Intervenção de

Entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional - Intervenção de António Filipe na AR

Regime de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional (Quarta alteração do Decreto-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, alterado pela Lei n.º 97/99, de 26 de Julho, pelo Decreto-Lei n.º 4/2001, de 10 de Janeiro, e pelo Decreto-Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro)

 

Sr. Presidente,

Vamos hoje debater uma matéria que é da maior importância e sobre a qual existem três iniciativas legislativas: uma proposta de lei e projectos de lei do PCP (n.º 248/X) e do BE.

Por força da revisão do Regimento operada na fase final da última Legislatura, iremos proceder ao debate desta matéria confrontados com a situação iníqua de o PCP dispor apenas de 10 minutos e o BE de 8 minutos para intervir, dispondo o Governo e a maioria, no seu conjunto, de 60 minutos. Repito que esta situação é uma decorrência da última revisão regimental, mas creio que a discussão de hoje coloca bem em evidência a iniquidade desta disposição.

Quero, pois, anunciar que o Grupo Parlamentar do PCP irá propor uma revisão ao Regimento para que, no futuro, esta injustiça possa ser corrigida.

(...)

(Bernardino Soares)

Sr. Presidente,

Para encerrar rapidamente este assunto, quero dizer que, desde a anterior Legislatura, o PCP tem colocado muitas vezes o problema na Conferência de Líderes.

Esta situação tem-se repetido sucessivamente nos nossos agendamentos. Não deixaremos de chamar à atenção para ela sempre que entendermos necessário.

Hoje o problema é especialmente grave porque a proposta de lei, que beneficia dos tais 60 minutos entre Governo e maioria, foi a última iniciativa a dar entrada.

Portanto, não se verifica a justificação que foi dada para esta forte limitação dos tempos para o contraditório das várias propostas, que era a de os partidos da oposição irem a correr apresentar iniciativas para verem o seu tempo majorado.

Neste caso, quem apresentou, no final, legitimamente, uma iniciativa foi o Governo. E o que acontece é que o Governo tem o tempo máximo, o PS tem o tempo máximo e os primeiros proponentes, o PCP e o BE, têm um tempo mínimo!

(...)

Sr. Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Srs. Deputados:

Dando cumprimento a um compromisso assumido no seu programa eleitoral, o PCP foi o primeiro a apresentar, nesta Legislatura, um projecto de lei que visa alterar em profundidade a chamada lei da imigração.

A necessidade quase unanimemente reconhecida de alterar esta legislação resulta, inequivocamente, do fracasso das sucessivas leis que têm sido aprovadas sobre esta matéria. Desde 1993 que a Assembleia da República aprova ciclicamente, ao sabor de diversas maiorias, alterações à «lei da imigração». Não houve, desde então, legislatura em que isso não acontecesse: aconteceu em 1996, em 1998, em 1999, em 2001 e em 2003. E hoje, em 2006, estamos de novo confrontados com a necessidade de mudar a lei.

E tudo isto por uma razão muito simples: porque não é a lei que se impõe à realidade mas a realidade que se impõe à lei!

Porque os governos que temos tido se têm revelado incapazes de compreender a realidade da imigração em Portugal e têm legislado para algo que não existe.

Os governos do PSD e do CDS aprovaram uma legislação de «portas fechadas» para combater uma suposta legislação de «portas escancaradas» que só existia na sua fantasiosa imaginação.

Os anteriores governos do Partido Socialista preferiram entender-se com o CDS-PP - o tal «bloco de direita»! - nesta matéria e aprovaram uma tal «lei das quotas», neste caso para a imigração, baseada num tal relatório sobre oportunidades de trabalho, que nunca serviu rigorosamente para coisa alguma, e criaram uma chamada «autorização de permanência» que se traduziu no aparecimento de uma nova figura do imigrante «descartável», a quem se autoriza a permanência para trabalhar e a quem se recusa qualquer outro direito.

Estas atitudes do legislador, assentes em clamorosos equívocos quanto à realidade dos fenómenos migratórios, têm contribuído objectivamente para que, em torno da imigração, se tenham gerado graves problemas sociais.

É falsa, embora muito difundida, a ideia de que Portugal tem uma legislação de «portas abertas». Não tem nem nunca teve!! Pelo contrário, Portugal tem seguido uma política de «portas quase fechadas» à imigração legal, o que constitui, objectivamente, um factor de crescimento de imigração ilegal, com tudo o que de negativo se lhe associa.

O que acontece é que nenhuma lei de «portas fechadas» é capaz de impedir o fenómeno social incontornável que a imigração constitui, em Portugal e em qualquer parte do mundo.

É falsa a ideia por vezes difundida de que Portugal, não sendo um país rico, não está em condições de acolher imigrantes. Ideia falsa porquanto os imigrantes não são parasitas, não vêm viver à custa de ninguém; vêm trabalhar e produzir mais do que aquilo que ganham. São trabalhadores que contribuem para a criação de riqueza e para o desenvolvimento do nosso país. A imigração não gera desemprego. Pelo contrário, é um importante factor de dinamização da economia.

A imigração não é algo de negativo com que o País esteja confrontado. A imigração é necessária e desejável. Todos os estudos indicam, não apenas relativamente a Portugal mas à Europa em geral, que o equilíbrio demográfico, a sustentabilidade dos regimes de segurança social e a própria actividade económica carecem de um forte contributo da população imigrante.

O que constitui, de facto, um problema, a todos os níveis, é a imigração ilegal e as práticas que lhe estão associadas.

É a exploração da mão-de-obra ilegal por parte de empresários sem escrúpulos que cria graves problemas no mercado de trabalho, que afectam todos os trabalhadores, nacionais e estrangeiros.

Para que a imigração ilegal seja combatida com eficácia é necessário, antes de mais, viabilizar a imigração legal, acabando com o absurdo e fracassado sistema de «quotas» constante da actual «lei da imigração» e adoptar critérios mais flexíveis de entrada em Portugal com propostas de contrato de trabalho.

É necessário, também, fiscalizar e sancionar devidamente o patronato sem escrúpulos que se aproveita da imigração ilegal para explorar os trabalhadores estrangeiros, aproveitando-se da sua situação de fragilidade, fazendo-os trabalhar sem quaisquer direitos e violando, muitas vezes de forma execrável, os mais elementares direitos humanos.

Importa, evidentemente, combater pela via policial as redes de tráfico de mão-de-obra ilegal e as associações criminosas que dela se alimentam, mas é preciso não confundir as vítimas com os criminosos.

É indispensável permitir que os trabalhadores estrangeiros em Portugal tenham a possibilidade de legalizar a sua situação e de viver entre nós com os seus familiares sem terem os seus direitos diminuídos e sem estarem reféns daqueles que beneficiam com a imigração ilegal.

Torna-se claro que, para que isso seja possível, a legislação portuguesa tem de ser repensada.

Combater a imigração ilegal e o trabalho clandestino, fonte de exploração desumana de tantos portugueses e estrangeiros, exige, entre outras medidas, uma lei de imigração diferente e mais democrática que assegure o respeito pelos direitos de todos os trabalhadores, sem discriminações quanto à sua origem nacional, e que trate todos os imigrantes como cidadãos de corpo inteiro que aspiram justamente a uma vida melhor e querem ser respeitados na sua dignidade; uma lei que não crie novas categorias de imigrantes com direitos mais condicionados, mas que aceite corajosamente estabelecer um enquadramento legal permanente que possibilite a regularização dos que, vivendo e trabalhando cá, sofrem todos os dramas da ilegalidade, deixando, de facto, de alimentar as redes internacionais de abastecimento da imigração ilegal e do trabalho clandestino que prejudicam todos os trabalhadores.

O projecto de lei que o PCP hoje apresenta propõe uma revisão global da «lei da imigração» que o exíguo tempo de que dispomos neste debate não me permite desenvolver. Em todo o caso, importa sublinhar, como aspectos fundamentais do nosso projecto:

A conversão do visto de residência e da autorização de residência em regime-regra para a admissão e para a regularização da permanência em Portugal, para o exercício de uma actividade profissional por conta de outrem ou por conta própria, bem como para a prossecução de actividades de estudo, de formação ou de investigação científica;

A consequente eliminação da figura dos vistos de trabalho e de estudo que serão substituídos por vistos de residência, a conceder de acordo com as finalidades requeridas;

A eliminação das «autorizações de permanência», garantindo aos cidadãos abrangidos o direito à obtenção de autorização de residência, a conceder oficiosamente;

O abandono das fracassadas políticas de quotas para imigrantes no acesso ao mercado de trabalho;

A limitação dos poderes discricionários em matéria de expulsão de cidadãos estrangeiros, reforçando as garantias destes quanto à possibilidade de recorrer judicialmente, com efeito útil, das decisões administrativas que afectem os seus direitos;

A eliminação de critérios de selectividade económica na renovação das autorizações de residência;

A eliminação de obstáculos e restrições ao direito ao reagrupamento familiar, nomeadamente com o reconhecimento da união de facto;

A redução da possibilidade de aplicação de penas acessórias de expulsão, excluindo de todo essa aplicação nos casos em que os cidadãos estrangeiros possuam autorização de residência permanente em Portugal, tenham nascido em Portugal e cá residam, se encontrem habitualmente em Portugal desde idade inferior a 10 anos ou tenham filhos menores residentes em Portugal.

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

Este processo legislativo constitui uma oportunidade, que não deve ser desperdiçada, para dotar finalmente o nosso país de uma «lei da imigração» minimamente decente, que seja parte da solução e que não seja, como até aqui, parte do problema.

O projecto de lei do Bloco de Esquerda constitui, na nossa opinião, um bom contributo nesse sentido.

A proposta de lei, do Governo, contém aspectos positivos que importa salientar, embora se recuse a ultrapassar alguns dogmas que têm marcado negativamente as políticas de imigração em Portugal.

A proposta de lei, do Governo, reconhece finalmente o óbvio: que a imigração é um fenómeno social incontornável e que se impõe a adopção de um quadro regulador que proporcione aos imigrantes um estatuto que favoreça a sua integração na sociedade portuguesa. Reconhece finalmente que a legislação actual não é adequada à realidade social e que conduziu ao crescimento do número de estrangeiros em situação ilegal.

Salienta-se como positiva a criação de um único tipo de visto e a adopção da autorização de residência como único tipo habilitante da fixação de residência em Portugal.

Regista-se a possibilidade de obtenção de autorizações de residência por parte dos titulares de autorizações de permanência, visto de trabalho, visto de estada temporária com autorização para trabalho e prorrogação de permanência com autorização de trabalho.

Regista-se o alargamento do regime de concessão de autorização de residência com dispensa de visto.

Salientam-se, finalmente, os melhoramentos propostos em matéria de reagrupamento familiar e de reforço de garantias dos cidadãos estrangeiros contra a expulsão.

Mas salienta-se também que esta proposta de lei continua prisioneira da política das quotas de imigração, cujo falhanço é reconhecido e clamoroso.

Não se entende como é que o Governo e o PS, conhecedores da inutilidade do chamado «relatório sobre as oportunidades de trabalho» enquanto mecanismo regulador da imigração, insistem em fazer depender a entrada legal de imigrantes de um «contingente global» de oportunidades de emprego, não preenchidas por cidadãos nacionais, comunitários ou estrangeiros já residentes. O Governo insiste no erro em vez de corrigi-lo.

Por outro lado, embora sejam dados passos importantes em matéria de regularização dos trabalhadores em situação ilegal, não parece que as soluções propostas sejam suficientes para ultrapassar um grave passivo económico e social que enfrentamos devido à imigração ilegal gerada por muitos anos de políticas erradas.

É sabido, mas importa repeti-lo, que o PCP não é entusiasta dos processos de regularização extraordinária, dado o seu carácter precário e limitado e dados eventuais efeitos indesejáveis que deles possam decorrer. Mas não podemos fechar os olhos à realidade e ignorar que vivem em Portugal muitos trabalhadores ilegais que poderiam e deveriam, com vantagem para todos, residir e trabalhar legalmente entre nós.

Se a legislação que vamos aprovar não tiver um impacto significativo na regularização de ilegais e se não forem adoptados mecanismos capazes de prevenir a imigração ilegal no futuro, estaremos, de novo, dentro de poucos anos, na contingência de ter de aprovar uma nova lei.

Esta previsão fizemo-la por várias vezes no momento em que esta Assembleia aprovou leis de imigração, cujo falhanço, para nós, era previsível. Por esta vez, gostaríamos de não ter razão.

Trabalharemos para isso, mas depende, fundamentalmente, do Governo e da maioria optar entre uma lei que regule o fenómeno da imigração de uma forma adequada e justa, que possa durar no tempo, ou uma lei agarrada a dogmas e condenada a falhar pelas mesmas razões por que as anteriores falharam.

 

 

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