Intervenção de Bernardino Soares na Assembleia de República

Institui a prescrição por DCI como regra no Serviço Nacional de Saúde

(projecto de lei n.º 80/XII/1ª)

Sr.ª Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Srs. Deputados:
Costumamos dizer muitas vezes que, quando o objectivo é justo, vale sempre a pena lutar e há mais de 10 anos que o PCP tem vindo a propor que se institua a prescrição por princípio activo como regra no Serviço Nacional de Saúde, incluindo no ambulatório.
É evidente que estamos ainda longe — e, certamente, não ficaremos no final deste processo legislativo — da legislação que consideramos que seria a ideal nesta matéria, mas é verdade que a pressão sistemática que, ao longo do tempo, muitos, como o PCP, têm vindo a fazer para que se avance neste sentido vai dando os seus resultados, porque é óbvia a vantagem para os utentes e para o Estado da instituição desta regra. Estes mais de 10 anos em que temos vindo a propor este avanço não foram dados por mal empregues, e é importante que agora se concretizem nalguma coisa mais concreta.
Desta vez, vou elogiar a «contracambalhota» do PSD.
Na última Legislatura, estivemos a minutos de aprovar uma lei que era um avanço, embora ainda tímido, sobre esta matéria, e tal só não aconteceu porque, à última hora, o PSD votou contra as suas próprias propostas e aliou-se ao PS na rejeição dessa iniciativa!!
Agora, o PSD fez uma «cambalhota», mas ainda bem, porque é uma «cambalhota» à frente e na Legislatura anterior tinha sido uma «cambalhota» atrás!
Vamos ver como é que acaba, porque, entre o início dos processos legislativos e o seu final, muita «água corre debaixo das pontes» e há certos partidos que parecem ser muito impressionáveis com a «água que corre debaixo de certas e determinadas pontes»!!
Temos um mercado em que tem havido, é certo, um crescimento na utilização de genéricos, mas é impossível não constatar que a quota de mercado dos genéricos está ainda muito aquém daquilo que seria necessário e desejável no nosso País e até, por comparação, muito aquém daquilo que acontece em muitos países da Europa, e isso é um problema e um potencial de melhoria na utilização dos medicamentos que deve ser aproveitado.
Por outro lado, é preciso dizer que a prescrição por DCI é um instrumento importante e útil, mas não é uma «varinha mágica» que vai resolver todos os problemas da política do medicamento.
É um instrumento que, junto com outros, contribui para uma política do medicamento mais racional, uma melhor utilização dos recursos públicos, e que permite, em simultâneo, uma poupança não só para o utente mas também para o Estado, o contrário do que tem acontecido nos últimos anos. Nos últimos anos, tem havido poupanças para o Estado, com o aumento dos custos para os utentes, e isso é que não pode acontecer.
É evidente que há complexidades. Não é possível esconder que esta ideia tem complexidades que devem ser enfrentadas e resolvidas. É evidente que ela incide sobre uma área muito complexa, mas também é evidente que já hoje e desde sempre, na prescrição hospitalar, é por DCI que tudo se processa, e aí não está registado qualquer problema.
É evidente também que não podemos desqualificar o papel do INFARMED. Não se pode dizer que há uma Autoridade Nacional do Medicamento que estabelece padrões de qualidade e de biodisponibilidade para os medicamentos e depois, quando se chega à discussão da prescrição por DCI, «aqui d’El Rei» que não há qualidade e biodisponibilidade dos medicamentos dos mesmos princípios activos. Não pode ser! Se há situações — e há! — em que é preciso acautelar as consequências em concreto dadas as características de determinadas patologias e de determinados medicamentos, então, elas devem ser acauteladas e excepcionadas, mas não de forma a que as excepções se transformem em regra e que, no final, tenhamos uma lei de prescrição por princípio activo e uma prática que continua a ser a prescrição por marca. Nós estamos de acordo que se estabeleçam excepções, mas que elas se mantenham como excepções e não sejam alçapões para que a excepção se torne regra, como muitas vezes já aconteceu.
Sabemos que, na área do medicamento, nenhuma medida é neutra para os interesses económicos — e são poderosos! — que existem no mercado. Agora, não podemos condicionar a posição do Estado a esses factores e à existência desses factores. Nós precisamos ter a melhor política para o Estado e para os utentes, e isso é que deve ser perseguido pelas iniciativas legislativas.
Precisamos também de ter precauções — aliás, isso já foi aqui referido — para que a liberdade de o utente escolher o medicamento mais barato não possa ser aprisionada por quem vende o medicamento. Essas cautelas, essas precauções, têm também de ser acauteladas para não estarmos a ter uma melhoria aparente a partir da liberdade que se dá ao utente e, depois, a ser condicionada no ponto de venda do medicamento. É preciso também ter essas precauções, essas prevenções, e a fiscalização indispensável para que isso não aconteça.
O que está aqui em causa não é o direito exclusivo e inalienável de serem os médicos os únicos detentores do direito à prescrição. Isso deve ser preservado. Agora, há uma diferença entre o direito à exclusividade na prescrição e a escolha de uma ou de outra marca do medicamento. Este é o ponto que tem dividido o PCP dos partidos e dos governos, que, sistematicamente, rejeitaram a prescrição por DCI.
Pensamos que se respeita a prescrição médica garantindo que, nas situações em que há bioequivalência e biodisponibilidade, seja indiferente qual o medicamento que é usado e que, quando há razões fundadas e devidamente circunscritas para que não seja assim, se admita que a prescrição tenha também a marca.
Sr.ª Presidente, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados. É evidente que esta medida não compensa tudo aquilo que, nos últimos anos, foi feito aos utentes do Serviço Nacional de Saúde em matéria de política de medicamentos, nem tudo aquilo que este Governo quer continuar a fazer em matéria de transferência de custos para os utentes. Isto porque podemos ter algum ganho — e esperamos tê-lo! — com a prescrição por denominação comum internacional, mas será insuficiente para compensar a brutal transferência de custos para os utentes — ao nível da diminuição de comparticipações, ao nível do aumento das taxas moderadoras, ao nível de falta de acesso aos serviços públicos empurrando para o serviço privado… — que tivemos com o governo anterior e que, com este Governo, vamos continuar a ter, se o Governo concretizar a política que anuncia.
É uma medida que pode ser positiva se for bem aplicada e bem utilizada, mas está muito longe de compensar o conjunto de medidas negativas que levam a que, hoje, o acesso aos medicamentos seja um dos problemas mais importantes e mais graves da política de saúde em Portugal, tendo em conta as dificuldades que muitos cidadãos têm no acesso aos medicamentos de que precisam para tratar as suas patologias.
(…)
Sr. Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Sr.as e Srs. Deputados:
É verdade que, como diz o Sr. Deputado Manuel Pizarro, às vezes, há formas de apresentar os dados mais convenientes para um ponto de vista ou para outro.
É evidente que, se eu tiver uma taxa baixíssima de genéricos em 2004, qualquer aumento é de muita dimensão, porque há um efeito de escala que evidentemente se produz. Portanto, acho que devemos ter cuidado com essas habilidades estatísticas. Não é por aí que vamos resolver o problema. É verdade que houve um progresso importante… Repito: houve um progresso importante! Mas também é verdade que estamos aquém do nível onde deveríamos estar.
Outra questão, muito importante e em relação à qual discordamos do Partido Socialista, é a de que o Partido Socialista diz que tem havido progressão, logo, que não é preciso prescrição pelo princípio activo.
E o que nós dizemos é que tem havido progressão e que para continuar a haver, mesmo sem que isso seja o elemento único para uma política de medicamento, é útil haver prescrição pelo princípio activo.
Não, não há nenhuma prescrição pelo princípio activo!
Não, não há, Sr. Deputado! Isso é uma falácia, porque o que existe na lei é a possibilidade de haver!… Enquanto essa possibilidade não for imposta de forma mais taxativa, ela continuará a ser a excepção e não a ser a regra, mesmo valorizando, como valorizamos, o facto de a cultura médica se ter alterado também nos últimos anos, e de haver, hoje, muito mais médicos disponíveis para prescrever pelo princípio activo do que havia há uns anos atrás. Isso é verdade! E isso, em vez de ser um argumento contra a imposição da prescrição por princípio activo é um argumento a favor, porque isso significa que cada vez mais se alarga o consenso em matéria de prescrição por princípio activo.
No fundo, do que precisamos é de ter a prescrição por princípio activo, é de acautelar eventuais efeitos negativos da sua aplicação e de ter a garantia de que os utentes e o Estado têm mais acesso aos medicamentos por via de uma baixa do preço.
Embora isso não signifique a compensação da desastrosa política do Governo na área da saúde, é, sem dúvida, uma medida positiva neste momento difícil que os utentes do Serviço Nacional de Saúde atravessam.

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