Encontro com Comissões de Utentes e outros activistas da Saúde

Encontro com Comissões de Utentes e outros activistas da Saúde do Concelho do Seixal

 

 


Declaração de Jerónimo de Sousa, Secretário-geral do PCP
no Encontro com Comissões de Utentes
e outros activistas da Saúde do Concelho do Seixal

 

Quero começar por vos agradecer a resposta positiva que deram ao nosso convite para que, em conjunto, aqui no Seixal, possamos evocar o 28º aniversário da criação do Serviço Nacional de Saúde, resultado da iniciativa revolucionária do povo e de muitos profissionais de saúde no contexto da Revolução de Abril.

Porquê aqui no Seixal, poderão perguntar. A resposta é muito simples. Estamos num concelho onde é evidente a contradição entre os objectivos que presidiram à criação do SNS e as políticas de saúde que têm vindo a ser seguidas pelos sucessivos governos, com particular destaque para o actual. A contradição entre uma efectiva cobertura do país em serviços de saúde de qualidade e proximidade e a actual política de encerramento de serviços, entre a regulamentação da actividade privada e o aumento da promiscuidade entre público e privado.

Mas evocar os 28 anos do SNS é também lembrar a extraordinária luta que o povo Português tem desenvolvido em defesa do direito à saúde, como tem acontecido aqui no Seixal e por isso aqui estamos.

Muitos dos presentes conhecem bem as muitas carências que o povo português tinha nesta área em 25 de Abril de 74. Aqui faltava tudo. O acesso aos cuidados de saúde era um bem só ao alcance dos que tinham dinheiro e Portugal estava na cauda da Europa em todos os indicadores de saúde.

Com a Revolução de Abril a saúde passa a ser considerada não apenas um direito mas igualmente um espaço de intervenção onde, a par de outros, se jogava um pouco o destino da luta que então se travava por uma sociedade desenvolvida, pela melhoria das condições de vida do povo, objectivo central da revolução. A luta pela criação de um serviço público de saúde, constituiu também ela um importante factor na criação de condições subjectivas ao avanço do processo revolucionário.

É neste contexto que, em 2 de Abril de 1976, a Constituição da República designou este serviço público como Serviço Nacional de Saúde e inscreveu-o como instrumento da concretização da responsabilidade prioritária do Estado em garantir o direito à saúde a todos os portugueses em condições de igualdade, independentemente do seu estatuto social e económico.

Foi como uma espinha atravessada na garganta de um direita apostada, ontem como hoje, em fazer da saúde não um direito mas um negócio. A partir daí os chamados “interesses instalados” na saúde, designadamente os grupos financeiros privados com as respectivas seguradoras, os grupos privados na área da produção e distribuição de produtos farmacêuticos, ancorados na intervenção política do PSD, CDS/PP e com conivência do PS, tudo fizeram para impedir a articulação e exploração das integrais potencialidades do SNS. Bem se pode dizer que mal começa a dar os primeiros passos, é atacado por aqueles que cinicamente o tinham acabado de votar na Assembleia da República.

Apesar de todas as tropelias a que foi sujeito e com as quais o procuraram desacreditar, o SNS cresceu e estruturou-se, tornando-se, de acordo com a última classificação atribuída pela Organização Mundial de Saúde, no 12º melhor a nível mundial à frente de muitos países com níveis de desenvolvimento mais elevados. Nestes 28 anos o País passou de uma taxa de mortalidade infantil de 39 por 1000 para uma de 5 por 1000 e uma esperança de vida à nascença de cerca de 69 anos para 78,18 anos.

Passados estes 28 anos os portugueses estão confrontados com dificuldades crescentes no acesso aos cuidados de saúde, com um processo de privatização que tem levado a que, paulatinamente, os grupos privados ocupem o espaço abandonado pelo Estado, tendo já hoje nas suas mãos cerca de 50% dos cuidados em ambulatório e 10% dos cuidados hospitalares, com o negócio dos medicamentos que não pára de crescer, com a baixa de qualidade dos cuidados prestados, por força das medidas restritivas que têm vindo a ser tomadas.

Em pleno século XXI morrem portugueses por falta de assistência, aumentam os partos nas ambulâncias, mais de 700 mil não têm médico de família, mais de 220.000 aguardam por uma cirurgia, alguns deles durante anos.
 
Sistematicamente o Governo procura justificar as suas medidas com argumentos de ordem técnica. Já vem sendo uma rotina antes de qualquer decisão aparecer na comunicação social o resultado de um estudo técnico que fundamenta a decisão que acaba por ser tomada. Desta forma o governo procura não apenas desviar o debate para as questões técnicas, como vai tomando um conjunto de medidas que, parecendo dispersas, configuram uma alteração profunda e global no sistema de saúde em Portugal.

Tal como ontem, também hoje, o confronto principal na área da saúde situa-se nos planos político e ideológico e é travado entre os que defendem um Serviço Nacional de Saúde “geral, universal e gratuito” e os que olham para a saúde não como um direito mas como uma oportunidade de negócio, num “mercado” já hoje superior a 14 mil milhões de euros, quase 10% do PIB nacional.

O Ministro da Saúde e não poucas vezes o Primeiro-ministro têm afirmado que para defender o SNS é preciso torná-lo mais eficaz e dar-lhe mais qualidade, porque os recursos do Estado não são inesgotáveis.

Que diferença abismal entre o discurso e a prática!

Desde a primeira hora que este Governo mostrou não estar interessado em defender o SNS. Diz-se muito preocupado com os recursos do País, mas mantém o sub-financiamento crónico da saúde, tem favorecido a promiscuidade entre o público e o privado, favorece sistematicamente a indústria do medicamento, criando condições para o alargamento do mercado, estas sim razões para um aumento significativo dos custos e do desperdício.

Fala na eficácia e na qualidade mas encerra serviços numa política contrária aos cuidados de proximidade e pratica uma política de recursos humanos que leva à redução de pessoal nos serviços e cria instabilidade nos profissionais. Em vez de investir na melhoria da qualidade dos serviços, encerra-os.

O que o Primeiro-ministro e o Ministro da Saúde não dizem é que também eles, tal como o PSD e o CDS/PP, sustentam as suas políticas para a saúde em duas teses centrais: a primeira, não provada, é de que o privado gere e faz melhor que o público; a segunda é de que os gastos com a saúde não são um investimento no país, mas uma despesa com os portugueses e por isso estes devem ser chamados a partilhar cada vez mais os custos globais. É o princípio muito do agrado dos neoliberais do “utilizador/pagador”.

No que respeita ao primado do privado e tendo como ponto de partida uma avaliação rigorosa à gestão privada do hospital Amadora/Sintra, podemos concluir não apenas que a qualidade do serviço é inferior à generalidade dos hospitais com gestão pública, como do ponto de vista económico o contrato rubricado com o Grupo Mello Saúde constituiu um negócio ruinoso para o Estado.

Já sobre a partilha dos custos, mais do que uma transferência das responsabilidades constitucionais do Estado para os cidadãos que hoje já pagam cerca de 30% dos custos totais com a saúde (já com os seguros de saúde incluídos), estamos perante uma medida que visa sobretudo preparar os portugueses para uma privatização em larga escala dos serviços públicos de saúde. 

Segundo dados revelados ainda esta semana pelo INE, «em 2005, cerca de 50,2% da despesa das famílias centralizou-se na aquisição de serviços de cuidados de saúde prestados pelo conjunto dos outros prestadores de cuidados de saúde em ambulatório (consultórios ou gabinetes médicos, centros de cuidados de saúde especializados e ambulatório particulares com e sem fins lucrativos, laboratórios médicos e de diagnóstico e outros cuidados de saúde em ambulatório). Ou seja mais de metade da despesa é feita fora do SNS.

O argumento de que Portugal é um dos países que mais gasta em saúde não é verdadeiro, porque segundo dados da OCDE referentes a 2005, ocupávamos o 23º lugar entre 30 países com uma despesa «per capita» de 2033 dólares (unidades de Paridade Poder de Compra), menos de metade da Noruega ou da Suíça e muito afastado da Grécia com 2.981.

Independentemente das medidas que são necessárias tomar, medidas que há muito o PCP reclama, nos planos político, financeiro e técnico que contribuam para a melhoria da prestação do SNS, as verdadeiras causas para os problemas com que os portugueses são confrontados na saúde, podemos encontrá-las nas políticas de direita que têm vindo a ser implementadas, como acontece aqui no concelho do Seixal, um dos mais populosos do país.

O encerramento dos SAP de Corroios e do Seixal e os recuos face à construção do novo Hospital do Seixal, são consequência natural de uma orientação geral do governo cujo objectivo é consolidar o processo de privatização dos serviços públicos de saúde, e não o resultado de qualquer estratégia que vise no quadro do SNS resolver os muitos e graves problemas que se sentem não só no Seixal, mas em toda esta região.

Só assim se compreende que perante as crescentes dificuldades de acesso dos utentes aos cuidados primários e perante a incapacidade de criarem no quadro do SNS um número suficiente de USF, situação que já se sabia vir a acontecer, o Ministério da Saúde tenha decidido encerrar SAP, introduzir importantes alterações na rede hospitalar a construir nesta região e, como há muito denunciámos, abrir a partir do próximo ano a privados a criação de novas USF onde há utentes sem médico de família. Estamos a falar de centenas de milhar de utentes que terão no futuro uma importância significativa na rentabilização dos hospitais privados.   

É neste quadro do agravamento do conflito público-privado no SNS, muito por força dos compromissos assumidos pelo governo, que vão emergindo no «mercado da saúde» cinco grandes grupos privados, quase todos integrantes dos maiores grupos financeiros portugueses, cujos objectivos de negócio passam por facturar já em 2010 mais de 800 milhões de euros.

Compromissos que passam também pelas Parcerias Público Privadas (PPP) relativamente aos novos hospitais, em que ao contrário do que o Ministro vinha afirmando e segundo as suas próprias palavras na passada terça-feira na Assembleia da República, está em aberto a possibilidade da entrega da gestão clínica a privados. Se à decisão das PPP, juntarmos o licenciamento de novos hospitais e clínicas da responsabilidade dos grupos privados, então perceberemos o porquê dos recuos do governo relativamente à construção de novas unidades públicas de saúde, incluindo o novo Hospital do Seixal.

Para o PCP a solução para os problemas na saúde passa pela existência de um Serviço Nacional de Saúde, sua concretização e desenvolvimento como Serviço Público, universal, geral e gratuito, eficiente e eficaz, mantendo-se o Estado como prestador geral e universal de cuidados de saúde, com a completa separação entre o sector público e privado.

Um SNS que tal como foi definido pela Assembleia Mundial da Saúde no passado mês de Maio, considere que a saúde dos trabalhadores é determinada não só por factores de risco laborais, mas também por factores individuais e sociais e pelo acesso aos serviços de saúde e que a saúde dos trabalhadores é um pré requisito essencial para a produtividade e o desenvolvimento económico.