação que temos é bem retratada na intervenção de um alto responsável de um canal privado, numa conferência internacional, há poucos meses: «o que nós não temos conseguido através do lobby, está agora a ser conseguido com a crise económica e orçamental que afecta o nosso País». Referia-se aos cortes nos salários na RTP e em todo o sector empresarial do Estado, aos cortes orçamentais e de investimento, à redução nas indemnizações compensatórias.
O Governo e a administração da RTP, às suas ordens, vão levando a cabo, medida após medida, uma política de degradação e desarticulação do serviço público de televisão e rádio.
É o corte das emissões em onda curta da RDP Internacional. É a decisão anunciada de reduzir as
emissões da RTP Açores e da RTP Madeira para apenas quatro horas diárias.
É a falta de clareza quanto à responsabilidade e às contrapartidas na gestão do arquivo histórico da RTP, que a RTP vendeu ao Estado e que o Estado incumbe, agora, à RTP.
São os termos inaceitáveis em que se desenrola este processo da dita «reestruturação» da empresa.
É a forma como são ignorados e desconsiderados os conselhos de opinião, os provedores do telespectador e do ouvinte, as organizações representativas dos trabalhadores da empresa, os contributos, os alertas, o papel destas entidades.
É este recurso à intimidação e ao terrorismo psicológico sobre os trabalhadores da empresa, a ameaça não desmentida da destruição de centenas de postos de trabalho. E isto, quando se sabe que, na sua maioria, os trabalhadores da empresa têm os salários congelados há anos, sofreram os cortes salariais impostos em 2011 e enfrentam, também agora, o roubo no subsídio de Natal.
Sr.ª Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:
O PCP reafirma a defesa de uma causa que é inteiramente válida e perfeitamente actual.
Aquilo que é indispensável é que a RTP tenha o seu projecto próprio, reestruturado mas assente numa estratégia coerente, relevante, numa oferta ampla e diversificada de canais de serviço público, acessível a toda a população e não apenas a quem tem TV por cabo.
Pela nossa parte, o PCP está à vontade para abordar esta matéria. Sempre denunciámos frontalmente os erros do passado. Sempre recusámos o debate viciado que se limitasse à opção entre ferir de morte a RTP ou deixar tudo na mesma.
O serviço público pode ser — e tem de ser — um espaço de cultura, de liberdade, de deontologia, de cidadania, de soberania e desenvolvimento. Para o Governo e a maioria, e os interesses que estes servem, é pelos vistos um instrumento ao serviço do poder, que pode servir para controlar mentalidades, mas mais ainda para negócios milionários.
É também por isso que estamos em lados opostos e é por isso que a luta dos trabalhadores e das
populações (que teve, no passado dia 1, uma nova etapa e um ponto mais alto) vai continuar e vai acabar por derrotar esta política de roubo, de agressão e de desastre nacional.
(…)
Sr.ª Presidente, procurarei cumprir e anuir ao apelo que faz.
Quero agradecer a questão colocada pela Deputada Francisca Almeida e dizer-lhe que, apesar de tudo, há aqui alguma expectativa que foi gorada, porque aguardava que nos dissesse agora, finalmente, qual o valor que entende razoável para receita operacional de uma empresa como a RTP. Contudo, continuamos sem saber até onde é preciso cortar, o que querem os senhores cortar, onde querem cortar, para que servem esses cortes e qual o objectivo ou o horizonte dos cortes que referem. Porque, na verdade — e embora pareça não ter ouvido —, ao nível da União Europeia a 27, somos o quinto país a contar do fim em matéria de despesas com o serviço público de televisão — isto em matéria de percentagem do PIB, em matéria de média por habitante e em matéria de valores absolutos.
Ora, significa isto que há uma agenda escondida, uma espécie de «gato escondido com rabo de fora», relativamente àquilo que os senhores há quase 10 anos falavam como sendo reestruturação, mas que, na verdade, é um plano de desagregação, neutralização e desmantelamento do serviço público de televisão.
É isto que está em causa.
Bem podem atirar milhões para cima da mesa com o valor que custa a RTP Madeira, como se a autonomia regional e a diversidade concreta da realidade das regiões autónomas não fosse assunto relevante para o País ou como se a projecção de Portugal no mundo com a onda curta da RDP Internacional fosse uma questão de somenos importância.
Aquilo que verdadeiramente está em causa com a política que os senhores levam a cabo, com o tal estudo que a Sr.ª Deputada Francisca Almeida diz que custa zero mas que custa muito à soberania nacional, ao desenvolvimento, à cultura portuguesa, é, na verdade, algo que será música para os ouvidos de pessoas como, veja bem, o ex-Deputado Agostinho Branquinho, que estará certamente muito contente se estiver a ouvir o debate, e os interesses instalados relativamente a este sector e que se movimentam na sombra, ou às claras, no que respeita ao projecto que o Governo tem para a comunicação social.
O País não tem dinheiro, Sr.ª Deputada, é para continuar a deixar intocadas as transferências para os paraísos fiscais, para continuar a não taxar as transacções bolsistas ou para continuar a deixar impoluto e intacto o património de luxo. Quando propusemos medidas concretas para ir buscar o dinheiro onde ele está, os senhores recusaram.
Por isso, não venham acenar com as contas e os milhões para dizer que o serviço público é um alvo a abater, porque, do nosso ponto de vista, é uma medida de cultura a defender.
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr.ª Deputada Inês de Medeiros,
Agradeço a questão que colocou na parte final do pedido de esclarecimento.
Muitas das críticas que dirigiu ao PSD são justas e, eventualmente, poderiam ter sido colocadas com muito vigor e com grande oportunidade aquando do debate do Orçamento do Estado para este ano. Se bem me lembro, surgiu da parte do PS a questão da privatização da RTP durante o debate das privatizações, sendo que nessa altura manifestámos grande preocupação.
Disse, há pouco, que o PS não tem qualquer mal-estar nesta discussão. Resta-nos constatar que é com alguma facilidade que o PS se conforta e se sente bem com estas discussões, mesmo quando aconteceram, num passado não muito distante, várias situações como a de o PS ter deixado, no ano passado, no articulado da lei da televisão, abertura para a entrega da gestão do serviço público aos privados — e isso aconteceu no debate sobre a lei da televisão —; ou de, ao longo dos anos, ter havido um subfinanciamento crónico do lado das indemnizações compensatórias, que foi criticado e reconhecido pela Comissão Europeia durante os
sucessivos governos, incluindo os do PS.
Portanto, ao longo de anos, tem existido, dá-me vontade de dizer, a política de «se um diz mata, o outro diz esfola». No entanto, «se um diz mata, baixinho, o outro diz esfola muito alto». E, mais do que uma opção mais à esquerda ou mais à direita, o que temos visto da parte dos sucessivos governos é uma tentativa de ir mais depressa ou mais devagar.
Aquilo que está em causa na RTP é a degradação do serviço público, inclusive nas delegações regionais, e as precárias condições de trabalho dos seus profissionais.
No que diz respeito à gestão, em relação à qual manifestámos grandes preocupações, dizemos que, sim, é preciso racionalizar a gestão, mas isso não significa cortes cegos como os que têm vindo a acontecer, muito menos aceitar «de cruz» qualquer plano de reestruturação, ainda por cima este plano secreto que foi ocultado dos trabalhadores da empresa.
O que dizemos é que tem de ser travada uma luta não só dentro da empresa com os seus trabalhadores e em defesa do seu futuro mas também pelo País, pelos cidadãos, em defesa do serviço público de televisão.
Mesmo que agora apareçam alguns de uma formal mais sonora e visível nesse combate, dizemos: seja bem-vindo quem vier por bem a esta luta; contudo, já há muito tempo que certas medidas de defesa do serviço público e do operador público de televisão e de rádio deveriam ter sido tomadas.
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr. Deputado Luís Fazenda,
Saúdo-o também pelas questões que colocou e pela posição que aqui assumiu.
Está mais do que evidente há bastante tempo que não é por uma questão de poupança, não é por uma questão de contas, que está a assistir-se a este ataque à RTP e ao serviço público de rádio e de televisão, e, de resto, também à agência noticiosa Lusa, empresa que deveria ser de
todos nós.
Está mais do que evidente que o que está em causa é um ataque deliberado do ponto de vista das opções ideológicas e, ainda mais, do ponto de vista dos interesses que estão em cima da mesa.
Quando verificamos que há uma desculpa do ponto de vista da despesa e confrontamos a empresa RTP e a sua receita operacional com as congéneres europeias, então chegamos facilmente à conclusão de que esta é uma falsa questão.
Esta falsa questão, quando muito, pode ser utilizada para aperfeiçoar os mecanismos de receita do serviço público de televisão e não para degradar e minar o serviço público tal como está na estratégia do Governo e da maioria que o suporta.
Isto é também um alerta para aqueles que, criticando a forma como o serviço público de televisão é levado a cabo, às tantas, acabam por dizer «se isto é um serviço público, então, não o queremos, fiquem com ele».
Muito pelo contrário, nós, que sempre criticámos quando era e é de criticar a forma errada, abusiva e governamentalizada como tantas vezes o serviço público de televisão tem sido levado a cabo, dizemos que não podemos dar-nos ao luxo de deitar fora a democracia com as críticas aos desvarios que, em nome dela, se fazem.
Desse ponto de vista, o serviço público é indispensável, sim, senhor. Desse ponto de vista, o serviço público implica empresas públicas, sector público, que sejam de todos e não de
alguns, ao serviço do povo e do País! Porque a última coisa de que este País precisa, Sr. Deputado Luís Fazenda e Srs. Deputados do PSD, do CDS e do PS, é de uma espécie de parceria público-privada de novo tipo, como as que em alguns países da Europa começam a despontar.
Veja-se o caso da Estónia, e outros. Mas havemos de falar sobre isso.
O que está em causa é que o dinheiro público é gerido muito bem quando há vontade política para o fazer.
O Estado pode ter vocação para defender os interesses de quem está no poder, mas o problema, aqui, é saber que interesses é que estão a ser servidos.
Por nós, tem que haver uma mudança de políticas. E essas políticas diferentes, essa rotura que tem que ser feita ao serviço do povo e do País implicam que haja uma orientação profundamente diferente e que não esteja na linha do que este Governo e esta maioria preconizam.

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