Intervenção de Ana Margarida de Carvalho, Escritora, Conferência «Uma visão universal e progressista da História - A actualidade da Obra de José Saramago»

O homem que não aprendeu a descontentar-se com o espectáculo do mundo: «O Ano da Morte de Ricardo Reis» em cinco encontros

Ver vídeo

''

«Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo», verso de Ricardo Reis, epígrafe do Ano da Morte de Ricardo Reis, que traz subjacente uma tremenda ideia de indiferentismo, de marasmo, quase frieza, uma neutralidade letárgica ou um desprendimento apático; uma ideia de inacção, de não intervenção, uma ideia não revolucionária, antiactivista, porque agir não é ser sábio, segundo Ricardo Reis. Ser sábio, para o heterónimo de Fernando Pessoa, é apenas contemplar e ver passar os vários rios que correm pelas nossas aldeias.

É com estas características de personalidade, de sentido de vida e de filosofia existencial, e que José Saramago repudia irrefutavelmente, que o autor vai construir a sua personagem, que já de si é uma construção de Fernando Pessoa: um dos (muitos ou três) heterónimos do poeta.

As falhas ou lacunas que Pessoa deixou por compor na biografia de Ricardo Reis, será Saramago a colmatá-las, como já fez noutros romances. E se as coisas tivessem acontecido de outra maneira? E se se colocasse um não no meio de uma invasão em curso? E se no dia seguinte ninguém morresse? E se os construtores do convento de Mafra fosse o anónimo exército de pedreiros e carpinteiros e não D. João V? E se um dia toda a humanidade fosse acometida de uma pandemia de cegueira branca? E se mesmo as coisas inventadas se pudessem combinar e reconstituir de outra forma? Fernando Pessoa inventou que Ricardo Reis, o tal que compunha odes, com métricas simétricas, perfeitas e que idolatrava a antiguidade e os deuses clássicos, o tal que utilizava linguagem erudita e mais elaborada, teria nascido em 1887, no Porto; educado por jesuítas, tornou-se um médico conservador, que se autoexilou no Brasil por ser monárquico, em 1919, e não concordar com a instauração da República. Mas Fernando Pessoa deixou-lhe incompleta a biografia e nunca nos confessou a data em que Reis morreria. É aí que entra a ficção e o génio de José Saramago, que acrescenta esta nota biográfica ao heterónimo: o local e a morte. Em Lisboa, mais ou menos nove meses após a morte real de Fernando Pessoa (ambos teriam a mesma idade, 47-48 anos).

O Ano da Morte de Ricardo Reis (a tal nota biográfica em falha) é então 1936. Ou seja, um ano impossível de ficar a contemplar passivamente, porque o espetáculo que o mundo levava à cena era terrível. Por cá, Salazar impunha-se em todo o seu esplendor, toda a sua confiança e apoios; rebentava a guerra Civil de Espanha aqui ao lado; forças nazis e fascistas eclodiam por toda a Europa, Mussolini em Itália, Hitler na Alemanha; guerra na Etiópia; o Japão prestes a invadir a China… E todo o terror que se vinha anunciando nas invasões alemãs, nas vésperas da Segunda Guerra Mundial e o resto que para ela confluiu.

É esta parte da premissa do quinto romance – se contarmos desde Terra do Pecado/A Viúva (em 1947), o livro renegado, e o outro romance o Manual de Pintura e Caligrafia, de 1977 – ou o terceiro, se contarmos, se calhar mais justamente, a partir do Levantado do Chão. E reparem nesta prodigiosa pujança de criatividade. Em 1980, Saramago edita Levantado do Chão, dois anos depois, em 1982, Memorial do Convento, e passados mais dois anos, em 1984, O Ano da Morte de Ricardo Reis, sendo que também neste escasso intervalo foi publicada a peça que Farei com Este Livro? e Viagem a Portugal.

Temos, então, um cenário: uma cidade que palpitava de ímpetos fascistas e retrógrados. Lisboa era uma aldeia composta por muitos lugarejos, em que cada vizinho, espiava e vigiava o outro. E temos uma ficção (de Saramago) sobre um ser ficcional (de Pessoa), o que produz assim um efeito de abismo e fica a ressoar como um eco.

Como se sabe, Saramago tinha esta espécie de vício de pensar historicamente, de iluminar os vazios, de dar voz aos esquecidos, aos vencidos, de colmatar lacunas, de dar diacronismo e espessura ao sincronismo simplista da linha do tempo. As figuras e factos históricos são convocados para os seus romances, os acontecimentos reais também, mas não exactamente segundo os dogmas ou as versões oficiais. Chegou ao ponto de colocar, pela mão de um tímido revisor, um «não» em a História do Cerco de Lisboa. E se a história se contasse ao contrário, da perspectiva não dos invasores (a nossa, ou do que viríamos a ser) mas a dos invadidos, que aqui habitavam há 300 ou 500 anos? Além do vício de pensar historicamente, Saramago também tinha o vício (chamemos-lhe assim) de pensar a história e a vida em geral humanisticamente. Por isso quem construiu o convento de Mafra não foi um rei, D. João V (século XVIII), mas o Manuel, o Joaquim, o Alfredo, o Pedro, aquela célebre enumeração de pedreiros, escultores, exército de construtores. Massa anónima e humilde, trabalhadora, esquecida e despersonalizada, que Saramago homenageia e atribui simbolicamente um nome por cada letra do alfabeto. No fundo, aquilo a que comummente se chama povo. Tal como quem sofre a guerra não é o Hitler ou o General Franco, mas os soldados anónimos e os civis, como sempre, em todos os tempos, sobretudo os pobres, os que ficam para trás, as mulheres, as crianças e os velhos.

Tal como neste e em muitos outros romances, Saramago faz esta hábil fusão entre realidade e ficção, entre macro-história e micro-história, sempre neste equilíbrio perfeito e engenhoso entre a estética e a ética. Sempre político, sempre com um poder de observação notável e um sentido crítico invulgar. Há muita metatextualidade, como sempre, e intertextualidade: falamos de Fernando Pessoa, é natural que a literatura seja convocada e comunique entre si. Este cochichar entre poetas e escritores, entre Saramago e si próprio: a voz dele está sempre presente, a fazer reflexões, a cometer ironias e provocações, a remeter para obras anteriores, nomeadamente para o Memorial, aqui habilmente convocado. É muito estimulante, e até lúdico, desvendar e descobrir estes diálogos que se intrometem o tempo inteiro na trama. Basta dizer que o romance começa e acaba com uma épica alusão e invertida aos Lusíadas: «Aqui o mar acaba e a terra principia.» E termina dizendo: «Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera.» Um leve sinal de esperança ambígua, O seu optimismo céptico, carregado de melancolia.

E no meio destas referências, mais ou menos explícitas, à nossa literatura, a intrusão constante e contrastante da mediocridade das leituras jornalísticas. A imprensa dedicava-se, então, a fait-divers e a glorificar o regime, ou por causa da censura ou por devoção sincera a Salazar. Jornais de época que Saramago, certamente, consultou. Esta é, a partir do momento a que chega a Lisboa, em pleno e chuvoso inverno, 16 anos depois do calor tropical do Rio de Janeiro, uma das rotinas de Ricardo Reis, olhar o mundo através destas lentes distorcidas dos jornais. E é mesmo de rotinas que se fala neste romance nada rotineiro, e no entanto é este o seu protagonista, Ricardo Reis, um pouco amorfo, que passa indiferente perante o espectáculo do mundo, entre as leituras dos jornais, a mesa solitária de um restaurante, a cama aquecida por uma serviçal e um banco de jardim em Santa Catarina.

E é de encontros que vos queria falar, são poucos, na vida estéril deste homem, mas imensos. O primeiro é com o seu criador, ou colega ou confidente fantasmagórico. É o encontro da criatura com o seu criador, com um Fernando Pessoa sem óculos, porque está morto, mas ainda assim conversador e que, ao longo do livro, se vai tornando mais ácido, mais crítico, mais irónico, mais insubmisso. Até mais em morto neste romance do que em toda a sua vida – que, como se sabe foi curta, apagada, obscura. É preciso não esquecer que Bernardo Soares, o heterónimo que mais se aproximava da personalidade de Fernando Pessoa, dizia, «escolher modos de não agir foi sempre a atenção e o escrúpulo da minha vida».

Fernando Pessoa aparece quando bem lhe apetece, deixando temporariamente a sua morada (eterna, costuma dizer-se) no Cemitério dos Prazeres, e postando-se aos pés da campa de Ricardo Reis, ou num banco de jardim. É por esta razão (pela morte de Pessoa, avisado por um telegrama do outro colega de poesia e de irmandade na vida, Álvaro de Campos) que Ricardo Reis viaja do Brasil e vem viver para Lisboa – que é como quem diz vem morrer a Lisboa.

E ao longo do romance, quase sempre nós encontramo-nos por detrás dos olhos de Ricardo Reis, por dentro da cabeça de José Saramago.

A chegada a Lisboa (o segundo encontro de que vos queria falar) é inesquecível neste romance. As primeiras 100 páginas de cerca de 500 poderiam resumir-se só nisto: Ricardo Reis chega a Lisboa, vagueia e divaga. Mas apenas isto nunca é apenas isto. O encontro de Ricardo Reis com a cidade é de tal maneira desolado e pesaroso que faz lembrar para os que o leram, a descida do Rio Madeira um dos muito afluentes do rio Amazonas, do protagonista de A Selva (1930), de Ferreira de Castro, tudo é viscoso, tormentoso, e pavoroso, cada vez mais sufocante, à medida que nos embrenhamos na Amazónia. Ou como a célebre descida do rio de Joseph Conrad, o Coração das Trevas (1899) que depois se converteu no filme de Coppola, Apocalypse Now: à medida que avançam, que se adentram, a situação só pode piorar, até à demência alucinante.

Nestas primeiras 100 páginas, Saramago emprega muitos adjectivos para classificar a cidade – aliás, não muito diferente da atmosfera aquosa de Orlando da Costa, em Podem Chamar-me Eurídice: também aqui há cortinas de água, numa Lisboa sufocante, húmida, onde não se pode respirar fundo, porque eram tempos de vigilância e de fascismo. Faço aqui um apanhado de adjectivos usados por Saramago que ajudam a perceber com era esta Lisboa opressiva: uma cidade pálida, cinzenta, silenciosa e que assusta, sombria, de cortinas tristes e bordadas à janela, que deixam transluzir uma claridade aquática, pedras cobertas de lodo fétido, urbe rasa sobre colinas, uma empena mais esforçada, um vulto que parece ruína de castelo, chuvas constantes, um rio turvo, fluxo soturno, um ar carregado que cheira a roupas molhadas, bagagens azedas, cidade suja, charcos com óleo e detritos vários, sarjetas entupidas, tabernas lôbregas, luzes viscosas, sob nuvens que formam um tecto cor de chumbo, até os eléctricos fazem rangidos ásperos, a imagem taciturna de um copo sujo de vinho sobre um balcão de zinco… Ricardo Reis adentra-se pela cidade, pelas ruas que são sempre nomeadas, que nós todos conhecemos, até se perder no labirinto. Sendo que, lê-se, o homem claro está «é o labirinto de si mesmo».

Terceiro encontro: o encontro de Ricardo Reis com duas mulheres. A menina de boas famílias, com nome de gerúndio, Marcenda, e que afagava uma mão paralisada como a um animal de estimação que transporta para todo o lado. Ela aloja-se com o pai na mesma pensão que Ricardo Reis. E Lídia (não por acaso chamada Lídia, a musa deste heterónimo), criada dessa mesma pensão. À menina de boas famílias ele beija na boca, ele leva para a sala, ele propõe casamento. À criada ele não beija na boca, ele leva para o quarto e para a cama. À menina ele escreve cartas de amor e compõe odes, à criada, que ele nem considera amante porque isso já tem de si algo de igualitário, ele espera que ela lhe aconchegue os lençóis e lhe trate da gripe. E quando Lídia, serva na vida real e musa na ideal, lhe conta que está grávida dele, Reis não sente nada, apenas um vazio por dentro. E fica quase enternecido ou aliviado quando ela diz que, se ele quiser, pode não perfilhar o filho. Era assim o país das criadas de servir que já se davam por satisfeitas se um homem lhes desse atenção. O país dos filhos não desejados gerados por mulher menores. Era assim o país dos filhos de pais incógnitos.

Depois, Ricardo Reis há-de ter encontros colectivos, por casualidade, calha passarem por ele: o bodo dos pobres na Rua do Século; a noite de fim de ano, em que os habitantes deitam monos e objectos velhos pela janela fora: «daqui a pouco comecerão os mendigos a rabiscar neste lixo, alguma coisa hão-de eles aproveitar, o que para uns deixou de prestar é vida para outros»; o triste, decrépito e enfadonho corso de carnaval; a triste, decrépita e enfadonha peregrinação a Fátima. Também há um funeral de faca e alguidar (a tribo dos cadastrados, das prostitutas, das mulheres por conta, dos vigaristas, dos arrebentas, dos gatunos, dos recetadores, o batalhão maldito que atravessava a cidade), e uma ida ao teatro, em que os ricos não só toleram os pobres ali representados na peça, como os aplaudem, porque ali, em palco, se encontram asseados e o seu folclore devidamente domesticado.

É com relativa indiferença que Ricardo Reis, o homem que declarara não acreditar em democracias e que considera o socialismo maçador, atravessa estas manifestações populares. Afinal, ele assentira, sem contraditório – e se sentiu desprezo não o manifestou (apesar de um pouco enfadado, condescendamos, com tanto nacionalismo hiperbólico) frente ao pai da sua enamorada Marcenda – a justeza das palavras salazarentas: «o que nos vale, meu caro doutor Reis, neste cantinho da Europa, é termos um homem de alto pensamento e firme autoridade à frente do governo e do país, […] é impossível que não se tenha apercebido das grandes transformações, o aumento da riqueza nacional, a disciplina, a doutrina coerente e patriótica, o respeito das outras nações pela pátria lusitana, sua gesta, sua secular história e seu império, […] e a disciplina, meu caro doutor, o sossego das ruas e dos espíritos, uma nação inteira entregue ao trabalho sob a chefia de um grande estadista, verdadeiramente uma mão de ferro calçada com uma luva de veludo, que era do que andávamos a precisar […].» Ainda Salazar nas palavras de Fernando Pessoa, segundo José Saramago (cheias de sarcasmo, claro): «É o ditador português, o protector, o pai, o professor, o poder manso, um quarto de sacristão, um quarto de sibila, um quarto de Sebastião, um quarto de Sidónio, o mais apropriado possível aos nosso hábitos e índoles.»

Outro encontro com a multidão apavorada que assistia à quase execução e morte dos tripulantes da fragata Afonso de Albuquerque, durante a revolta dos marinheiros, solidários com os companheiros republicanos em Espanha. Um dos marinheiros revoltosos e vítimas era Daniel, irmão de Lídia. A certa altura do romance, Ricardo Reis há-de perguntar a Lídia se ele é comunista? «Se é ou não é, não sei, mas é a favor».

E por último, o quinto encontro, que faz Ricardo Reis desassossegar-se, até quase indignar-se, sobressaltar-se, pela ousadia, pelo atrevimento, pelo inusitado, pelo medo, pela estranha sensação de pairar sobre ele a desconfiança que alastra como óleo em água. E quase que o faz sair de dentro da mansa personagem, sempre alheada e distante: quando é notificado para se dirigir à António Maria Cardoso, para ser interrogado por um inspector da PVDE, só porque sim, apenas como demonstração de prepotência, logo ele que apenas admite para si o pecado de cortejador de donzelas e amador de criadas. E isso não é delito, pensa, ainda assim, inquieto. Sente, então, o forte cheiro a cebola que exala do hálito, dos poros, da roupa dos agentes da PVDE e seus informadores, e que está derramado por toda a cidade, em cada esquina, em cada canto, em cada janela, em cada par de olhos.

«Lisboa é um grande silêncio que rumoreja.»

  • Cultura
  • PCP
  • Central
  • José Saramago