Intervenção de

Hospital Amadora-Sintra - Intervenção de Bernardino Soares na AR

Declaração política, onde a propósito da decisão do Ministério Público de absolver os dirigentes da ARS de Lisboa no caso do acompanhamento da gestão do Hospital Amadora-Sintra  concessionada ao Grupo Mello, se chama  a atenção para as consequências da privatização da saúde

 

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

O Hospital Amadora-Sintra voltou de novo à ribalta noticiosa, agora pela decisão do Ministério Público no sentido de absolver os dirigentes da Administração Regional de Saúde (ARS) de Lisboa no caso do acompanhamento da gestão concessionada ao Grupo Mello.

Sobre esta matéria, apetece começar por dizer o seguinte: «A gestão de unidades públicas de saúde entregues ao sector privado, hospitais públicos geridos por sociedades anónimas, e as futuras parcerias público/privado são os traços mais marcantes e visíveis da actual política de saúde. O actual Ministro da Saúde assumiu inegável opção política em favor do sector privado.

A área da saúde é, hoje em dia, um sector particularmente apetecido pelo sector privado, não certamente por milagre de filantropia súbita mas, sim, pelos lucros obtidos quando exploram este sector tão sensível para as pessoas.

Por isso, consideramos que é de primordial importância o aprofundamento do estudo da experiência do Hospital Amadora-Sintra, de forma a podermos recolher todos os ensinamentos e a evitar erros e conflitos futuros.

Assim, ressalta desta experiência, Srs. Deputados, o seguinte: deu origem ao mais grave conflito entre o sector privado e o Estado na área da saúde, e no qual estão envolvidos milhões de contos; a gestão privada não atingiu a produção esperada nalgumas importantes valências de acordo com o definido no contrato; a gestão privada não resolveu a questão das listas de espera; com a gestão privada, os custos previstos foram sucessivamente ultrapassados; a gestão privada não acautelou os riscos de promiscuidade a que os hospitais públicos ficam sujeitos, quando neles coexistem as actividades pública e privada.»

Quem tais palavras disse - todas estas palavras - foi o Partido Socialista num debate sobre a criação de uma comissão de inquérito sobre a concessão de gestão do Hospital Amadora-Sintra..

Só que, depois, veio o Ministro Correia de Campos, velho admirador desta experiência privada, tanto que até tratou de desvalorizar, na sua anterior passagem pelo governo, um relatório apresentado pelos próprios dirigentes do Ministério da Saúde, designadamente da ARS de Lisboa e Vale do Tejo, rotulando-o imediatamente de «infundamentado» e ostracizando os seus responsáveis, ao ponto de até lhes recusar o apoio jurídico devido para se defenderem das acções entretanto interpostas pelo Grupo Mello em relação a actos decorrentes do mais estrito cumprimento das suas funções.

É claro que o Ministro Correia de Campos, já nesta Legislatura, renovou o contrato e sedimentou as suas normas, dizendo até que gostaria de ter mais experiências como esta, que qualifica de globalmente positiva.

A história deste Hospital tem muitos episódios, e muitos episódios escandalosos: desde logo,  foi entregue à gestão privada praticamente em cima das eleições de Outubro de 1995, que o PSD perdeu, por um governo do PSD; foi incluída uma cláusula de arbitragem neste contrato, sem habilitação legal para a sua existência; foi propositadamente entregue o seu acompanhamento, não ao IGIF, que tinha capacidade para tal, mas à ARS, que a não tinha; foram pagos 3,75 milhões de euros à entidade gestora, referentes a Novembro e Dezembro de 1995, meses em que ainda foi o Estado a assegurar a gestão daquele Hospital.

No período da execução do contrato, sucessivamente não se cumpriu o funcionamento das valências que estavam previstas: cardiologia, cirurgias vascular, oftalmológica, maxilo-facial e reconstrutiva. Foi visível o subdimensionamento do pessoal para as necessidades: durante um certo período, instalou-se uma prática remuneratória, pelo menos para alguns profissionais, assente no número de altas praticadas, com reflexos significativos nos salários, que se traduzia, na prática, em altas precoces e respectivo reenvio dos doentes para o domicílio ou para o médico de família; muitos serviços, como oftalmologia e neurologia, encerravam às 20 horas, remetendo os seus utentes para os hospitais públicos; apenas 68,8% das altas da área deste Hospital são dele provenientes, sendo as outras de outros hospitais da rede pública.

Nunca se explicou por que é que jamais foram facturadas ao Hospital Amadora-Sintra as  despesas com o envio destes doentes para outros hospitais, quando eram da sua competência.

Nunca se explicou por que é que o Ministério da Saúde aceitou a interpretação que o Grupo Mello fez do contrato e da sua remuneração, que, por exemplo, definiu que a actualização feita do montante não se fazia a partir do final de cada ano em que vencia o contrato mas, sim, do primeiro dia de cada ano, multiplicando assim por muitos o valor das disposições a receber.

Nunca se justificou por que é que foi permitido a este Hospital de gestão privada enviar utentes doentes para uma clínica de rectaguarda, absolutamente ilegal e sem condições, perante a negligência e a conivência do Ministério da Saúde.

Nunca se explicou por que é que o Hospital não era obrigado a entregar, como o contrato previa, os seus contratos de gestão, a sua execução orçamental, os seus planos e tudo o mais.

Nunca se explicou como é que se processou a demissão do Conselho de Administração presidido pela Dr.ª Manuela Lima, que denunciou esta situação. Nunca se explicou por que é que o anterior Ministro da Saúde, do PSD, para analisar este caso, convocou uma empresa de consultoria, que também trabalhava para o Grupo Mello, detentor da concessão do Hospital Amadora-Sintra.

Nunca se explicou também como é que o Grupo Mello só se lembrou de reivindicar 38 milhões de euros depois de o Estado, através da Inspecção-Geral de Finanças, detectar o pagamento em falta de 75 milhões.

Nada disto foi sendo explicado ao longo dos anos!

O Tribunal Arbitral foi sempre a tábua de salvação deste negócio, por isso foi imposto desde o início. Trata-se de uma instância em que as partes abdicaram, convenientemente, do direito de recorrer da decisão e em que, no caso concreto, os juízes foram nomeados pelas partes, isto é, pelo Grupo Mello e pelo ministro, que era e voltou a ser um alto quadro do mesmo Grupo Mello. Por isso, todos os responsáveis políticos nunca quiseram saber das conclusões não só da Administração Regional de Saúde presidida pela Dr.ª Manuela Lima, mas também da Inspecção-Geral de Finanças e do Tribunal de Contas, que, aliás, ainda não encerrou o processo. Só quiseram, sempre, saber das conclusões do dito - e sem legitimação legal - Tribunal Arbitral. E, assim, se beneficiou o Grupo Mello em 113 milhões de euros! Repito: 113 milhões de euros!

Não houve, da parte de nenhum governo, a intenção de acompanhar nem de fiscalizar este negócio. Montou-se, por isso, deliberadamente, um sistema de acompanhamento ineficaz e inexistente, aceitando-se todas as imposições do Grupo Mello, sem discutir. Por isso é que este processo é tão importante: não, fundamentalmente, a questão da absolvição dos dirigentes do Ministério da Saúde mas, sim, o facto de nunca ter sido montada uma rede para controlar este negócio e para defender o interesse público, porque isso significaria pôr em causa as apregoadas vantagens da gestão privada.

Bem o disse Salvador de Melo, Presidente da José de Mello Saúde, quando da decisão do Tribunal Arbitral: «Estamos muito satisfeitos com esta decisão. (...) É um bom prenúncio para as parcerias públicoprivadas.

Esta decisão dá-nos ânimo para avançarmos com a nossa candidatura a todos os 10 novos hospitais públicos que vão ter gestão privada.»

Claro que se a decisão fosse ao contrário, o contrário também teria de ser dito e seria posta  em causa a continuação da privatização e a continuação da gestão privada nas unidades públicas.

O Hospital Amadora-Sintra é um exemplo da impunidade e do favorecimento de interesses privados, e é uma lição decisiva para demonstrar as reais consequências da privatização da saúde, quer para os portugueses, quer para o erário público.

(...)

Sr. Presidente,
Sr.ª Deputada Maria de Belém Roseira,

Temos uma profunda discordância nesta matéria.

Abordámos duas questões a propósito deste caso: uma, são as conclusões que tiramos em relação à questão da gestão privada de unidades públicas. Mas há mais do que isso, Sr.ª Deputada: é que houve um interesse do Estado, um interesse público, que foi lesado neste processo, independentemente das considerações que façamos em relação à bondade ou à maldade da gestão privada. O interesse do Estado foi lesado!

A Sr.ª Deputada, que era ministra na altura, diz que não havia condições legais para acompanhar o contrato. Então, que lei é que impunha que a Administração Regional de Saúde tivesse uma pessoa que se dedicava um dia por semana a acompanhar um hospital daquela dimensão? Era uma lei que impunha esta insuficiência?

Por que é que a Sr.ª Deputada, que era então ministra, não questionou que se tivessem pago 3,75 milhões de euros ao Grupo Mello por gerir dois meses do ano de 1995, Novembro e Dezembro, que não foram da gestão do Grupo Mello porque o Hospital só passou para a sua gestão a partir de 1 de Janeiro? A Sr.ª Deputada, que então era ministra, nunca questionou isso?!

Quanto ao visto do Tribunal de Contas - que foi dado, aliás, sem inventário do equipamento nem quadro de pessoal, o que a lei exigia -, é verdade que existiu, mas tinha essas insuficiências.

E quando era ministra, a Sr.ª Deputada nunca se questionou por que é que a Administração Regional de Saúde aceitava as interpretações do contrato em relação aos montantes a auferir que o Grupo Mello apresentava, sem questionar nem discutir essas interpretações?

É verdade! Constatou a Inspecção-Geral de Finanças! Nem foi o PCP!

E, quanto às valências, não é verdade que muitas delas abriram muito depois do que estava previsto no contrato? Não é verdade que algumas valências fechavam às 20 horas, porque não era economicamente rentável tê-las abertas, enviando os utentes que eram daquele hospital para os outros hospitais públicos, que arcavam com os custos dessas populações?

É ou não verdade que isto tudo aconteceu? É ou não verdade que enviavam os utentes que necessitavam de cuidados continuados ou em estado terminal para uma clínica ilegal que foi denunciada, repetidas vezes, pelo PCP, pelos utentes e por muitas entidades, incluindo autarquias, e que demorou anos até ser encerrada, apesar de ser ilegal e não ter quaisquer condições para funcionar? Isto tudo é ou não verdade?

É ou não verdade que se ignorou «olimpicamente» não só a Administração Regional de Saúde, mas a Inspecção-Geral de Finanças, o Tribunal de Contas?! Tudo isso foi ignorado por sucessivos governos, só se agarrando a um tribunal arbitral, que foi incluído no contrato sem haver habilitação legal para que essa cláusula tivesse sido incluída, porque impedia o Estado de recorrer para outras instâncias, com o resultado que agora está à vista. O tribunal arbitral foi incluído no contrato, e foi incluído ilegitimamente. E o seu dever, Sr.ª Deputada, quando foi ministra, era o de ter questionado esse contrato, mesmo que não tivesse condições plenas para desdizer aquilo que é verdade, ou seja, que foi assinado à pressa pelo PSD, antes das eleições que já sabia que ia perder. Mesmo que isso tivesse dificuldades, alguma coisa podia ter sido questionada - e esta era uma delas -, pelo menos o contrato podia ter sido acompanhado, coisa que não foi, como ao fim destes anos pudemos constatar.

 

 

 

 

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