Intervenção de João Luís Lisboa, professor catedrático de História e Literatura das Ideias, Conferência «Uma visão universal e progressista da História - A actualidade da Obra de José Saramago»

História, fantasia e actualidade. A propósito da escrita de Saramago

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Três pontos no universo parecem muito afastados: A História, que conta o que já houve, a fantasia, que inventa o que a imaginação alcança e, finalmente, a atualidade, dura como punhos, longe do passado e das fantasias de todos os tempos, impositiva e fugaz. E, no entanto, estes três pontos, História, fantasia e atualidade, necessariamente se ligam. Primeiro, porque não há arte nem ciência que não seja atual, que não dialogue com a atualidade, sob o risco de não contar. Como conta, já são contas de outro rosário. Segundo, porque toda a fantasia assenta numa experiência do mundo, sendo mais poderosa quando mostra compreender essa experiência, o tempo vivido. Terceiro, porque não há História sem imaginação. Mais, não há possibilidade de produzir ciência sem imaginação, como fez questão de sublinhar, entre outros, Albert Einstein.

No caso da História, a equação não é simples, mas pode ser apresentada de forma clara. Estamos a falar de uma disciplina que constrói discursos verificáveis sobre o passado, mas que não se limita a elencar dados empíricos. Preenche os vazios do que não se sabe, escolhe o que, em cada momento, se considera relevante, plausível, interessante. Alinha respostas (sempre provisórias) às perguntas de cada tempo. Nesse fazer, convergem a imaginação de quem junta pontos, de quem faz perguntas, com o seu tempo e as suas circunstâncias.

Até aos anos setenta, pouco antes de Saramago se ter atirado à escrita do Levantado do Chão, imerso no mundo dos trabalhadores de Montemor-o-Novo, algumas correntes da História pretendiam que a qualidade do que escreviam dependia de garantias de objetividade, desde logo quantitativa. Mas já então se ouviam vozes argumentando que até as séries e tabelas com números dependiam de construções, escolhas, conceitos, que contrariavam essas pretensões de pura objetividade. O mesmo se passava relativamente a muitos conceitos e categorias que se assumiam como científicos, sem ter em conta que dependiam de palavras. Daí a ideia de que aquilo que é claro não tem de ser simples. O certo é que, estando dependentes de palavras e conceitos, se não houvesse confiança na relação entre as palavras e o mundo que elas descrevem não haveria nem história, nem ciência, nem qualquer conhecimento.

A relação entre História e ficção não se resume a um género a que vulgarmente se chama de romance histórico. Saramago, tendo passeado as suas personagens por vários séculos, mostra incómodo nessa classificação. Não a quer para si, sobretudo por não querer ficar preso a um modelo, a um género estabelecido. E também por recusar a ideia de que o romance histórico pertence a quem quer fugir do presente. Os seus escritos são sempre sobre o seu próprio tempo. Mas não fugiu ao problema que se lhe colocavam, de como a sua escrita se relacionava com o passado histórico e, também, como ele entendia e exprimia esse passado histórico, não sendo historiador de profissão. Ou seja, enfrentava tanto o papel da História na elaboração sua escrita como o modo como entendia o que fosse o conhecimento histórico.

Saramago dedica-se a um romance, e depois a outro e a outro, num tempo em que tanto a ficção como a História querem mudar o modo como descrevem o mundo. Na ficção, o que é mágico não prejudica o reconhecimento do real. Na História, essa vertigem de se aproximar dos saberes sobre a natureza perdera-se, o que, assumindo- se o peso do historiador e da sua imaginação, não abria necessariamente a porta ao arbítrio, à negação do que se podia verificar, do que era fundamentado. Mesmo aqueles que, então, definiam a História como um exercício literário como outros, negando-lhe qualquer objetividade, não se coibiam de tirar lições para o presente, assumindo uma base de realidade que tornava esses exercícios operativos ou, pelo menos, reveladores. Saramago formou-se culturalmente sob uma forte influência francesa, misto de história social marxista e de nova história cultural e das mentalidades. Mas a influência é mais precisa, mencionando nomes que, num artigo recente na Seara Nova, Carlos Reis veio lembrar (Seara Nova 2022). É determinante a inspiração de vários historiadores e filósofos. Entre os primeiros, refere em particular Georges Duby e Fernand Braudel, passando por Max Gallo. Carlos Reis acrescenta o nome, que diz ser mais polémico, de Hayden White, o historiador americano que, reivindicando a sua visão marxista do mundo, se assume como relativista (Reis 2022: 26-27). Na realidade, Saramago colhe em Braudel a ligação ao presente, em Duby, a importância da imaginação, inclusivamente em hipóteses de História contra factual, em Gallo a necessidade de usar a ficção para aprofundar o que as fontes documentais apenas sugerem e que o deixavam insatisfeito. A ficção confere ao escritor uma liberdade que o historiador não tem, mesmo quando não pretende negar aquilo que se dá como adquirido sobre o passado. A operação histórica tem constrangimentos, ainda quando necessita da imaginação para fazer sentido. Por outro lado, Saramago não refere explicitamente o mais problemático

Hayden White. Manifesta apenas o seu receio em dissolver o conhecimento num caos potencial, em que se perdem referências e chão para andar. Mas o receio expresso no JL em 1990 já não o parece incomodar tanto em 1995 quando assume para si a temeridade dos argumentos que aproximam historiadores e romancistas, não como irresponsáveis geradores do caos em mundos paralelos, mas como paradoxais agentes de rearrumação, não apenas escrevendo (descrevendo), mas fazendo, definindo, decidindo (1996: 181-182).

Com a publicação da História do Cerco de Lisboa (1991) entende ser necessário explicitar o que pensa do ofício de historiador, que não é o seu. Fá-lo em artigos do Jornal de Letras (nº 347, 1989, nº 400, 1990, nº 739, 1999), fá-lo em conferências ou discursos em ocasiões públicas, como o doutoramento honoris causa, na Universidade de Évora, que o JL publica em 1999, fá-lo nos Cadernos de Lanzarote em 1996 (que Carlos Reis cita), onde deixa os apontamentos de uma conferência que fizera em Oslo em 1995, fá-lo nos seus romances, onde o narrador interrompe com frequência o fio da sua narrativa para se interrogar sobre aquilo que vai contando. E, sobretudo, fá-lo quando escreve, quando apresenta as suas personagens, quando as faz falar, quando explica o que é a vida própria de cada uma, num tempo que, mesmo não sendo o do leitor, é reconhecível, ou considerado plausível. A relação com o real tem, por outro lado, efeitos cómicos, como quando, no calor da discussão de 1992 sobre O evangelho segundo Jesus Cristo, um reaccionário verdadeiro argumentava com a falsidade de tal texto.

Não é, assim, o romance histórico que é questionado, mas o tempo histórico, o das personagens, o do autor e o do leitor. Ainda há poucos anos (2017) um livro em Itália juntava reflexões sobre 9 romancista, de Tolstoi e Flaubert ao Henry Miller de Trópico de Capricórnio e a Mario Puzzo de O Padrinho, passando por Soljenitzin, Primo Levi, Tomasi de Lampedusa e Beppe Fenoglio. A pergunta comum era sobre o que se captava de narrativa histórica em cada um dos romances tratados, o que o leitor colhia de um tempo que se representa através da invenção de personagens e de situações. Mesmo um autocentrado e indiferente Henry Miller mostra como ele próprio vivia (e encarava) a desintegração da sociedade, não pelo tórrido das cenas de sexo, mas pela perspetiva catastrófica da modernidade. A história contada não é uniforme. Depende da perspetiva, por mais honesta que seja a atitude, tanto de historiadores como de romancistas. A cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe, é um exemplo da questão da perspetiva, como também é O Arquipélago Gulag. As perguntas sucedem- se, mudando, e hoje o Uncle Tom não pode ser lido como há 170 anos. Mas permanece a questão de saber o que se aprende com aquela descrição, como se filtra, num romance de bons sentimentos e muitos equívocos, o mundo da escravatura americana anterior à guerra de secessão. Se a Guerra e Paz é um exemplo muito citado da vontade e capacidade de aprofundar perspetivas possíveis sobre as guerras napoleónicas na Rússia, o Arquipélago Gulag tem sido objeto de três tipos de abordagem, o da capacidade da escrita, o do documento político e, finalmente, o de relatos que, do ponto de vista estritamente histórico, não podem deixar de se basear em experiências contadas, muitas em segunda mão, naquilo que se ouviu de outros que também ouviram, que naturalmente confirmam a experiência própria do escritor.

Em vários destes casos, não estamos perante o que, canonicamente, é reconhecido como romance histórico. Não se trata de inserir personagens e situações inventadas num ambiente passado que se reconhece, mesmo quando se junta um inventado Baltasar e um real Bartolomeu. A história não é um cenário de cartão onde se movem elementos imaginados, mas o tempo do romance, onde esses elementos fazem sentido. Bartolomeu obedece tanto ao que dele se sabe como ao que a imaginação do escritor permite. É ao mesmo tempo o religioso setecentista atormentado e o espírito amável que facilita o enredo, aproximando os protagonistas.

Como para o Memorial, podemos fazer perguntas tanto ao século XII em que se passa o Ivanhoe como aos inícios do século XIX, anos em que Walter Scott escreve aquele livro. O viès romântico é independente das competências eruditas do escritor escocês. Também não se trata de pensar o género “romance histórico”, numa genealogia que o liga às anteriores epopeias, como fez Georg Lukacs. Trata-se de entender as personagens de qualquer romance numa trama que tem significado pela realidade de que eles próprios fazem parte, constroem, e não apenas as envolvem, como se estivessem fora do tempo, olhos e cabeças dos leitores transitando livremente de um espaço para outro.

Aqui é permitido outro tipo de comparação entre um historiador e um romancista. Saramago não recorre ao Portugal na Espanha Árabe para chegar à Lisboa moura da História do Cerco. E o estilo de escrita de António Borges Coelho não corresponde à torrente oralizada do criador da Blimunda. Mas ambos fazem questão de que as suas personagens sejam de carne e osso, se sinta o ritmo da vida na cidade, e que o leitor consiga visualizar o que lê. O historiador imagina, como o romancista. O romancista convence, como o historiador. Ambos pensam o passado tendo em conta o que os preocupa no presente. Nenhum deles pensa que os valores são os mesmos. Lembremos como a família de Baltasar quer ter a certeza de que Blimunda não é judia. Lembremos, também no Memorial, a explicação popular para o fenómeno avistado, quando a barcarola sobrevoou a região de Lisboa. Era um sinal do Espírito Santo. Entre um imaginário e outro, o leitor compreende as razões. Historiador e romancista questionam uma humanidade em movimento, humanidade de que eles próprios fazem parte. Voltemos à história, aos seus protagonistas, à representação do esforço humano que é o do romancista, mas que podia ser do historiador, sempre no Memorial. Leiam-se as poderosas páginas (mais de vinte) onde se conta o transporte da grande pedra para Mafra.

Saramago não faz mistério da sua posição. Tal como o historiador, o romancista é um “escolhedor de factos”. As suas personagens mostram o seu olhar sobre a História. O que o leitor entende – o papel das personagens populares como agentes históricos, no sentido de protagonistas, mas também de agentes de transformação, sejam personagens individuais e personagens coletivas. O protagonismo e a relação com a História veem-se em alguns paralelos (casal real e casal popular, no Memorial, casal popular do século XII e casal do mundo da edição no século XX, na História do Cerco). Ao cruzar personagens históricos com outros inventados para a ocasião, e ainda outros inventados e presentes já no imaginário coletivo, está-se a dar vida à invenção. A presença de António José da Silva num auto da Fé cria um efeito em que a desgraça de Baltasar se torna também real. A presença de personagens que o leitor já conhece, o velho do Restelo de Camões, ou o Julião Mau Tempo que o próprio Saramago faz viajar entre o Levantados do Cão e o Memorial, cria um expediente de cumplicidade com o leitor que é também um efeito de realidade. Como o espaço. As ruas e caminhos do Memorial, as ruas do Ano da Morte, ou da História do Cerco não são as nossas, mas podemos imaginá-las e vê-las.

Vale a pena voltar às palavras do próprio escritor em 1995.

“São duas as atitudes possíveis ao romancista que escolheu, exclusiva ou ocasionalmente, os caminhos da História: a primeira, discreta e respeitosa, consistirá em reproduzir, a par e passo, os factos históricos conhecidos, sendo a ficção, nesse caso, mera servidora duma fidelidade que se deseja a salvo de acusações de falta de rigor de qualquer tipo; a segunda, mais ousada, levará o autor a entretecer, num tecido ficcional que se manterá predominante, os dados históricos que lhe servirão de suporte. Num caso como no outro, porém, estes dois vastos mundos, o mundo das verdades históricas e o mundo das verdades ficcionais, aparentemente inconciliáveis, serão harmonizados pela instância narradora.

Reside aqui, a meu ver, a questão essencial. Conhecemos o narrador que procede de maneira imparcial, que vai dizendo o que acontece, conservando sempre a sua própria subjectividade fora dos conflitos de que é espectador e relator. Há, porém, um outro tipo de narrador muito mais complexo, um narrador a todo o tempo substituível, que o leitor reconhecerá ao longo da narrativa, mas que muitas vezes lhe dará a impressão estranha de ser outro. Esse narrador instável poderá mesmo ser o instrumento ou o sopro de uma voz colectiva. Será igualmente uma voz singular que não se sabe donde vem e se recusa a dizer quem é, ou usa de arte bastante para levar o leitor a identificar-se com ele, a ser, de algum modo, ele. E pode, enfim, mas não explicitamente, ser a voz do próprio autor: é que esse, fabricante de todos os narradores, não está reduzido a saber só o que as suas personagens sabem, ele sabe que sabe e quer que se saiba…

Graças a esta forma de conceber, não apenas o tempo histórico, mas o Tempo tout court – projectando-o, por assim dizer, em todas as direcções –, autorizo-me a pensar que o meu trabalho no campo do romance tem sido capaz de produzir algo como uma oscilação contínua em que o leitor directamente participa, graças a uma contínua provocação que consiste em negar-lhe, por processos que são sempre de raiz irónica, o que primeiro lhe havia sido dito, criando no seu espírito uma impressão de dispersão da matéria histórica na matéria ficcionada, o que não só não significa desorganização de uma e outra como aspira a ser uma reorganização de ambas.” (1996: 185-187)

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