Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-Geral, Audição com Comissões de Utentes de serviços de saúde

«Só o reforço do SNS pode melhorar a prestação de cuidados de saúde»

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Como o PCP tem vindo a afirmar, o Serviço Nacional de Saúde tem sido, desde há muito, o alvo preferencial a abater por parte dos grupos económicos da área da saúde e dos partidos da política de direita que no plano político e institucional têm vindo a alimentar e a suportar esta ofensiva.

E se até há algum tempo atrás o grande objectivo era transformar o SNS numa plataforma de transferência de dinheiros públicos para esses grupos, hoje está claro que esse objectivo é pôr fim ao SNS tal como foi concebido e que está plasmado na Lei de 15 de Setembro de 1979.

Hoje já não escondem que o verdadeiro objectivo passa pela criação de um sistema de saúde com duas componentes: uma, de serviço público, desvalorizado, com garantias mínimas de prestação de cuidados, direccionado para os pobres; e, um outro, centrado nos seguros de saúde e na prestação privada de cuidados. Ou seja, pretendem retirar ao Estado a sua função de prestador de cuidados através de um SNS para todos os portugueses, atribuindo-lhe apenas as funções de regulador e financiador.

Como é amplamente conhecido, nos países em que tais soluções têm sido adoptadas uma parte muito significativa da população ficou sem cobertura de qualquer sistema de saúde organizado.

O PCP tem chamado a atenção para as dificuldades no funcionamento do SNS e reafirma a sua oposição à forma como o Governo do PS tem conduzido a política de saúde, mas não podemos nesta altura deixar de reafirmar a postura demagógica e cínica de dirigentes do PSD e CDS, alguns que passaram pelo Governo de Passos Coelho/Portas e Cristas, provavelmente o governo que mais prejudicou o SNS e os direitos dos portugueses no acesso à saúde, virem agora lamentar-se de uma situação em que têm particulares responsabilidades.

Mas os ataques ao SNS não são iniciativa recente. Logo em 1982, três anos após a entrada em vigor da Lei do SNS, este foi alvo de uma tentativa de destruição através da proposta legislativa do Governo de coligação PPD/PSD-CDS/PPM que visava a alteração de cerca de quarenta artigos da Lei que o instituía. A tentativa gorou-se tendo o Tribunal Constitucional feito pronúncia em oposição ao conteúdo da iniciativa Legislativa.

Neste mesmo ano são introduzidas as taxas moderadoras, com o argumento de que desta forma seria possível moderar a ida dos portugueses às unidades do SNS. Logo na altura, e hoje está amplamente confirmado que o grande objectivo, com o recurso acrescido a copagamentos, era pôr as famílias a pagarem uma parte significativa das despesas em saúde. E se dúvidas existissem, com a alteração constitucional de 1989 que pôs em causa o princípio da gratuitidade, substituindo o termo “gratuito” por “tendencialmente gratuito”, abrindo a porta para que em 1992 fosse alargado o regime de taxas moderadoras, o facto das famílias portuguesas serem das que mais pagam directamente do seu bolso as despesas em saúde (27% do total, uma das maiores taxas da União Europeia), confirma que o verdadeiro objectivo da introdução das taxas moderadoras, não era moderar o acesso.

Desde 1979 até agora, podemos encontrar em todas as legislaturas sinais evidentes da ofensiva contra o SNS. Mas é particularmente com o Governo PSD/CDS-PP, entre 2011 e 2015, que as opções da política de direita se fizeram sentir com maior agressividade.

Coincidindo com o Pacto de Agressão assinado entre a troika nacional e internacional, os cortes na despesa entre 2010 e 2013, foram superiores a 1.300 milhões de euros, fazendo com que a despesa pública em relação ao PIB entre 2010 e 2015, passasse de 9,9% para 9% e que a despesa gasta por habitante em 2015 fosse de 1.989 euros, cerca de 30% abaixo da despesa média na UE, que é de 2.797 euros/habitante.

Este foi o período em que se fez sentir o maior decréscimo de camas de agudos nos hospitais do SNS, mais de 3.000, ao mesmo tempo que cresciam nas unidades hospitalares dos grandes grupos privados, mais de 2.500.

Ou seja, à medida que avançou a ofensiva contra o SNS, cresceram as dificuldades deste em prestar cuidados, enquanto os grupos privados viam crescer as oportunidades de negócio e a transferência de dinheiro público para as suas contas.

São evidentes os sinais crescentes de fragilização do SNS, fruto de anos de política de direita. A ofensiva contra o SNS tem no subfinanciamento crónico, na desorganização estrutural, na ausência de planeamento e na restrição de recursos humanos e materiais, na desvalorização profissional e remuneratória dos seus profissionais de saúde, na degradação das condições de trabalho e no aumento da promiscuidade entre o público e o privado, algumas linhas de ataque ao SNS.

Dificuldades a que não é alheia uma ofensiva prolongada no tempo a que tem sido sujeito o SNS. O conjunto dos problemas que afectam o funcionamento das unidades de saúde, com consequências sobretudo nos tempos de espera e na qualidade do serviço prestado, têm ganho expressão nos últimos meses.

É neste quadro muito complexo e perigoso que, no próximo dia 23 de Janeiro, terá início na Assembleia da República, o debate sobre a revisão da Lei de Bases da Política de Saúde.

Já em Abril o PCP declarou que a defesa e desenvolvimento do SNS não passava nesta fase, pela alteração da Lei de Bases da Saúde em vigor. Lei contra a qual o PCP votou contra no ano de 1990, mas por uma alteração profunda da política do governo para o sector. Afirmámos igualmente que se algum partido desse início ao processo de revisão da Lei, o PCP não deixaria de intervir autonomamente com o seu próprio projecto.

As preocupações que tínhamos e que se mantêm, faziam e fazem todo o sentido. Basta olhar para o conjunto das propostas apresentadas, para verificarmos não estarem garantidas as condições para uma revisão progressista da Lei, apesar do projecto do Governo, ter melhorado relativamente à proposta apresentada inicialmente por Maria de Belém e agora adoptada por PSD e CDS.

O projecto de Lei apresentado pelo PCP estabelece de forma inequívoca o papel do Estado na garantia do acesso de todos os portugueses aos cuidados de saúde e o fim da promiscuidade entre o público e o privado, uma doença crónica que tem afectado o SNS.

A proposta do PCP obriga ao cumprimento do imperativo constitucional que coloca como incumbência do Estado garantir o cumprimento do direito à protecção da saúde, individual e colectiva, que assegura a robustez da força de trabalho, o desenvolvimento e o progresso económico e social e a coesão nacional, e que a entende como instrumento de governação que contribui para a salvaguarda da soberania nacional e a autodeterminação popular.

Uma proposta centrada nas pessoas e no seu bem-estar ao longo de todo um percurso de vida de qualidade. Uma proposta progressista e que fortalece o Serviço Nacional de Saúde e rompe com a política de direita para a saúde.

Uma proposta que assenta numa abordagem transdisciplinar que exige opções governativas que coloquem a saúde no centro de todas as políticas, permitindo-se a intervenção sobre os determinantes sociais da saúde e de produção de doença, tais como na pobreza e exclusão social, no emprego, na habitação, na qualidade da água e do ar, no acesso aos serviços de educação, saúde, serviços sociais e transportes.

Uma política de saúde que assente no planeamento em recursos humanos, materiais, tecnológicos e financeiros e na monotorização de desempenho de forma completa, integrada e discriminada adequando-a às necessidades identificadas e às aquisições do progresso científico e tecnológico.

Por isso propomos que o Estado seja o financiador, o prestador e o regulador e não um Estado que se demite por via da transferência de atribuições, competências e recursos para terceiros, designadamente para os grandes grupos privados que operam na saúde.

Na nossa proposta não há lugar para as Parcerias Público Privadas, para Entidades Públicas Empresariais, por isso a nossa proposta integra a extinção das unidades de saúde que funcionam em regime de PPP e EPE.

Na nossa proposta o Serviço Nacional de Saúde, retoma os seus princípios fundadores: Universal, Geral e Gratuito.

Como temos vindo a afirmar ao longo dos anos, não há Serviço Nacional de Saúde sem Profissionais. Neste sentido o nosso Projecto de Lei assenta numa política de recursos humanos que assegura a existência de um número adequado de profissionais que permita satisfazer as necessidades da população em cuidados de saúde, através do correcto dimensionamento das dotações de trabalhadores e a sua distribuição pelo território nacional.

Uma política que tem como trave mestra a existência de condições de trabalho dignas, a integração de todos os profissionais nas carreiras e com remunerações adequadas, de forma a incentivar e valorizar o regime de trabalho a tempo completo, a dedicação a tempo completo e a dedicação exclusiva ao SNS.

A luta das populações e dos trabalhadores em defesa do SNS, é parte da luta por melhores condições de vida e de trabalho, não apenas porque é um efectivo obstáculo à concretização dos projectos do grande capital, mas porque é indispensável à promoção da saúde e ao desenvolvimento do País.

As principais vítimas da situação que se vive hoje no SNS – os utentes – vêem com angústia desaparecer a garantia de cuidados de saúde gerais, universais e gratuitos que a Constituição da República Portuguesa lhes concedera; assistem ao desaparecimento de direitos e de unidades de cuidados de saúde; sofrem com escandalosas listas de espera para as consultas e tratamentos e, simultaneamente, são chamados a pagar do seu bolso uma parte significativa dos gastos em saúde.

Aos portugueses que muitas vezes perante a doença têm muitas dificuldades em aceder aos cuidados de saúde de que necessitam e por esse facto se tornam alvos vulneráveis da retórica dos arautos da política de direita na saúde, é preciso esclarecer que a intervenção de cada um na defesa dos seus direitos é fundamental para defender o acesso à saúde e que não é nos grupos privados da saúde que vão encontrar o porto seguro que lhes é permitido.

Façamos a avaliação que fizermos sobre o SNS, não encontramos alternativa à melhoria da prestação de cuidados de saúde que não seja reforçar o SNS, única forma de garantir a universalidades de cuidados.

E já agora quem faz melhor e mais barato é o público e não o privado.