Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-Geral

Exposição de jornais manuscritos feitos por presos políticos do PCP

A colecção de jornais manuscritos feitos por presos políticos do PCP em diversas cadeias fascistas como Peniche, Caxias, Penitenciária de Lisboa, Cadeia de Monsanto, Aljube, Angra do Heroísmo e Tarrafal, num período que vai de 1934 a 1945 e que a partir de agora passa a estar disponível para consulta do público em resultado da cooperação que se estabeleceu entre o Partido Comunista Português e a Torre do Tombo, constitui a nosso ver um acontecimento cultural relevante e uma inegável contribuição para um melhor e  maior conhecimento dessa negra e trágica realidade que foi a ditadura fascista em Portugal, realidade cada vez mais branqueada e mesmo remetida ao esquecimento.

Mas é igualmente importante contributo para um maior conhecimento de aspectos que assumiu a luta heróica da resistência ao fascismo sem a qual não teríamos conquistado a liberdade em 25 de Abril de 1974.

Estes jornais foram feitos num período muito particular da vida do nosso país e do mundo. Foi no período de consolidação do fascismo, de aperfeiçoamento dos mecanismos policiais, da intensificação da repressão contra os antifascistas, da inauguração do Campo do Tarrafal concebido para a liquidação dos mais firmes e combativos resistentes. E no plano externo coincidiu com o avanço avassalador das hordas nazis por vários países, o esmagamento da república espanhola, a carnificina que foi a II Guerra Mundial, de pesadas e dolorosas derrotas do movimento operário e democrático na Europa e noutras partes do mundo.

Mas um período também do erguer de forças da resistência, do unir forças, do despertar consciências e da afirmação da vontade de homens, mulheres e jovens de lutar contra a barbárie nazi-fascista e de dar o melhor de si próprios pela liberdade.

Os jornais prisionais, nos seus textos, reflectem naturalmente esse período convulsivo e contraditório, de temores e horizontes sombrios, mas igualmente de batalhas e vitórias exaltantes.

Nas centenas de páginas que constituem estes jornais encontramos importantes informações sobre a repressão fascista, as precárias e degradantes condições prisionais a que eram sujeitos os presos políticos naquela época, sobre a luta dos presos e a abordagem de questões candentes como a natureza do fascismo e seus destinos, a constituição de Frentes Populares, a unidade antifascista, as causas e as consequências da guerra, o papel da União Soviética e muitas outras questões. Abordagens feitas por homens que, embora privados da liberdade e isolados do mundo exterior, procuravam manter-se informados, acompanhar o desenrolar dos acontecimentos, analisá-los e dar a sua contribuição para o desenvolvimento da luta geral de que a sua luta era parte integrante.
Ao lerem-se estes jornais não se pode ficar indiferente aos «testemunhos de grandeza e coragem revolucionária» dados por parte de homens que, apesar das condições tão difíceis e sombrias a que estavam submetidos, nos transmitem uma enorme confiança nos destinos da luta travada pelo seu Partido, o PCP, pelo nosso povo e os povos do mundo.

Os 18 títulos dos jornais existentes, abrangendo cerca de seis dezenas de números constituem, infelizmente, apenas uma parte de todos os jornais que terão sido feitos nesses anos e que não foram recuperados até hoje.

Sabe-se que existiram outros títulos como é o caso do Jornal com o cabeçalho THALMANN, em homenagem ao Secretário-geral do PC Alemão assassinado pelos nazis, jornal de que existe apenas uma cópia e mesmo assim incompleta e que curiosamente é também o único caso em que se conhece o autor, Alfredo Caldeira, dirigente do PCP, também ele assassinado num campo de concentração - no Campo do Tarrafal.

A avaliar pelo número das séries e pela numeração dos exemplares existentes calcula-se que deverão ter sido editados cerca de 200 números, o que é um feito verdadeiramente espantoso se se atender às condições em que eram produzidos e aos complexos problemas que os seus promotores tiveram que resolver para trazer à luz do dia os jornais, os fazer circular e os defender dos carcereiros.

Não é demais lembrar que estamos a falar de jornais clandestinos feitos nas cadeias fascistas, isto é, nas «barbas do inimigo» com tudo o que isso implicava. Sabendo-se que os presos eram sujeitos a rigorosa vigilância, a buscas frequentes às salas e celas, à privação por largos períodos de papel, de material de escrita e mesmo de notícias, não é difícil imaginar quanto engenho e audácia foram necessários para a sua feitura e também os riscos corridos por quem os fazia ou tão só os lia.

Não admira pois que o prestígio e espanto causado pelos jornais feitos por presos comunistas portugueses tenha ultrapassado as nossas fronteiras e alcançado projecção internacional.

A 12 de Setembro de 1935, o semanário francês “Monde”, dirigido pelo destacada intelectual e lutador antifascista Henri Barbusse, em editorial dedicado a estes jornais, classificava-os como «documentos únicos na história do movimento revolucionário».

Ainda que a afirmação se baseasse no conhecimento dum pequeno número de jornais em relação ao que viria a ser posteriormente feito, a afirmação era e continua a ser exacta. Na verdade não conhecemos nenhum outro caso de publicações produzidas no interior de cadeias fascistas de outros países (como aliás não conhecemos nenhum outro caso como o «Avante!» que tenha sido durante décadas ininterruptamente impresso clandestinamente no interior do país), que tenham atingido tal dimensão, pelo número de jornais editados, pela sua existência no tempo, por ser uma prática em quase todas senão mesmo em todas as prisões fascistas existentes à época, mas também pelos conteúdos e pela qualidade gráfica, alguns são autênticas obras de arte.

Estes jornais tinham objectivos muito precisos, desempenhando como que uma tripla função: a de informação e formação cultural, a de organizadores de colectivos prisionais e a de formação política e ideológica.

A imensa maioria dos presos que passaram pelas cadeias fascistas e os comunistas em particular, eram trabalhadores. Foi nas cadeias que muitos deles tiveram possibilidade de elevar os seus conhecimentos culturais, alguns mesmo a possibilidade de aprender a ler, mercê da ajuda de quadros preparados para o fazer. Estudar era um dever e uma tarefa, cuja realização encontrava nos jornais um importante instrumento. A vida colectiva prisional de pessoas de origens sociais muito diversas, isoladas por longos períodos, confinados muitas vezes, durante anos e anos, a espaços limitados, requeria uma grande tensão de esforços e de entre-ajuda. Todo o sistema prisional fascista estava montado para quebrar o ânimo revolucionário dos presos, para abalar as suas convicções políticas e ideológicas, para os dissuadir de voltar à luta uma vez em liberdade.

É pois compreensível o espaço que ocupam nestes jornais os incentivos a uma postura firme face ao inimigo,a ajuda a que os presos compreendessem que «o cárcere não era mais do que a uma fase da luta revolucionária» a continuação da luta por outras formas, mas parte integrante da que se tratava no país e consequentemente de que a prisão não podia quebrar a «cadeia» de luta.

Inserindo notícias do exterior, de diferentes casernas de uma mesma cadeia, e de outras cadeias, estes jornais ajudavam a quebrar o isolamento em que se encontravam os presos, desenvolviam o espírito de solidariedade entre si. Denunciavam as arbitrariedades dos carcereiros e impulsionavam a luta dos presos por melhores condições prisionais.

Permitam-me ainda duas observações. A primeira é que estes jornais foram escritos por comunistas, para comunistas. A outra é quanto ao forte vinco de textos teóricos e de natureza ideológica que eles contêm.

É compreensível que assim fosse. Os comunistas eram o núcleo mais numeroso dos presos políticos. Como se pode ler no «Boletim Interprisional» da organização comunista de Peniche, de Janeiro de 1936, dos 168 presos que se encontravam na altura no Forte, 102 eram comunistas, 15 eram anarquistas, 20 republicanos e os restantes de filiação vária, incluindo 3 fascistas dissidentes.

A relação não seria diferente nas outras cadeias e com o tempo tornou-se mesmo mais acentuada com a desagregação e capitulação de outras forças políticas e sociais.

O PCP foi a única força que, instaurado o fascismo, não se auto-dissolveu e conseguiu erguer uma organização clandestina.  Pelas cadeias passaram muitos milhares dos seus militantes incluindo quase todos, se não mesmo todos os seus principais dirigentes. As cadeias eram encaradas como importantes lugares de formação política e ideológica, de trabalho para a preparação dos quadros, que uma vez em liberdade se procurava que reocupassem o seu posto de combate na luta clandestina.

Lembremos a título de exemplo que a reorganização de 1940/41 que no seu desenvolvimento transformou o PCP num grande partido nacional, foi discutida no Tarrafal, ainda com Bento Gonçalves, Secretário-geral, e seria iniciada por um conjunto de quadros acabado de sair das cadeias, nomeadamente do Tarrafal, reorganização que teve em Álvaro Cunhal também ele saído da prisão o construtor principal.

Os jornais manuscritos feitos nas cadeias fascistas embora escritos por comunistas para comunistas devem ser considerados como parte integrante do património da resistência do nosso povo contra o fascismo, da luta pela liberdade e pela democracia.

É com imenso orgulho que nos revemos no trajecto de combate sem tréguas destas gerações que nos precederam e dirigimos o nosso olhar para o seu inestimável contributo para que Abril acontecesse.