Intervenção

Intervenção da Deputada<br />Organização da Investigação

Senhor Presidente Senhor Ministro da Justiça Senhores Deputados A Proposta de lei sobre Investigação criminal, precisamente porque abarca uma área de espacial sensibilidade em que o cidadão se encontra perante o Estado e se confronta com o Estado, merece uma análise aprofundada. Estando em causa um modelo de investigação, um modelo que define e limita poderes do Estado, que define e limita direitos liberdades e garantias dos cidadãos, os contornos daqueles poderes e destes direitos na investigação criminal, definem bem, e só por si, o sistema político. O nível de realização ou irrealização da Democracia. É por isso que toda a história do processo penal, da investigação, da titularidade do exercício da acção penal, e da forma de articulação da acção policial com as autoridades judiciárias, sempre suscitou acesos debates. Não fugirá a tal esta Proposta de lei. Se é verdade que a proposta não oferece contestações de fundo relativamente à forma como pretende formular as competências para a investigação criminal dos vários órgãos de polícia criminal, reservando para a Polícia Judiciária a investigação criminal dos crimes mais complexos, é também verdade que a parte restante da proposta de Lei não pode deixar de suscitar fundadas dúvidas. É que nessa parte, a proposta arrisca-se a beliscar o modelo processual penal vazado no Código. E assim, não se pode deixar de ponderar sobre a evolução do modelo processual penal, sobre a evolução do Estatuto do Ministério Público, sobre a sua conquistada e defendida autonomia. É que alguns dos artigos da Proposta de lei deixam preocupações e aparecem como potenciais geradores de conflitos entre uma autonomia ( a do Ministério Público) consagrada na Constituição e a assim chamada ( pela proposta de lei) autonomia dos órgãos de polícia criminal, das forças policiais. Podendo até questionar-se se alguns normativos não alteram o modelo de investigação criminal constante do Código do Processo penal. Por exemplo: A subtil distinção, no preâmbulo da proposta de lei, entre poderes de direcção e direcção, reservando para o Ministério Público apenas a direcção, isto é apenas a faculdade de emitir orientações genéricas, parece não corresponder á directa orientação dos órgãos de polícia criminal, pelo Ministério Público.à possibilidade de o Ministério Público emitir instruções específicas sobre a efectivação de quaisquer actos. Como consta do Código do processo penal. O Ministério Público tem a sua autonomia consagrada na Constituição da República. E reforçada nos termos do seu Estatuto. Entretanto, em termos da actividade investigatória, à medida que se reforça a autonomia, têm sido retirados ao Ministério Público os poderes de fiscalização daquela actividade investigatória, quando não exercida no âmbito do processo penal. De facto, em 1992, através da alteração da lei Orgânica do Ministério Público, foi-lhe retirada a competência para fiscalizar a actividade pré processual dos órgãos de polícia criminal. Procedeu-se assim a um reforço dos poderes policiais, a uma diminuição da área da dependência funcional das polícias relativamente ao Ministério Público. A um reforço do Poder Político em actividades de prevenção . Actividades em que os únicos juizes da "idoneidade da notícia recebida, e da suficiência ou insuficiência dos elementos registados "são as forças policiais actuando apenas na dependência hierárquica do poder político. Actividades que envolvem já actos investigatórios, que colocam sob suspeita um cidadão, pelo tempo que será determinado pela força policial. Alargou-se assim a possibilidade de uma relação conflituante entre o poder e o indivíduo, precisamente porque aquele, o poder político, fica á margem de qualquer controle. As alterações introduzidas no Estatuto do Ministério Público introduzidas em 1998, se vieram reforçar a sua autonomia, não retomaram a redacção inicial da lei orgânica de 1986. Ou seja: não se retomou a competência do Ministério Público para fiscalizar a actividade pré-processual dos órgãos de polícia criminal. O que não deixou de causar surpresa, já que desde 1992, e por várias vezes, o Partido Socialista se insurgiu contra o cerceamento de competências de fiscalização que, segundo afirmou, melhor garantiriam os direitos liberdades e garantias dos cidadãos contra a discricionariedade do poder político. Neste percurso, os textos legislativos tornavam possível uma policialização, e mesmo uma governamentalização da investigação. O exemplo perfeito foi o da chamada lei anticorrupção, declarada inconstitucional nas disposições que permitiam nas actividades de prevenção actividades investigatórias à margem de qualquer controle judiciário. Mas em todo este percurso manteve-se na lei orgânica da Polícia Judiciária a possibilidade de o procurador geral da República inspeccionar a Polícia Judiciária. Sabe-se que uma nova lei está em gestação. E já se sabe que desaparecerá desta nova lei aquela competência. Em todo este contexto, a proposta de lei de investigação criminal não garante, nem quer curar de garantir, nas acções policiais anteriores ao início do processo penal, outra fiscalização que não seja a decorrente da dependência hierárquica dos órgãos de polícia criminal, relativamente ao poder político. Assim, pode dizer-se que a proposta de lei reforça o poder político face aos cidadãos. Reforça a discricionariedade e enfraquece as garantias dos cidadãos. Se a este reforço do poder político na actividade pré-processual dos órgãos de polícia criminal acrescer eventualmente um reforço dos poderes policiais no âmbito do próprio processo penal, podem concretizar-se preocupações já antigas com a possibilidade de policialização e governamentalização da instrução criminal. Na análise que se faz não estão em causa, como nunca o estiveram, pessoas, mas apenas o sistema. O sistema de prevenção e de investigação que permita conjugar a eficácia no combate á criminalidade com a garantia dos direitos liberdades e garantias dos cidadãos face ao poder político.. Não nos parece que esta proposta de lei, nessa área, contribua para o reforço de um sistema em que o Ministério Público e o Juiz de Instrução são peças imprescindíveis. Ao recuo para as fases preliminares do processo de um conjunto de garantias destinadas a assegurar os direitos dos cidadãos ( vide Cunha Rodrigues- Ministério Público in Dicionário da Administração Pública) não pode responder-se com o alargamento da área em que funciona a dependência hierárquica, com o alargamento de uma fase policial sem outra fiscalização que não seja a do poder político. Nem com restrições á dependência funcional. Estando em causa a defesa do interesse punitivo do Estado no combate á criminalidade, mas também a defesa da liberdade, da honra e do património dos cidadãos, impõe-se que ao reforço da autonomia do Ministério Público corresponda o reforço dos seus poderes de direcção e fiscalização das polícias. Por isso nos vamos abster na votação da proposta. Ficando a guardar os resultados do debate na especialidade. Disse

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