Projecto de Lei N.º 70/XII/1.ª

Define o regime de certificação e adopção dos manuais escolares, garantindo a sua gratuitidade

Preâmbulo

O país está confrontado com uma profunda recessão económica e uma dramática situação social. Uma realidade que, sendo inseparável de mais de 35 anos de política de direita, do processo de integração capitalista na União Europeia, da natureza do capitalismo e da crise, é brutalmente agravada com a concretização pelo actual governo do programa de agressão e submissão que PS, PSD e CDS subscreveram com o FMI e a União Europeia.

Depois de uma década de estagnação económica com períodos recessivos - registando a pior evolução de toda a Zona Euro - a concretização nos últimos meses das chamadas medidas de austeridade, submetidas à ditadura do “défice” e aos interesses do grande capital, colocam no horizonte, não a resolução dos principais problemas do país, mas uma prolongada recessão económica e enorme regressão das condições de vida do povo português durante as próximas décadas.

Os últimos dados divulgados pelo INE sobre a evolução da economia portuguesa têm tanto de assustador como de aviso: no primeiro semestre do ano assistimos a quebras históricas em termos homólogos no consumo público -4,5%, no consumo privado -3,4% e no investimento -12,5%. Valores que confirmam uma perigosa espiral de afundamento do país e que ameaçam pulverizar as já de si assustadoras estimativas que apontam para uma quebra em Portugal do Produto Interno Bruto de - 2,2% em 2011 e de -1,8% em 2012.

Por tudo isto, fazer face às despesas da educação exige das famílias um esforço de sobrevivência injusto, fruto da desresponsabilização do Estado e do colossal corte do investimento público para a educação.

O relatório "Indicadores Sociais 2007" do Instituto Nacional de Estatística revelou que a educação foi a parcela do orçamento das famílias portuguesas que mais cresceu entre 2001 e 2007. Segundo o relatório do INE, no período de 2001 a 2007, "as classes de despesa das famílias que registaram maiores aumentos de preços foram a Educação (+42,8%) (…) e transportes (+28,5%)".

Na anterior legislatura, as decisões do Governo PS sobre o aumento do preço dos manuais escolares já haviam conduzido a um aumento significativo dos seus custos para as famílias. O actual Governo PSD/CDS pretende cortar de mais de 500 milhões de euros no orçamento para a educação em 2012, depois do corte de 800 milhões em 2011, num contexto de grande contracção do rendimento disponível das famílias e de um aumento significativo com os custos directos que querem impor na educação. Estes cortes terão como efeito a transferência crescente dos custos com a educação para as famílias, levando ao abandono precoce da escola de milhares de jovens e a profundas desigualdades nas condições em que se desenvolve o percurso escolar de cada criança e jovem.

O sistema educativo e a Escola Pública estão hoje confrontados com um conjunto de problemas que só terão solução num contexto de rejeição do programa de agressão que está em curso e de ruptura com a política de direita, abrindo caminho a uma outra política educativa que assuma a educação como um valor estratégico fundamental para o desenvolvimento do País e para o reforço da identidade e soberania nacional, com prioridade para um efectivo combate ao abandono e ao insucesso escolar e educativo. É neste quadro que se confirma e reforça a necessidade de um regime de certificação e adopção dos manuais escolares, garantindo a sua gratuitidade aos alunos em escolaridade obrigatória do ensino público.

A Lei n.º 47/2006, em vigor, que “define o regime de avaliação, certificação e adopção dos manuais escolares do ensino básico e secundário, bem como os princípios e objectivos a que deve obedecer o apoio sócio-educativo relativamente à aquisição e ao empréstimo de manuais escolares”, e a experiência da sua aplicação não têm em conta o artigo 74.º da Constituição da República Portuguesa que assegura que «todos têm direito ao ensino como garantia do direito à igualdade de oportunidades e êxito escolar» e acrescenta que incumbe ao Estado «assegurar o ensino básico universal, obrigatório e gratuito».

Com efeito, a gratuitidade da escolaridade obrigatória significa que os manuais e outro material didáctico devem ser gratuitos para todos, mas esta Lei continua a limitar este apoio à acção social escolar, o que contempla apenas famílias com capitação muito baixa.

O Projecto de Lei que agora retomamos mantém os seus dois objectivos principais:

  1. Propor um conjunto de procedimentos de avaliação, selecção, certificação e adopção dos manuais escolares como instrumentos didáctico-pedagógico relevante para o processo de ensino-aprendizagem das crianças e dos jovens que frequentam os ensinos básico e secundário;
  2. Garantir, de facto, o que o texto constitucional já consagra como um direito.

Relativamente ao primeiro objectivo, o Grupo Parlamentar do PCP reconhece a relevância do manual escolar, considerando, no entanto, que este instrumento é cada vez menos exclusivo.

Mas o facto do manual escolar constituir ainda para muitas crianças e jovens e mesmo até para algumas escolas o mais importante meio capaz de responder aos objectivos e finalidades programáticas de cada disciplina ou área curricular, exige que se garantam as condições necessárias e suficientes à sua qualidade.

Por isso, propomos que os estabelecimentos de ensino básico e secundário só possam adoptar manuais escolares previamente certificados.

A certificação será realizada por uma Comissão Nacional de Avaliação e Certificação, nomeada pelo Ministério da Educação e presidida por uma personalidade de reconhecido mérito científico e pedagógico, designada de entre os seus membros.

Esta Comissão integrará representantes das comunidades educativa e científica e das organizações profissionais e científicas dos docentes.

Dada a diversidade das matérias em causa e a exigência de requisitos de qualidade científica e pedagógica, propõe-se o funcionamento de subcomissões especializadas por áreas disciplinares.

Este procedimento final de certificação conta com a apreciação prévia das escolas, formulada pelos docentes em documento específico que, posteriormente, é enviado à Comissão Nacional de Avaliação e Certificação.

O nosso projecto garante, como é óbvio, que da decisão de não certificação cabe recurso para o Ministro da Educação.

Admite-se também que perante a ausência de iniciativa editorial, caberá ao Estado assegurar a elaboração, produção e distribuição de manuais escolares ou de outros recursos didáctico-pedagógicos.

Considerando ainda que o desenvolvimento do conhecimento científico e pedagógico não pode ser questionado por uma estabilidade obrigatória da adopção de manuais escolares, propomos que a Comissão Nacional de Avaliação e Certificação possa reduzir o período de validade da certificação sempre que existirem razões para tal.

Duas áreas merecem também referência e tratamento particular no nosso projecto, no que à adopção de manuais diz respeito: a iniciação à escrita e à leitura e as necessidades educativas especiais.

No que se refere ao segundo objectivo, o projecto do PCP, como já o afirmámos, assegura o cumprimento de um direito constitucional.

O nosso projecto garante que todos os alunos que frequentam a actual escolaridade obrigatória, nos estabelecimentos de ensino público têm acesso gratuito aos manuais escolares.

Afirmam a este propósito Vital Moreira e Gomes Canotilho que a incumbência do Estado em assegurar o ensino básico, universal, obrigatório e gratuito, implica, nomeadamente, a obrigação de criação de uma rede escolar de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de todas as crianças quanto à formação escolar de base (…) e “a criação de condições para que a obrigatoriedade possa e deva ser exigida a todos (gratuitidade integral, incluindo material escolar, refeições, transportes)”.

Na verdade, vários estudos realizados apontam as condições sócio-económicas das famílias e as dificuldades dos pais acompanharem os filhos em idade escolar, como uma das principais causas para que se mantenham elevadas taxas de abandono e insucesso escolar, num contexto de agravamento do nível de vida da maioria dos portugueses, a gratuitidade dos manuais escolares será um importante contributo não apenas para diminuir os níveis de insucesso e abandono escolares, mas também para a melhoria da qualidade do sucesso.

Para assegurar a gratuitidade dos manuais escolares a todos os alunos da escolaridade obrigatória, bastaria um acréscimo residual na despesa do orçamento do Ministério da Educação. Este acréscimo será um verdadeiro investimento para o futuro, dado o impacto que poderá ter na redução do abandono escolar prematuro e, consequentemente, no aumento do nível de escolaridade da nossa população, com reflexos positivos no nível de rendimento individual e no crescimento económico do País.

Nestes termos, ao abrigo das disposições constitucionais e regimentais aplicáveis, os Deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte Projecto de Lei:

Artigo 1.º

Objecto e âmbito

A presente lei define o regime de certificação e adopção dos manuais escolares dos ensinos básico e secundário e garante ainda a gratuitidade da sua distribuição na escolaridade obrigatória do sistema público.

Artigo 2.º

Definição de manual escolar

Para os efeitos da presente lei considera-se manual escolar o recurso didáctico-pedagógico relevante, ainda que não exclusivo, do processo de ensino aprendizagem, concebido por ano ou ciclo, podendo incluir o manual do aluno e o guia do professor, que visa contribuir para o desenvolvimento de competências gerais e específicas definidas pelos documentos curriculares em vigor para o ensino básico e secundário, contendo a informação básica e as experiências de aprendizagem e de avaliação necessárias à promoção das finalidades programáticas de cada disciplina ou área curricular disciplinar.

Artigo 3.º

Certificação dos manuais escolares

Nos estabelecimentos de ensino básico e secundário só podem ser adoptados os manuais escolares previamente certificados.

Artigo 4.º

Entidade certificadora dos manuais escolares

  1. A certificação dos manuais escolares é da responsabilidade de uma Comissão Nacional de Avaliação e Certificação, adiante designada por CNAC, nomeada pelo Ministério da Educação, composta por representantes das comunidades educativa e científica e das organizações profissionais e científicas dos docentes, sendo presidida por personalidade de reconhecido mérito científico e pedagógico, designada de entre os seus membros.
  2. A composição, regime de funcionamento e estatuto dos membros da CNAC são definidos por decreto-lei.
  3. O mandato dos membros da CNAC tem a duração de quatro anos, renovável por um mandato.
  4. A CNAC funcionará com subcomissões especializadas por áreas disciplinares.
  5. Para além de proceder à certificação dos manuais escolares nos termos dos artigos seguintes, a CNAC deve garantir o cumprimento dos requisitos de certificação durante o período de validade da mesma.

Artigo 5.º

Requisitos da certificação

  1. São requisitos de certificação dos manuais escolares:
    1. a qualidade pedagógico-didáctica e o rigor científico;
    2. a adequação aos objectivos e conteúdos programáticos definidos;
    3. a integração da diversidade social e cultural e as representações não estereotipadas;
    4. a qualidade material, nomeadamente a robustez, o peso e o preço.
  2. Os manuais que prevejam a realização de exercícios são acompanhados de suplemento destacável para o efeito.
  3. Os requisitos referidos no nº 1 do presente artigo são aplicáveis a todos os manuais escolares, independentemente do tipo de suporte que apresentam.

Artigo 6.º

Validade da certificação

  1. A certificação dos manuais é válida por um período de quatro anos lectivos.
  2. A CNAC pode determinar, aquando da certificação do manual ou em momento posterior, uma redução do período de validade estabelecido no número anterior sempre que:
    1. desenvolvimentos relevantes no conhecimento científico ou tecnológico se verifiquem ou possam vir a verificar-se;
    2. os conteúdos dos programas sejam substancialmente alterados;
    3. ou ainda outros considerados relevantes pela CNAC.

Artigo 7.º

Apreciação inicial

  1. Até ao início do último ano lectivo de validade da certificação dos manuais, as editoras colocam à disposição de todas as escolas os manuais que propõem para certificação, disponibilizando os exemplares necessários à sua apreciação.
  2. As escolas organizam o processo de apreciação de cada manual escolar proposto por disciplina e ano de escolaridade, com a participação dos respectivos docentes e registam o seu resultado fundamentado em documento específico, a elaborar pela CNAC.
  3. O resultado da apreciação deve ser enviado pelas escolas à CNAC até 31 de Dezembro.

Artigo 8.º

Procedimento de certificação

  1. A CNAC procederá à análise, selecção e certificação dos manuais, por disciplina e ano de escolaridade, que cumpram os requisitos previstos no artigo 5.º.
  2. A decisão de certificação da CNAC é comunicada às escolas e às editoras até 31 de Março.

Artigo 9.º

Recurso

  1. Da decisão de não certificação de manuais pela CNAC cabe recurso para o Ministro da Educação.
  2. As editoras dispõem de quinze dias para interpor recurso devidamente fundamentado, após conhecimento da decisão da não certificação do manual.
  3. O Ministro da Educação deverá decidir sobre o recurso no prazo de 30 dias.

Artigo 10.º

Incumprimento de requisitos em manuais certificados

  1. Sempre que no decurso da prática lectiva, forem identificados, nos conteúdos de manuais certificados, elementos que contrariem os requisitos de certificação previstos no artigo 5º, a CNAC notifica a editora para proceder às necessárias correcções, em prazo determinado, mediante errata ou nova edição.
  2. Sempre que seja necessário proceder à correcção de um manual no ano lectivo em curso, as editoras devem enviar às escolas uma errata em número de exemplares igual ao dos manuais distribuídos.
  3. O incumprimento do prazo fixado para a correcção do manual implica a caducidade da certificação.

Artigo 11.º

Ausência de iniciativa editorial

O Estado garante a elaboração, produção e distribuição de manuais escolares ou de outros recursos didáctico-pedagógicos, perante a ausência de iniciativa editorial.

Artigo 12.º

Adopção dos manuais escolares

  1. As direcções de escola ou do agrupamento adoptam os manuais escolares certificados por períodos de quatro anos lectivos, garantindo no processo de avaliação e decisão, a participação dos docentes por disciplina e ano de escolaridade.
  2. No último ano lectivo de cada período de adopção são adoptados os manuais para o período seguinte.
  3. A adopção de manuais de iniciação à escrita e leitura para o 1.º ano do 1.º ciclo pode ser feita pelo período de um ano, mediante homologação pela direcção de escola ou do agrupamento, desde que fundamentada em critérios metodológicos e pedagógicos dos respectivos docentes.

Artigo 13.º

Manuais para alunos com necessidades educativas especiais

  1. A adopção de manuais para alunos com necessidades educativas especiais é feita com a participação dos professores de educação especial.
  2. Até ao início do ano lectivo em que se procede à adopção de novos manuais, as editoras devem distribuir uma edição de cada manual, adequado aos alunos em causa.
  3. Sem prejuízo do disposto no artigo 6º, a certificação dos manuais para alunos com necessidades educativas especiais pode ser reavaliada, sempre que a CNAC o considere.

Artigo 14.º

Gratuitidade dos manuais escolares

Os manuais escolares adoptados são distribuídos gratuitamente a todos os alunos que frequentem a escolaridade obrigatória nos estabelecimentos de ensino público, sem prejuízo da aplicação de mecanismos de acção social escolar para outros fins aos alunos que dela necessitem.

Artigo 15.º

Distribuição de manuais escolares

  1. A distribuição dos manuais escolares é feita no início de cada ano lectivo pelas escolas aos encarregados de educação, mediante documento comprovativo.
  2. Cada aluno terá direito a um único exemplar dos manuais adoptados, por disciplina e por ano lectivo.

Artigo 16.º

Financiamento e aquisição de manuais escolares

  1. O Ministério da Educação garante a aquisição dos manuais escolares através de dotações financeiras a cada escola ou agrupamento, antes do início de cada ano lectivo, em função dos manuais adoptados e da população escolar respectiva, incluindo os docentes.
  2. As escolas ou agrupamentos adquirem os manuais adoptados para o ano seguinte, no final de cada ano lectivo, tendo em conta as necessidades previstas.

Artigo 17.º

Regulamentação

O Governo procede à regulamentação da presente Lei no prazo de 60 dias.

Artigo 18.º

Norma revogatória

São revogados os seguintes diplomas:

  1. Lei n.º 47/2006, de 28 de Agosto;
  2. Decreto-Lei n.º 261/2007, de 17 de Julho;
  3. Portaria n.º 792/2007, de 23 de Julho.

Artigo 19.º

Entrada em vigor

  1. A presente Lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.
  2. As disposições relativas ao financiamento e distribuição dos manuais escolares entrarão em vigor com a publicação da Lei do Orçamento do Estado subsequente à sua aprovação.
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