Jerónimo de Sousa defende SNS

Nesta sessão pública que se integra na campanha do PCP em defesa do
Serviço Nacional de Saúde, com o lema “A saúde é um direito, não é um
negócio”, fica claro, mais uma vez, a contradição entre o discurso do
governo e o drama vivido por centenas de milhar de utentes que habitam
aqui na Península de Setúbal.

O governo diz que está a resolver os problemas e que não há alternativa
à sua política para a saúde. Os utentes, como ficou claro no conjunto
dos relatos aqui trazidos nas várias intervenções que me antecederam,
falam na falta de médicos de família, nos meses e anos à espera de uma
cirurgia, nos custos cada vez mais elevados com a saúde, na falta de
qualidade que se começa a fazer sentir na prestação de cuidados, nas
consequências para os utentes com os encerramentos de serviços públicos
de saúde concretizados e previstos.

Estamos no meio de uma persistente ofensiva contra o SNS, que ao longo
destes mais de 25 anos, causou danos no funcionamento dos serviços
públicos, que só a dedicação e o profissionalismo da grande maioria dos
trabalhadores de saúde, impediu, não só que tivessem consequências
ainda mais graves, como até há bem pouco tempo o tornaram no 12º melhor
a nível mundial, à frente de outros como os EUA, a Inglaterra ou o
Canadá, de acordo com a classificação atribuída pela Organização
Mundial de Saúde.

Hoje podemos afirmar que não tivesse sido este empenhamento e a luta
das populações que exigiram na rua a construção dos Hospitais de Almada
e do Barreiro e de muitos dos Centros e Extensões de Saúde que hoje
estão em funcionamento, a situação seria bem mais difícil.

O que se está a passar na saúde é o resultado dos ataques a que tem
sido sujeito o Serviço Nacional de Saúde desde a sua criação, quer por
parte da direita política em muitos momentos acompanhada pelo PS, quer
de interesses localizados e de grupos. Não satisfeitos com os danos
causados ao povo português, hoje vão ainda mais longe e já falam em
erro histórico quando se referem ao SNS, ignorando propositadamente os
ganhos em saúde, como os 75 anos de esperança de vida à nascença ou uma
das mais baixas taxas a de mortalidade infantil a nível mundial
(5/1000), sendo verdade que para estes indicadores não contribuiu
apenas o Serviço Nacional de Saúde.

Os números não enganam. Mais de 20% da população da Península de
Setúbal não tem médico de família e milhares de utentes estão entre os
mais de 230 mil portugueses que aguardam uma cirurgia.
Não estamos nem perante uma inevitabilidade, nem numa situação
irreversível. Este é o resultado de uma política que procurou, ao longo
destes anos de SNS e agora mais abertamente, criar dificuldades ao
funcionamento dos serviços públicos de saúde, subfinanciando-os,
realizando uma política de gestão de recursos humanos errada, com
restrições ao nível da formação e ausência de incentivos na fixação de
profissionais nos cuidados primários, cujas consequências já se fazem
sentir no plano da qualidade, tudo isto acompanhado de uma injusta
adopção do princípio do utilizador/pagador.

A receita é muito simples - primeiro cria-se um ambiente hostil aos
serviços públicos de saúde, para depois aparecerem as medidas
suportadas na tese do primado do privado sobre o público.

Estamos pois perante uma situação em que os detractores do SNS fazem “o
mal e a caramunha”. Primeiro criam dificuldades ao SNS e depois vêm
dizer que a solução, a alternativa está nas Parceria Público-Privadas,
coisa que os grandes grupos privados já consideram insuficiente,
defendendo que o Estado exerça apenas o papel de regulador, invista na
promoção da saúde e deixe aos privados a medicina curativa, que é a
parte mais rentável de um mercado que está em construção e que lhes vai
permitir, caso não se inverta o caminho, ter acesso a lucros fabulosos.

Há quem diga que estamos perante um política de rigor orçamental, que
os recursos do país não são inesgotáveis, que o Estado não sabe gerir.
Nada mais falso. As opções deste governo, tal como já tinha acontecido
com anteriores governos, quer do PS, quer da direita, são ideológicas,
cuja matriz assenta na desresponsabilização do Estado e na
mercantilização desta importante função social do Estado. Já hoje é
inequívoco o sentido das decisões que têm vindo a ser tomadas, apesar
da bondade do discurso ainda deixar muita gente na expectativa, que são
o resultado dos compromissos assumidos entre o poder político e os
grupos privados da saúde.
 
O Governo procura sistematicamente justificar as suas medidas com
estatísticas manipuladas, com “relatórios técnicos” feitos à medida das
suas opções e, sobretudo, com a cega obsessão pela redução do défice
das contas públicas.

É assim que se justificam os encerramentos de dezenas de SAP's por todo
o país, deixando as populações, particularmente as do interior,
suficientemente longe de uma urgência que, em alguns casos, pode
representar a diferença entre a vida e a morte. Foi assim que se
justificou o encerramento de maternidades, numa atitude inaceitável de
imposição de princípios e critérios aos organismos públicos que não se
aplicam aos privados. O mesmo acontece com a proposta de reestruturação
das urgências hospitalares. Sem que se tenha criado uma alternativa
credível deixando mais de 1 milhão de portugueses a mais de 60 minutos
de uma urgência polivalente.

Estamos perante um modelo de cuidados de saúde que é injusto e
profundamente desumano. Veja-se por exemplo o que se está a passar com
as prioridades da construção de novos hospitais, em que os resultados
dos estudos encomendados concluem de forma diversa, dando cobertura
desta forma ao vazio de decisão de construir, como é o caso do novo
Hospital aqui no Seixal, mas simultaneamente um conjunto de grandes
hospitais e clínicas de grupos privados, vão nascendo como cogumelos na
Área Metropolitana de Lisboa. Daqui por algum tempo vamos ter
certamente o governo a dizer que não vale a pena investir na construção
de hospitais do serviço público porque já existem camas suficientes.
Algumas delas estão certamente integradas nas 2000 que o grupo Mello
quer ter em funcionamento em 2010.

Podemos encontrar os mesmos objectivos nas decisões que têm vindo a ser
tomadas para os cuidados primários, nomeadamente na criação das USF
(Unidades de Saúde Familiar). Nós tivemos oportunidade de afirmar
(quando muitos viam nesta medida a solução para todos os males de que
padecem os cuidados primários) que a decisão de avançar no actual
quadro político, vai permitir que os privados substituam o serviço
público candidatando-se a estas Unidades a partir de Dezembro de 2006.

Os números não enganam. As propostas entradas até à data de hoje são
117 com ganho em utentes que passam a ter médico de família serão mais
162 mil. Mas se considerarmos que apenas 105 foram aprovadas isto
significa que os ganhos andarão na ordem dos 130.000 /140.000 para
cerca de 1 milhão de portugueses que não têm médico de família. Estão
pois criadas as condições para que em Dezembro o Governo venha
justificar a possibilidade de entidades privadas se candidatarem à
abertura de USF.

Desta forma encontra-se a resposta para uma grande ambição dos grandes
grupos privados que é terem na área de influência dos seus hospitais as
suas unidades de cuidados primários.

Os portugueses têm vindo a ser penalizados com custos cada vez mais
elevados dos medicamentos, quer para o Estado quer para os utentes,
como se pode verificar no facto de em 2004 as despesas com medicamentos
atingirem mais de 23%  das despesas de saúde. No Orçamento de
Estado para 2007, o Governo afirma que o balanço entre a baixa de 6%
nos medicamentos e a diminuição das comparticipações mais o aumento das
taxas moderadoras, traz uma vantagem de 120 milhões de euros para os
utentes. Mesmo que assim fosse, o que é duvidoso, nos anos seguintes
não teremos certamente diminuições de 6% e no entanto as taxas
moderadoras continuarão a aumentar e não se recuará na política de
descomparticipação. Mas o que o Governo não diz é que o Estado e os
portugueses em 2005 pagaram a mais cerca de 203 milhões de euros em
medicamentos vendidos nas farmácias, pelo facto de os 100 medicamentos
mais vendidos que representam 33% do mercado nacional de medicamentos,
custarem em média mais 18% do que a legislação permite.
 
Por mais elaborada que seja a retórica do Primeiro-ministro e do
Ministro da Saúde, já não lhes é possível esconder o que há muito temos
vindo a denunciar: a sua política de saúde está ideologicamente marcada
pelo compromisso de destruir o Serviço Nacional de Saúde e abrir o
espaço para que os grupos privados o substituam.

Não venham com a estafada tese de que defendemos tudo tal como está!

O quadro está muito claro. De um lado estão os que defendem uma reforma
democrática do SNS, como garante do acesso em equidade aos cuidados de
saúde por parte de todos os portugueses, do outro os que o querem pura
e simplesmente destruir para que desta forma o acesso e a qualidade dos
cuidados de saúde fiquem dependentes das regras do mercado, ou seja
quem quer saúde paga. Pela nossa parte defendemos um Serviço Público
que garanta o princípio da equidade de acesso, o que passa pela
gratuitidade da prestação de cuidados de saúde, eliminando as taxas
moderadoras ou de utilização que, como está confirmado, não moderam
nada e acrescentam muito pouco às receitas.

Neste contexto a luta das populações contra as políticas neoliberais na
saúde é fundamental para a defesa do SNS. A prova da importância destas
lutas está na resposta agressiva do discurso de membros do Governo e
outros dirigentes do PS, acusando aquelas de servirem estratégias
partidárias, leia-se do PCP. Apoiar as populações na defesa dos seus
legítimos interesses não é manipular. Manipular é vender «gato por
lebre» nas campanhas eleitorais e assumir compromissos que se sabe à
partida não quererem assumir.

Pelo movimento de protesto, de opinião, reivindicativo e de luta a que
dão forma, pelas possibilidades que têm, por informais, poderem
envolver amplas massas, as Comissões de Utentes são no momento presente
o mais seguro instrumento da luta popular em defesa do Serviço Nacional
de Saúde de qualidade. Por isso realçamos as lutas das populações que,
afectadas pelas actuais políticas, promoveram abaixo-assinados (com
centenas de milhar de aderentes a nível nacional), manifestações,
concentrações e outras iniciativas. Valorizamos o crescimento do número
de Comissões de Utentes dos diversos Serviços de Saúde viradas para a
resolução de diversos problemas de Saúde no plano local e/ou regional.
No entanto, dado o agravamento da crise no Serviço Nacional de Saúde,
são ainda claramente insuficientes para a necessária luta a travar.

Pela nossa parte temos continuadamente apresentado propostas para a
defesa e desenvolvimento do Serviço Nacional de Saúde que garantam o
direito constitucional do acesso de todos os portugueses aos cuidados
de saúde em equidade, independentemente do seu estatuto económico e
social.

Defendemos que uma verdadeira reforma dos cuidados de saúde primários –
em ruptura com a política que tem sido seguida – deve integrar medidas
de gestão e administração, de preenchimento e alargamento dos quadros
de pessoal, de instalações e equipamentos que lhes permitam autonomia
diagnóstica e terapêutica, com a duplicação dos recursos financeiros
para os Centros de Saúde no prazo de uma legislatura. É indispensável a
articulação entre os centros de saúde e os hospitais para a prestação
de cuidados de saúde de qualidade e em tempo.

A gestão de todas as unidades de saúde do SNS deve ser de carácter
público, não aceitando qualquer legislação que permita a privatização
dos Centros de Saúde e pondo fim aos contratos de gestão privada de
estabelecimentos públicos, abandonando as Parcerias Público Privadas
(PPP) no Serviço Nacional de Saúde e reintegrando os actuais Hospitais
EPE (Entidade Pública Empresarial) no Sector Público Administrativo
(SPA).

Na perspectiva de uma melhor articulação dos Serviços Públicos de
Saúde, há muito que consideramos ser necessária uma nova lei de gestão
dos Serviços de Saúde, democrática e participada pelo Poder Local, no
âmbito dos Sistemas Locais de Saúde, com novas regras, técnicas e de
competência, sendo a selecção dos órgãos de gestão feita por concurso
público.

Muitos dos problemas com que o SNS se confronta hoje são o resultado de
uma errada política de recursos humanos. Para obviar a esta situação é
urgente concretizar um programa de formação de profissionais de saúde,
nomeadamente em áreas de especialização de Cuidados de Saúde Primários,
obstetrícia e outras, que ponha fim à depauperação em meios humanos que
se está a verificar no Serviço Nacional de Saúde e que garanta a sua
sustentabilidade no futuro.

Fundamental para a resolução deste problema é abolir os numerus clausus
no acesso aos cursos de Medicina e Enfermagem. Deve promover-se a
estabilidade de emprego e das carreiras nos Serviços de Saúde,
essenciais à qualidade dos serviços prestados, com o consequente fim
dos contratos a termo certo para trabalho permanente e outras formas de
precariedade, e acabar com os contratos individuais de trabalho,
integrando os trabalhadores nestas condições, nos quadros de pessoal.

A racionalização da despesa com medicamentos está na ordem do dia. Como
forma de reduzir a despesa do Estado e sobretudo dos utentes com
medicamentos o PCP defende, entre outras medidas, que os medicamentos
prescritos nos Hospitais e Centros de Saúde - genéricos ou de marca –
devem ser aí dispensados gratuitamente, sempre que o seu custo para os
estabelecimentos do SNS seja menor que a comparticipação na compra em
farmácias.

Na prossecução do objectivo de racionalizar a despesa com medicamentos defendemos ainda:

- A necessidade de alargar o mercado dos genéricos, com o aumento da
sua divulgação e incentivando a sua prescrição. Enquanto se mantiver o
sistema de preço de referência, que pensamos dever ser abolido,
propomos a implementação de uma cláusula de salvaguarda para garantir
que o utente não é prejudicado na comparticipação, pelo facto de o
médico não autorizar a utilização de genéricos.

- Ser imperioso o alargamento da lista de medicamentos para doenças
crónicas e degenerativas, comparticipados a 100%, bem como devem ser
adoptados sistemas de comparticipação pelo SNS que garantam às pessoas
com recursos económicos mais limitados, a comparticipação especial de
mais 15%, sem os entraves burocráticos como os que foram criados pelo
actual Governo, para que dela beneficiem todos os que têm direito.

Por fim exigimos que se pare com o encerramento de serviços de saúde,
reabrindo-os ao serviço das populações, realizando uma planificação dos
serviços segundo os princípios de proximidade e racionalidade,
avaliando as condições de instalações e equipamentos, dotando-os de
meios técnicos e de profissionais para cumprirem a sua função com
eficiência.

E aqui chegámos a uma encruzilhada:
-    com as nossas propostas a saúde continuará a ser um direito;
-    com os planos e as políticas do Governo a saúde será um negócio.

Tudo faremos para que as populações possam um dia julgar e decidir qual
o caminho politicamente necessário e socialmente mais justo!