Intervenção de João Oliveira na Assembleia de República

"O governo deve exigir na comunidade internacional o fim dos paraísos fiscais"

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Enriquecimento injustificado (trigésima quinta alteração ao Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, quarta alteração à Lei n.º 34/87, de 16 de julho, e sexta alteração à Lei n.º 4/83, de 2 de abril)
(projeto de lei n.º 782/XII/4.ª)
Estabelece medidas de reforço ao combate à criminalidade económica e financeira, proibindo ou limitando relações comerciais ou profissionais ou transações ocasionais com entidades sedeadas em centros offshore ou centros offshore não cooperantes
(projeto de lei n.º 803/XII/4.ª)
Propõe a adoção pelo Estado português de um plano de ação nacional e internacional para a extinção dos centros offshore
(projeto de resolução n.º 1286/XII/4.ª)

Sr.ª Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:
As outras duas iniciativas que o PCP traz a este debate, além da do enriquecimento injustificado, são iniciativas verdadeiramente pioneiras do debate parlamentar e tratam de uma matéria que é da maior relevância.
Ao longo dos anos temos vindo a confirmar a miríade de problemas que surgem a partir da existência de offshore, problemas, de resto, em muitas circunstâncias identificados no debate político que vamos fazendo na Assembleia da República e que sempre encontraram uma constatação: a de que Portugal não pode, por si só, acabar com os offshore por todo o mundo e, portanto, o reconhecimento da insuficiência dessa posição unilateral do País foi sempre um obstáculo no debate político.
Ora, o que o PCP hoje faz neste debate é precisamente apontar um caminho para ultrapassar esse obstáculo. E procuramos ultrapassá-lo com a noção da verdadeira dimensão do problema que temos à frente.
Quando falamos de offshore, não estamos só a falar de paraísos fiscais, estamos a falar de outras realidades de outros territórios, países ou regiões que não só pelos regimes fiscais mas por outras condições se constituem como biombos atrás dos quais se escondem realidades criminais, realidades de corrupção, de tráfico de influências, de fraude fiscal, do necessário branqueamento de capitais, porque se trata de realidades que se escondem por trás de uma barreira intransponível quer das autoridades de supervisão, quer das autoridades judiciárias.
As zonas offshore são, de facto, em muitas situações, autênticas zonas insondáveis do ponto de vista da supervisão financeira e da cooperação judicial.
A existência destes espaços jurídicos funciona como uma zona livre de vigilância, de supervisão ou de ação judiciária. Temos vindo a confirmar, ao longo dos anos, as múltiplas dificuldades que se colocam ao Banco de Portugal, ao Instituto de Seguros de Portugal, à CMVM, ao próprio Ministério Público na perseguição e punição da atividade criminal que utiliza os centros offshore como um biombo para esconder as operações que dão suporte a essa atuação criminosa. Portanto, trata-se de zonas onde nem a lei fiscal, nem as autoridades judiciárias ou sequer a supervisão financeira conseguem entrar.
Os exemplos são variados e poderíamos referir aqui um longo rol, mas referiremos apenas um deles: a situação do BPN, onde se confirmou que, pela utilização de entidades criadas pelo próprio grupo com sede em paraísos fiscais, particularmente em centros offshore não cooperantes, ou seja, em centros offshore onde não há qualquer cooperação com as autoridades de supervisão financeira portuguesas ou com as autoridades judiciárias portuguesas, se desenvolveram práticas criminosas que estão a coberto de qualquer tipo de fiscalização, de vigilância ou, até, da própria punição.
E, Sr.as e Srs. Deputados, estas realidades originam dramáticas consequências para os cidadãos e os Estados não só nos planos económico e financeiro, mas também no plano criminal.
Os offshore são, de facto, verdadeiros biombos atrás dos quais se escondem hoje várias expressões da criminalidade.
A utilização de complexos esquemas e redes de empresas — muitas das quais sediadas em offshore, cooperantes ou não — é um elemento comum que impossibilita ou dificulta essa intervenção, que já referimos, no plano da supervisão ou da intervenção criminal, permitem o desenvolvimento de práticas que visam apenas a obtenção de rendas máximas ou da ocultação da proveniência ou destino do capital — particularmente quando ele tem uma proveniência ou um destino relacionado com a criminalidade —, de operações de planeamento e engenharia fiscal, de «circularização» e branqueamento de capitais. E os offshore são, de facto, plataformas utilizadas para criar esquemas complexos de fuga aos impostos ou de branqueamento de capitais, bem como para concretizar operações financeiras entre empresas, de forma a artificialmente inflacionar os seus lucros ou ocultar dívida — as conhecidas operações de round tripping ou, em português, operações de ida e volta.
Sr.as e Srs. Deputados, considerando todo este quadro, considerando todo este cenário, não só no plano nacional como internacional, de dificuldades em combater a criminalidade e de obter a informação necessária para efeitos de supervisão ou de exercício de ação criminal, é fundamental encontrar uma resposta para aquele obstáculo que está identificado de há muito tempo a esta parte.
Tem sido várias vezes afirmado que a existência de paraísos fiscais ultrapassa a capacidade de intervenção e decisão de um só Estado. De facto, o papel dos veículos sediados nos offshore deve convocar a ação política e diplomática, visando a extinção dos centros offshore à escala global.
Combater ativamente nos planos nacional e internacional e no âmbito das relações entre Estados a existência, a constituição e a utilização de paraísos fiscais, que são verdadeiras câmaras obscuras da economia e da finança, particularmente da criminalidade económica e financeira, é a proposta que o PCP hoje aqui traz.
Se é verdade que um governo não pode decidir o fim dos paraísos fiscais além das suas fronteiras, não é menos verdade que um governo tem toda a legitimidade para pugnar pelo fim dessas estruturas junto dos restantes Estados e instituições internacionais, nomeadamente da União Europeia e das Nações Unidas, seja pela negociação, seja pela subscrição ou conceção de tratados internacionais, no sentido de combater a existência dos offshore.
E enquanto tal objetivo não é atingido deve assumir-se a necessidade da ação legislativa no sentido da limitação das possibilidades de utilização dos offshore, com o reforço das medidas de controlo e prevenção por parte das autoridades fiscais, judiciais, económicas e financeiras, de supervisão e regulação.
Cada governo, cada Estado, tem competência para, na sua própria sede, impedir o envolvimento de paraísos fiscais e jurisdições não cooperantes em fluxos financeiros ou operações que envolvam a riqueza gerada nos seus próprios territórios.
O PCP apresenta, portanto, dois projetos que correspondem inteiramente a estas preocupações. Por um lado, propomos um plano de ação concertada a nível nacional e internacional — e incluindo, obviamente, a União Europeia e a ONU — para a extinção dos offshore, que prevê que o Estado português assuma uma posição clara no sentido de pôr fim à existência dos mesmos.
Por outro lado, entendemos que é determinante que Portugal inicie a aplicação de normas que limitem a exposição da sua economia, do seu sistema financeiro e do seu sistema judicial à utilização dos offshore e apresentamos um conjunto de propostas concretas relacionadas com estas matérias para que se possa dar concretização a estes objetivos de combate à criminalidade económica e financeira.
Sr.as e Srs. Deputados, o que fazemos é, procurando aproveitar o que já hoje existe no plano da legislação nacional, nomeadamente, de combate ao branqueamento de capitais e à criminalidade económica e financeira, encontrar formas de identificar offshore que o são só por si e offshore não cooperantes, ou seja, aquele tipo de offshore onde não há qualquer articulação com as entidades de supervisão ou as autoridades judiciárias.
Por outro lado, pretendemos envolver os próprios supervisores e o próprio Ministério Público na definição das condições que devem ser respeitadas para ser verificada essa cooperação.
Identificados os offshore não cooperantes, o que propomos é o estabelecimento de uma proibição de relações comerciais, profissionais ou de realização de operações financeiras que tenham como destino ou proveniência entidades sediadas em offshore não cooperantes.
Relativamente a todos os outros offshore, o que propomos é um mecanismo de registo e controlo das relações comerciais, das operações financeiras realizadas, aproveitando exatamente todo o regime que já existe para o controlo das operações financeiras relacionadas com o branqueamento de capitais.
De resto, nestes projetos, procurámos utilizar, na definição dos conceitos, o muito trabalho que já foi avançado, quer no plano nacional, quer no plano internacional, pelos Estados e pelas entidades de supervisão, aproveitando, nomeadamente, aquilo que resulta dos regulamentos do Banco de Portugal, que foi, ao longo do tempo, desenvolvendo regulamentação relacionada com os offshore. Portanto, procurámos utilizar conceitos que sejam os mais definidos possível para que se possa, de facto, combater a criminalidade que se esconde por trás dos offshore e se possa apontar um objetivo de extinção internacional dos offshore, sem que isso signifique que fiquemos de braços cruzados.
Sr.as e Srs. Deputados, para terminar, queria apenas dizer que a constatação de que os offshore são um mecanismo que esconde uma boa parte da criminalidade que estamos hoje aqui a tratar deve conduzir a uma consequência que, julgamos nós, é a necessidade de afirmação pelo Estado português do seu empenhamento na extinção dos offshore e na tomada de medidas que, até que eles estejam extintos internacionalmente, combatam e previnam a criminalidade económica e financeira, também por via do controlo, da fiscalização ou da proibição de relações com offshore.
(…)
Sr.ª Presidente,
Vou procurar conter-me dentro do tempo disponível que tenho.
Registo apenas dois elementos que julgo que são importantes nesta discussão.
O primeiro diz respeito ao avanço que se fez nesta discussão relativamente às questões do enriquecimento injustificado ou não declarado, consoante a terminologia que se prefira.
Este é um debate que, ao longo dos anos, por boas e más razões, tem vindo a ter alguns sobressaltos. Esperamos que, com esta discussão e com o processo na especialidade que se vai iniciar agora, de uma vez por todas se afastem todas as preocupações de inconstitucionalidade, garantindo mecanismos que salvaguardem princípios constitucionais, que têm obrigatoriamente de ser preservados e defendidos até às últimas circunstâncias.
E quanto a isso, Sr. Deputado Jorge Lacão, estamos inteiramente de acordo e registamos o facto de, nas intervenções feitas pelo Sr. Deputado, não ter havido nenhuma referência critica ao projeto do PCP relacionada com essa matéria. Ou seja, registamos como muito positivo o facto de não ter sido identificada nenhuma dificuldade em termos de inconstitucionalidade em relação ao projeto de lei do PCP, porque nós, de facto, fizemos esse esforço. Fizemos o esforço de trazer à discussão um projeto de lei que, procurando criminalizar o enriquecimento injustificado, o faça nos termos constitucionalmente previstos.
Portanto, registamos como muita positiva a apreciação que foi feita ao projeto do PCP por parte das outras bancadas, porque tivemos esse cuidado e levámo-lo muito a sério.
Relativamente à matéria relacionada com os offshore, esperamos que, com a discussão que poderemos fazer sobre este processo, na especialidade, das iniciativas que o PCP trouxe à discussão, a Assembleia da República possa, pela primeira vez, tomar uma posição clara quanto à postura do Estado português no que diz respeito à sua existência, apontando um caminho para a sua extinção. Essa constatação vem surgindo, ao longo dos anos, no debate.
A partir deste momento, com os projetos que o PCP trouxe, temos a possibilidade de afirmar esse caminho para acabar com os offshore e para que, até lá, se possam tomar medidas que garantam o combate à criminalidade, que utiliza precisamente o biombo dos offshore para esconder práticas e procedimentos que a alimentam ou que beneficiam dela.
Esperamos que, com este processo na especialidade, a Assembleia da República possa encontrar um caminho para afirmar uma posição de recusa por parte do Estado português deste estado de coisas, que hoje é evidente perante cada vez mais exemplos que denunciam esta realidade de financiamento ou de benefício da criminalidade a partir dos offshore.
O contributo que o PCP deu é, de facto, pioneiro. Não temos a ilusão de que este caminho pode ser feito de um dia para a outro, mas é preciso dar os primeiros passos, e é essa a proposta que o PCP trouxe para este debate.
Sr.as e Srs. Deputados, quer em relação ao enriquecimento injustificado, quer em relação à extinção dos offshore, esperamos que deste processo que hoje se inicia possa resultar uma posição clara e firme da Assembleia da República para ultrapassar estes dois graves problemas que atingem a sociedade portuguesa.

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