Intervenção de

Divórcio - Intervenção de António Filipe na AR

 

Regime Jurídico do Divórcio

 

Sr. Presidente,

Srs. Deputados:

Como já tivemos oportunidade de referir publicamente, apreciamos positivamente o projecto de lei (projecto de lei n.º 509/X) apresentado pelo Partido Socialista.

Reconhecemos que a legislação existente, nesta matéria, no fundamental, remonta a 1977 e constituiu, nessa altura, um enorme progresso que importa registar, mas passaram 30 anos. Esta legislação reflectia as concepções sociais dominantes na altura, mas a realidade sociológica alterou-se e, portanto, hoje, o senso comum quanto à relação de casamento e à sua subsistência está significativamente alterado.

Mas vamos, então, ponto por ponto, referir a nossa posição relativamente ao projecto de lei apresentado pelo Partido Socialista.

Concordamos, em primeiro lugar, no que se refere ao divórcio por mútuo consentimento, que faz sentido eliminar a chamada tentativa de conciliação. É, para nós, evidente que, quando duas pessoas decidem divorciar-se, por mútuo consentimento, essa conciliação não faz sentido. As pessoas estão conciliadas quanto à ideia de se divorciarem e, como tal, não faz sentido impor uma tentativa de conciliação, que, aliás, a prática tem revelado absolutamente ineficaz e irrelevante, sendo, por isso, lógico que seja eliminada.

Temos também algum cepticismo quanto às vantagens significativas da mediação familiar, mas esta é uma questão secundária nesta matéria, porque o que é importante, e isto é salvaguardo, é que os acordos complementares do divórcio por mútuo consentimento, designadamente o destino dos bens comuns, as responsabilidades parentais a assumir por ambos os cônjuges, eventuais pensões de alimentos que devam ter lugar ou o destino da casa de morada de família, devam ser objecto de decisão judicial, tal como está previsto no projecto de lei.

Em segundo lugar, também concordamos com a conveniência de se acabar com o divórcio-sanção, assente na violação culposa de deveres conjugais, assente na culpa. Consideramos que, de facto, esta proposta representará um progresso e está de acordo com aquele que é, hoje, o senso comum quanto a uma relação conjugal, isto é, o casamento deve existir enquanto ambos quiserem que exista, havendo um dos cônjuges que não queira estar casado, havendo uma ruptura, por essa via, da relação conjugal, isso deve ser considerado, obviamente, como motivo suficiente para que o divórcio seja decretado. Portanto, entendemos que é ajustado considerar as circunstâncias objectivas para a cessação do casamento e não fazê-la depender do juízo de culpa de um dos cônjuges, sendo o divórcio decretado de um contra o outro, com base nesse juízo e fazendo essa discussão em tribunal. Consideramos, pois, um progresso ir pelo caminho que aqui é proposto.

Também concordamos com a nova qualificação do poder paternal como responsabilidade parental, e nada mais acrescento relativamente a esta matéria, assim como também nos parece justificado que cesse o vínculo de afinidade, havendo uma cessação do casamento por via de divórcio. Não se compreende por que é que a afinidade haveria de subsistir não subsistindo o casamento que lhe esteve na origem e que foi a sua única causa...!

A questão que quero agora abordar diz respeito aos efeitos patrimoniais, e é esta que, do nosso ponto de vista, tem mais que se lhe diga e carece de uma apreciação cuidada, aquando do debate na especialidade. É porque se os princípios que constam deste projecto de lei são, cada um por si, em princípio, justificados, haverá que fazer alguma conciliação entre eles.

Parece justo, em primeiro lugar, o princípio geral da comunhão de adquiridos, ou seja, que a partilha deva ser feita de acordo com os critérios que presidem ao regime da comunhão de adquiridos. Porém, quer-nos parecer que a disposição do projecto de lei que prevê a existência de um crédito de um dos cônjuges, por via de uma contribuição desigual para os encargos da vida familiar, contraria, de certa forma, esse princípio.

Existindo um casamento em que os dois cônjuges estão numa situação diferente, em termos económicos, porque um tem um emprego bem remunerado e o outro tem um emprego mal remunerado ou não tem emprego, ou porque um deles tem uma situação de família diferente da do outro do ponto de vista económico, quer-nos parecer que, na constância do casamento, a contribuição para os encargos da vida familiar é aquela que cada um deles, dentro da sua disponibilidade natural, puder e quiser dar, e isso é assumido entre ambos. Portanto, choca-nos um pouco que, na dissolução do casamento, se venha a considerar que um tem um crédito sobre o outro, porque estava em condições de contribuir melhor.

Embora se saiba que esse crédito só vale para efeitos de partilha, quer-nos parecer que há aqui um princípio que vale a pena questionar e verificar se é, efectivamente, ajustado.

Por outro lado, o princípio de que o divórcio não é um meio para adquirir bens, com o que concordamos, não pode ser absoluto, porque, efectivamente, pode verificar-se alguma injustiça. Uma das disposições legais refere expressamente que os cônjuges não têm o direito de manter um padrão de vida, ou seja, que o cônjuge que pede o divórcio não tem o direito a reivindicar o padrão de vida que tinha. Ora, nós, em princípio, concordamos com isso, mas temos de ver o reverso da medalha, isto é, não se deve criar uma situação em que o cônjuge economicamente mais favorecido peça o divórcio, por sua iniciativa, e coloque o outro cônjuge, por essa via, numa situação económica difícil. Isto resolver-se-á, obviamente, com a fixação de uma pensão de alimentos razoável, mas é bom que a lei consagre, exactamente, esse princípio, de forma a que o divórcio, que, concordamos, não deve ser um meio de poder obter rendimentos de modo injustificado ou ilegítimo, também não deva representar uma sanção para quem, não querendo o divórcio, tem uma situação económica que poderá ficar desfavorecida se a sua condição não for, efectivamente, acautelada.

Portanto, esse é um ponto que entendemos dever ser devidamente equacionado, aquando do debate na especialidade, e quer-nos parecer até que a conciliação destes princípios - do princípio geral de que a cessação do vínculo conjugal se deve fazer de acordo com a regra da comunhão de adquiridos, do princípio de que ninguém deve ser ilegitimamente beneficiado pelo divórcio, relacionado com a ideia de que há um crédito sobre o outro cônjuge da parte de quem contribuiu de uma forma manifestamente desigual para os encargos da vida familiar... - gera um puzzle que nem sempre é fácil de conjugar. E, a coexistirem todos estes princípios, poderão criar-se aqui situações que levem a uma disparidade jurisprudencial que, efectivamente, ponha em causa a segurança jurídica.

Portanto, valerá a pena que estes três princípios sejam mais adequadamente conjugados e, obviamente, creio que teremos todo o debate na especialidade, com a audição dos especialistas em Direito da Família que se considere adequada, para poder encontrar uma forma de os conciliar de um modo justo e que não contribua para situações indesejáveis.

Finalmente, há um último ponto com que concordamos, que é o de considerar como crime de desobediência o incumprimento de responsabilidades que sejam assumidas na sequência do divórcio, designadamente em matéria de pensões de alimentos. Quer-nos parecer que pode ser um tanto desproporcionado considerar crime de desobediência toda e qualquer violação do que tenha sido acordado - e vale a pena ponderar isto devidamente -, porque pode haver matérias de diferente valoração e de diferente importância.

Mas de uma coisa não temos dúvidas: é que faz todo o sentido que quem fica obrigado a uma pensão de alimentos a um ex-cônjuge ou, designadamente, a filhos menores e não cumpre essa obrigação seja severamente penalizado. E nada nos choca, rigorosamente nada, antes pelo contrário, que essa conduta possa ser considerada como crime de desobediência, nos termos da lei.

Portanto, como disse há pouco, encaramos favoravelmente esta iniciativa legislativa. Quer-nos parecer que estamos no início de um processo legislativo que levará a um progresso assinalável em matéria do regime jurídico do divórcio e, obviamente, estamos inteiramente disponíveis para, na especialidade, dar a nossa melhor contribuição para esse objectivo.

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