Jerónimo de Sousa na homenagem a José Dias Coelho

Foi aqui, nesta rua de Alcântara que hoje muito justamente tem o seu nome que, em 19 de Dezembro de 1961, José Dias Coelho, o homem de cultura, o artista e militante revolucionário, o funcionário do Partido Comunista Português, clandestino, tombou assassinado às balas de uma brigada da P.I.D.E.

É esse homem generoso a quem o fascismo ceifou a vida aos 38 anos, que tudo arriscou e tudo sacrificou incluindo a sua carreira artística como escultor para se dedicar por inteiro à luta de libertação do seu povo e do seu Partido, que aqui hoje homenageamos evocando as várias dimensões da sua vida e a sua dedicação total ao combate pelo derrube do fascismo e pela democracia e pelo socialismo.

Exemplo de vida vertical e de dignidade revolucionária que os 45 anos que nos separam do seu brutal assassinato não conseguem apagar.

Não apenas porque o belo poema e a canção nos foi sempre interpelando e recordando “que a morte saiu à rua num dia assim” denunciando “ em toda a parte que o pintor morreu”, mas essencialmente porque na memória da luta colectiva do nosso povo e do Partido Comunista Português jamais o seu nome, a sua obra, a sua actividade revolucionária deixaram de estar presente na luta que prosseguimos e que ele honrou com o seu trabalho e a sua vida de “artista militante e militante revolucionário”, como disse Margarida Tengarrinha, sua companheira de luta na vida na vida clandestina e mãe das suas duas filhas e também ela “militante revolucionária e artista militante”.

Nascido em Pinhel, em 1923, José Dias Coelho, o quinto de nove irmãos, deixa a terra que o viu nascer para acompanhar o seu pai, escrivão de profissão, e a sua família para se fixar em Lisboa, em 1938, depois de sucessivamente ter passado por Coimbra e Castelo Branco, onde frequentou o liceu.

Nesta altura já os seus desenhos e as caricaturas expressivas dos seus professores e colegas anunciavam um talento invulgar.

O mundo vivia, então, o pesadelo do avanço do fascismo.

Aqui no seu país, via nessa altura todas as organizações do movimento operário a ser ilegalizadas e os partidos políticos proibidos e uma sociedade acorrentada com a aplicação de medidas preventivas da censura à imprensa e a toda a produção cultural, a supressão do direito de reunião e associação e o encerramento gradual dos jornais democráticos que abriam caminho e aprofundavam uma ofensiva violenta contra o movimento operário e as forças democráticas.

Ofensiva brutal, sustentada numa acção e vigilância policial terrorista e numa política cultural que, paulatinamente, a exemplo de outras paragens, coloca como primeira preocupação a construção e consolidação do domínio político e ideológico da ditadura.

Uma política cultural claramente assumida como propaganda, falsamente denominada nova “política de espírito” e contra a qual José Dias Coelho não tardará a combater, com denodada coragem, em múltiplas lutas com outros companheiros, mas também com iniciativa própria, abrindo espaço e rompendo o cerco ao apertado controlo sobre a produção cultural da ditadura de Salazar e as suas práticas censórias e manipuladoras, que impunham as estritas regras que no plano estético, social e moral deviam conformar a produção cultural.

Mas também aqui logo ao lado, do outro lado da fronteira, na Guerra Civil de Espanha, com os fascistas de Franco, apoiados por Hitler e Mussolini e pela ditadura que aqui, deste lado, se consolidava, progredindo no caminho pejado de sangue que afogou a Espanha Republicana e a Frente Popular e ameaçava submergir a Europa e o mundo.

Guerra Civil que aprendeu a ver, também pelo olhar de seu pai, um velho republicano, que inconformado perante a ignomínia da liquidação do regime republicano, livremente escolhido pelo povo espanhol, o denunciava como um crime.

Foi nesse olhar, para lá da fronteira, que reteve e mais tarde descobriu a Guernica de Picasso e a pomba por ele desenhada para o Movimento Mundial da Paz que o vão marcar não apenas no plano artístico, mas também no plano político.

É no contexto de domínio total da Península Ibérica pelo fascismo com o desfecho dramático da Guerra Civil de Espanha, em 1939, e do eclodir da II Guerra Mundial que ao jovem José Dias Coelho se vêm abrir as portas de uma consciência colectiva que integra a arte e a resistência.

É em Lisboa, no Colégio Académico, onde conclui os estudos liceais que toma contacto com algumas das mais destacadas figuras da cultura portuguesa do período da ditadura.

Entre estudos e tertúlias conhece mais artistas e não tardará a entrar, depois de uma passagem pela tropa, para a Escola de Belas Artes de Lisboa, onde vai cursar arquitectura e depois se fixar na escultura.

O início da sua actividade partidária coincide com a reorganização do PCP dos anos 40/41, que nessa altura supera as dificuldades e as fragilidades organizativas da brutal ofensiva repressiva dos anos trinta da ditadura e se afirma como um grande partido nacional, com influência na classe operária e nos meios intelectuais e estudantis.

É um tempo de grandes lutas e de uma grande dinâmica do movimento de oposição à ditadura.

Dias Coelho participa nas actividades do MUNAF – Movimento de Unidade Nacional Antifascista e após o fim da II Guerra Mundial, nas actividades do MUD – Movimento de Unidade Democrática, participando nos trabalhos da sua Comissão de Escritores e Artistas Democráticos e na subcomissão dos Artistas Plásticos que projectam o seu combate de confronto com o regime de Salazar lutando por dar espaço ao papel libertador da arte.

Trabalho que abriu caminho à organização da primeira Exposição Geral das Artes Plásticas, como espaço de confluência de artistas de várias correntes e sensibilidades, liberto das pressões de carácter político ou estético.

A única condição para a participação era a comum aceitação de não pactuar com a orientação definida pela “política do espírito” da ditadura, nem colaborar com o fascismo.

Como artista, teve uma participação activa na Organização das Exposições Gerais, fazendo parte do núcleo organizador inicial, mas também como expositor nas exposições que a partir de 1946 se vão realizar e prolongar pelos dez anos seguintes.

Exposições Gerais que vão desempenhar um inquestionável papel, quer na renovação do panorama artístico português, no combate ao preconceito e aos obscurantismos estéticos, quer no desenvolvimento e fortalecimento da unidade antifascista dos intelectuais portugueses.

Por lá passaram artistas consagrados, lado a lado, com as novas camadas de artistas que, também eles, se haveriam de afirmar no futuro como criadores marcantes da arte portuguesa e que Dias Coelho contava como amigos, junto dos quais manteve uma influência política e com os quais travou importantes batalhas pela dignificação da cultura e das instituições culturais, mas também outras pela Paz e no decurso das quais sofreu as consequências do arbítrio e da repressão fascista.  

Dias Coelho, tal como Margarida Tengarrinha são expulsos de todas as escolas do país e impedidos de leccionar.  

Nas Exposições Gerais das Artes Plásticas foram acolhidas pela primeira vez a fotografia como expressão artística e deu-se também um grande incremento à gravura. Essa forma de arte que José Dias Coelho executou durante os anos que viveu na clandestinidade, para ilustrar peças da imprensa clandestina nomeadamente para sublinhar artigos do nosso “Avante!” e de muitos outros órgãos da imprensa revolucionária e que, nestes anos de liberdade de Abril, continuaram a avivar e animar as páginas do nosso “Avante!” e do nosso “Militante”.

Foi neste espaço congregador da diversidade da criação artística que se aglutinou o que de mais válido e significativo surgiu nas artes plásticas em Portugal, não sem que tivessem que enfrentar a violência repressiva da ditadura, como aconteceu na 2ª Exposição Geral das Artes Plásticas que a PIDE invade e confisca 12 obras de 10 autores, para no ano seguinte prender João Abel Manta que tem em José Dias Coelho o companheiro da activa solidariedade e do protesto que então encabeçou.

A actividade de José Dias Coelho desdobra-se entre o trabalho artístico, a actividade e a intervenção política e social.  

Estará no apoio e em tarefas de organização na candidatura do general Norton de Matos à Presidência da República e é em plena campanha, no dia 1 de Janeiro de 1949, que a PIDE o prende e o encerra incomunicável durante 10 dias, no Aljube.

Dias Coelho teve uma activa participação em todas as lutas estudantis e políticas dos anos quarenta e cinquenta.

É na luta que conhece e se liga, com grande amizade, a alguns dos mais importantes dirigentes dos movimentos de libertação nacional das colónias portuguesas, como Agostinho Neto e Amílcar Cabral e é no decurso das actividades antifascistas que se relaciona com as mais destacadas figuras da cultura literária portuguesa com quem partilha não apenas a amizade, mas uma intervenção comum na luta antifacista.

Quando se realiza a última Exposição Geral, em 1956, há um ano que mergulhara na luta clandestina contra o regime que oprimia o seu povo, como funcionário do Partido Comunista Português.

Nesse Outono de 1955, Dias Coelho deixava para trás as primeiras encomendas públicas de escultura e a sua mais que certa consagração como artista de grande nível.

Deixava para trás os convívios e as tertúlias que dinamizava com a introdução de temas sociais e políticos. Deixava os amigos.

Deixava tudo para se dedicar “por inteiro e definitivo contra um mundo velho e feroz”, como o relembrou José Cardoso Pires na sentida homenagem que lhe prestaram na Sociedade de Belas Artes os seus companheiros, os seus amigos e os seus camaradas que, apesar de submersos nas tarefas de construir o futuro e quando ainda a Revolução Abril dava os seus primeiros passos, convocando todas as memórias de um tempo de muitas lutas e de um homem que se define na sua própria poesia, quando diz:

“em toda a parte há um espaço
de mim que se quer dar”

Foi deste dar de muitos mil pedaços que se construiu a Resistência em Portugal e que ele próprio, já clandestino e com a colaboração de Margarida Tengarrinha, transformou em “Crónicas da Resistência” escritas por incumbência do seu Partido e para mostrar a luta heróica da Resistência ao fascismo e o papel de vanguarda dos comunistas portugueses nesse combate sem tréguas pela liberdade e pela democracia.

José Dias Coelho sabia o alcance da sua decisão de escolher a vida de funcionário clandestino.

Sabia o caminho dos grandes perigos que era preciso percorrer até à liberdade, ou à prisão ou à morte.

Esse caminho de “obscura heroicidade” como ele próprio o caracterizou para nos dar conta da vida de gerações de outros clandestinos.

Decisão que revela a nobreza e a firmeza das suas convicções quando aceita trocar a perspectiva de uma vida artística promissora e a consideração de uma vida cheia de relações sociais pela modesta, mas essencial tarefa de por de pé uma oficina de falsificação de documentos destinados à defesa dos camaradas clandestinos.

É perante homens e mulheres desta dimensão que nos vem à memória aquele elogio de Brecht ao trabalho clandestino que nos afirma e nos interroga:

“Árdua e útil é a pequena tarefa de cada dia.
Que secreta e tenaz tece
A rede do partido sob
Os fuzis apontados dos capitalistas:
Falar mas escondendo o orador,
Vencer, mas escondendo o vencedor,
Morrer, mas dissimulando a morte “ …..

“Pela glória, quem não faria grandes coisas?
Mas quem as faz pelo olvido?”….

Muitas outras tarefas tomará nas suas mãos no virar da década de sessenta, essa década do “Rumo à Vitória”.

Uma década  que José Dias Coelho inicia com a sua integração na direcção do Partido de Lisboa, com a responsabilidade do sector intelectual.

É o regresso ao trabalho de construção da unidade antifascista junto dos intelectuais, concretizando a sua extraordinária capacidade para se ligar e, com essa ligação, unir outros e alargar a influência do Partido.

A sua última tarefa será a preparação do trabalho unitário da campanha das eleições fascistas de Novembro de 1961 que a Oposição aproveitava para desmascarar a guerra colonial que havia rompido no início desse mesmo ano.

Era o tempo de agudização de todas as contradições da ditadura e que vão delimitar um momento particularmente vivo de virtualidades para o futuro.

O ano de 1960 tinha-se iniciado com a fuga de Peniche que restituiu à liberdade o camarada Álvaro Cunhal e outros dirigentes do Partido.

É um tempo de apontar novos caminhos, de rectificar orientações, de combinar a intervenção clandestina com a luta legal e semi-legal, assente numa base de massas, particularmente no movimento social dos trabalhadores visando um "levantamento nacional" contra o regime.

Um tempo de crescimento e reanimação das forças democráticas.

Tempos de reanimação de grandes lutas de massas, que prosseguirão nos anos seguintes, e de grandes derrotas políticas para o regime que acentuam o seu isolamento interno e internacional, dando origem a novas divisões e conflitos no seu próprio campo.

Contradições e dificuldades que a ocupação do Santa Maria, a tentativa de Golpe de Estado de Botelho Moniz, os acontecimentos da Índia e, no final desse ano de 1961 o levantamento do Quartel de Beja, evidenciam.

Dias antes do assassinato de José Dias Coelho, a ditadura e o seu aparelho repressivo sofriam mais uma dura derrota com a fuga de Caxias de dirigentes e militantes comunistas.

Acontecimentos que faziam estremecer os alicerces do regime.

A repressão era mais uma vez o único recurso de uma ditadura odiosa e em crescentes dificuldades.

Nos anos de 60 e 61, o PCP, a força impulsionadora de resistência ao fascismo, sofria mais uma vez as consequências da vaga repressiva que a todo custo e sem olhar a meios prendia, torturava e matava.

José Dias Coelho caiu para sempre tecendo armas neste combate desigual pela liberdade do seu povo, pela democracia, pelos ideais do socialismo.

A vida de um revolucionário chegou ao fim, mas não a luta que ele honrou com o seu exemplo de firmeza serena, de convicções e de carácter que nós, com orgulho comunista, queremos guardar para sempre como património da nossa luta colectiva para se projectar no futuro, na nossa luta e na afirmação do nosso projecto comunista por um Portugal mais livre, mais justo e mais solidário..

25 de Abril sempre!
Fascismo nunca mais!