Intervenção de

Interpelação sobre o sistema nacional de saúde<br />Intervenção de Bernardino Soares

Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados,A primeira nota que queria deixar é a de que olharemos com atenção para o novo diploma dos cuidados continuados. Sabemos que há uma enorme carência nessa área e essa é também uma matéria que nos preocupa. Sempre temos expressado a ideia de que, no momento que vivemos, temos de recorrer a várias redes para dar uma resposta nesta área, mas não queremos que isso se faça através de uma menorização ou desvalorização da rede pública. Sendo certo que esta rede é, neste momento, claramente insuficiente, deve crescer e fortalecer-se, quanto mais não seja para servir de referência e de termo regulador em relação às outras redes. Analisaremos, portanto, com cuidado este aspecto. A questão do financiamento do Serviço Nacional de Saúde tem estado na ordem do dia e, em primeiro lugar, diria que o Orçamento previsto para 2006 não corresponde «quase», como disse o Sr. Ministro, às despesas verificadas em 2005. Ele foi feito, sim, a partir da soma do Orçamento inicial para 2005 com o orçamento rectificativo para o mesmo ano. Ora, tal não significa que este Orçamento para 2006 corresponda exactamente ao que foi gasto ou ao que devia ter sido gasto nas unidades do Serviço Nacional de Saúde. Mas a questão do financiamento diferenciado está na ordem do dia e foi introduzida na agenda política, não por um qualquer partido da oposição, nem sequer os da direita, mas pelo Sr. Ministro. Eu sei que o Sr. Ministro já disse que confia no actual modelo e que esta questão só se poria se o actual modelo falhasse, mas a verdade é que o Sr. Ministro, com tanta explicitação nesta matéria, já considera provavelmente esta solução como uma espécie de «plano B», a aplicar assim que se concluir, de uma forma ou de outra, pela necessidade, do ponto de vista do Governo, em aplicá-la. Nós dizemos que este não é o caminho, ou seja, que o caminho não pode ser o de transferir mais custos para os utentes e o de transferir mais dificuldades no acesso à saúde para as populações, que é o que se está a preparar com esta possível reforma. É por isso que dizemos que esta comissão que o Governo agora criou para encontrar, provavelmente, uma fundamentação técnica para uma decisão que equaciona não deve eximir o Executivo à responsabilidade do debate político nesta matéria. Finalmente, passo à questão da redução dos serviços de prestação de cuidados. O Sr. Ministro faz uma grande profissão de fé em relação à questão dos cuidados de saúde primários e fala nas unidades de saúde familiares sem nunca explicar como é que elas vão ser financiadas, que instalações vão ter e como é que tudo isto se vai desenvolver no território. A verdade, contudo, é que quando olhamos o que vemos não são mais unidades e mais próximas, mas menos unidades e mais concentradas, seja nos atendimentos urgentes, seja em extensões ou mesmo na questão das maternidades. Quanto a estas, o Governo diz — ainda o disse o Sr. Ministro há dois dias atrás — que «é preciso privilegiar a distância segura em detrimento da proximidade insegura», mas nunca põe a hipótese de tornar a proximidade segura, que é a questão que tem de se colocar neste momento. É curioso também que, quer em relação aos atendimentos de urgência quer em relação às maternidades, o Governo descobriu de repente que é tudo inseguro e que, portanto, é preciso reduzir e concentrar, como se isso não estivesse em nada relacionado com a despesa que é preciso «cortar». A realidade, porém, é que o «controlador» que já tem no seu Ministério provavelmente lhe dirá todos os dias, quando chega ao seu gabinete, quanto é que V. Ex.ª já gastou e quanto é que ainda tem de cortar...! Sr. Ministro, se não terminar esta política de afastamento da prestação de cuidados dos utentes, V. Ex.ª e o seu Governo ficarão certamente para a história como uma espécie de «Exterminadores Implacáveis» de serviços de saúde e como autores de uma política que afasta o direito à saúde das populações. Sr. Presidente, Srs. Deputados, Srs. Membros do Governo: Apareceu uma curiosa gralha no Boletim Informativo a propósito desta interpelação, que o Bloco de Esquerda, e bem, configurou como uma interpelação sobre o Serviço Nacional de Saúde, e até hoje, quando o Sr. Presidente deu início ao debate, isso se verificou, no sentido de se tratar de uma interpelação sobre o sistema nacional de saúde. Isto, que parece uma inocente — e, certamente, foi involuntária — gralha, tem muito que se lhe diga, porque, ao longo dos últimos anos, o grande debate foi entre saber qual era o figurino de prestação de cuidados de saúde em Portugal, qual era o papel do Estado como prestador. E aqueles que, perfilhando as orientações neoliberais, procuravam reduzir a prestação pública, para abrir espaço ao mercado, para abrir espaço às instituições privadas no que, antes, era público, sempre insistem em falar no «sistema», no «sistema», no «sistema», procurando, com isso, dizer que tanto faz a prestação ser pública ou privada, porque o que interessa é que os utentes tenham o mesmo direito de acesso a qualquer uma delas. Bom, o Sr. Ministro da Saúde, na terça-feira, na Comissão de Saúde, e também hoje, aqui, já mais levemente, abordou esta questão, procurando confundir os termos da Constituição em relação a esta matéria. É que o que a Constituição diz não é que o Serviço Nacional de Saúde é misto. Não é isto! A Constituição diz que o direito à protecção da saúde é realizado, entre outras coisas, através de um serviço nacional de saúde. E é depois, mais adiante, noutro número que não neste, que a Constituição fala na necessidade de o Estado, no exercício do seu poder de garantia e de regulação, disciplinar as formas privadas de medicina, isto é, a iniciativa privada. Portanto, são duas coisas completamente diferentes. Uma coisa é a legitimidade de existir um sector privado na área da saúde e a obrigação de o Estado, também nesse sector, garantir parâmetros de qualidade e de segurança, como é sua responsabilidade; outra coisa é a efectivação do direito à saúde, que é feita através do Serviço Nacional de Saúde, que não é misto ou, supostamente, não o deve ser, em face da Constituição. Essa grande diferença tem sido a batalha dos últimos anos daqueles que, como nós, defendem que o Serviço Nacional de Saúde deve ser público, deve dar resposta às questões fundamentais do direito à saúde, sem que isso prejudique a existência da iniciativa privada, da prestação privada, a qual não deve ser substitutiva da prestação pública e dos cuidados de saúde. Esta é a questão fundamental e receio bem que o Sr. Ministro esteja mais do lado do sistema do que do lado do serviço, do lado da concepção do sistema do que do lado da concepção do serviço. É como aquele ex-presidente de um clube de futebol, que não sei se é o seu, que dizia sempre «É o sistema! É o sistema!». Neste caso, para o Sr. Ministro, também é o sistema! Mas a Constituição diz também outras coisas. Diz, por exemplo — e o Sr. Ministro também tem citado muito esta alínea —, que deve haver uma racional e eficiente cobertura de todo o País em recursos humanos e unidades de saúde. Estou com um receio muito grande de que o Sr. Ministro tenha lido «residual» em vez de «racional». É que quando fala desta alínea é sempre para justificar que tem de encerrar serviços de atendimento, que tem de encerrar maternidades, que tem de haver uma concentração dos serviços. Portanto, o Sr. Ministro deve ter lido «residual» onde está «racional», mas é «racional» que a Constituição estabelece. E, sendo racional, o que temos de dizer, em relação a estas matérias, é que não aceitamos que, de repente, se tenha descoberto, como o Sr. Ministro insinuou na sua intervenção inicial, que os atendimentos de urgência que se fazem por este país fora têm como principal característica a insegurança. É certo que eles são insuficientes, é certo que eles não dão resposta a muitas das questões fundamentais, mas penso que não podemos dizer, com ligeireza, que aquilo que os caracteriza, no fundamental, é a insegurança. Não podemos dizer isto! Podemos dizer que são insuficientes, que, muitas vezes, têm de encaminhar muitos casos que lhes aparecem para unidades mais diferenciadas — isto é verdade! — mas caracterizá-los com insegurança penso que é muito redutor e errado. É evidente que, em relação à questão das maternidades bem como dos atendimentos de urgência, não dizemos que um olhar sério e profundo sobre as várias redes não possa implicar, aqui ou ali, algum encerramento, alguma requalificação. Agora, o que contestamos é o ponto de vista em que o Governo se coloca nesta matéria. É que o Governo anda há um ano a dizer, e o governo anterior também o dizia, que há maternidades que são inseguras, que há maternidades que têm problemas, que é preciso concentrar e, com isto, induz as pessoas, concretamente as mulheres, a procurarem outros serviços para terem as suas crianças. Mas isto vai, agora, ser invocado para justificar que há cada vez menos gente a procurar as maternidades que se querem encerrar. Porém, se o Sr. Ministro insiste em dizer que o que é preciso é segurança e que muitas mulheres preferem a distância segura à proximidade insegura, nós insistimos em dizer que é preciso criar também a proximidade segura e que nestas maternidades, que, eventualmente, têm hoje menos condições — e relativamente a algumas nem sequer é esse o caso —, é preciso investir nos meios que têm, é preciso criar condições para que os seus profissionais, mesmo que não tenham ali a totalidade dos partos que são entendidos como necessários, por ano, para terem a prática necessária para a segurança que se pretende, possam têlos, em parte, também noutras unidades. E o Sr. Ministro sabe que o encerramento destas unidades pode agora deixar lá as especialidades mais relacionadas com as maternidades mas deixa-as numa situação precária, porque é evidente que os profissionais de saúde procurarão colocar-se não naqueles sítios onde deixou de haver partos mas nos outros, onde continua a haver partos. Isto significa que, atrás das maternidades, poderão ir outras especialidades muito importantes para aquelas populações. Quanto à questão do tendencialmente gratuito e à sempre referida expressão, aliás, hoje também, «tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos», isto não quer dizer diferenciação entre os cidadãos no acesso à saúde. Não quer dizer isto! É que o Serviço Nacional de Saúde é univer sal e não é universal apenas para alguns. É universal, ou seja, é para todos, e esta condição tem de ser garantida. Sucede que aquilo que o Governo tem feito, ao longo deste ano, é criar as condições inversas àquelas de que precisávamos na nossa política de saúde: em vez de mais acesso, tem havido menos acesso; em vez de menores custos para os utentes, que são já dos mais penalizados da União Europeia, com o pagamento directo, tem havido mais custos nos medicamentos, nas taxas moderadoras; em vez de mais resposta pública, temos uma resposta pública com maiores dificuldades quer em termos de acessibilidade, quer em termos da sua distribuição geográfica. E sabemos também que, nesta matéria, ao contrário do que o Governo tem dito, a privatização está em curso, porque, nos hospitais EPE, transformados em EPE para garantir a sua não privatização, o que está a acontecer é que se estão a privatizar serviços essenciais, provavelmente aqueles que são lucrativos para o privado. É, pois, uma política economicista — sei que o Sr. Ministro não gosta da palavra mas é a que se adequa —, que pode estar ao agrado da sua controladora financeira mas não estará ao agrado nem do que diz a Constituição nem daquilo de que precisam as populações portuguesas.

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