Projecto de Lei N.º 42/XII

Defende o carácter público da CP e da gestão das suas linhas, revogando o Decreto-Lei n.º 137-A/2009, de 12 de Junho, que «Aprova o regime jurídico aplicável à CP - Comboios de Portugal, EPE e os estatutos da CP»

Defende o carácter público da CP e da gestão das suas linhas, revogando o Decreto-Lei n.º 137-A/2009, de 12 de Junho, que «Aprova o regime jurídico aplicável à CP - Comboios de Portugal, EPE e os estatutos da CP»

Exposição de Motivos

Numa altura em que a troika dos partidos da política de direita lançou e prossegue a tentativa de impor a privatização do transporte público, a Assembleia da República é interpelada por 4054 cidadãos, no exercício do seu direito de petição, que confrontam os deputados com a afirmação da sua total discordância face a essa política de privatização e com a exigência do accionamento das necessárias medidas para impedir a concessão/privatização da rede ferroviária da CP. Trata-se de 4054 assinaturas que dão voz à exigência de muitos mais – populações, utentes, trabalhadores do transporte público – que têm vindo a expressar a exigência de uma política diferente, contra as privatizações e contra os aumentos de preços que visam preparar a sua concretização.

A dimensão da dívida das empresas públicas de transportes não é o resultado inevitável de uma gestão pública, mas antes reflecte a opção de desorçamentar milhares de milhões de euros de investimento público, passando-os para o passivo das empresas públicas; bem como a opção de subfinanciar os défices de exploração das empresas públicas; a opção de recorrer a novo endividamento para pagar os encargos da dívida.

É a dívida pública que suporta as lucrativas concessões privadas: o investimento que permitiu concessionar a exploração está contido na dívida pública (empresas ou Estado) ou será todo transferido para lá; porque o Estado assume – na prática – o défice de exploração das privadas, o que não faz com nenhuma empresa pública.

A formação desta dívida teve dois grandes beneficiários, e a privatização serve os mesmos interesses de classe: do sector financeiro, que recebe anualmente centenas de milhões de euros de juros de empréstimos avalizados pelo Estado; e do capital interessado na apropriação deste sector estratégico, que viu o Estado assumir os investimentos sem os quais a exploração privada não seria rentável;

Esta dívida, e as opções que a criaram, tem responsáveis políticos: trata-se dos partidos que há quase 35 anos se sucedem nos governos, e nas administrações das empresas públicas e privadas.

As privatizações não resolverão o problema da dívida, pois esta não se esfumará no ar nem será privatizada, mas colocarão as futuras gerações com ainda maiores problemas em resolver este e outros problemas gerados pela política de reconstrução do capitalismo monopolista. Aliás, ao contrário do que se possa considerar, o Estado representa menos de 15% das receitas da CP. O resto é já responsabilidade dos utentes.

Na CP, as despesas com pessoal, subreptícia ou mesmo explicitamente apontadas por alguns como “o problema central da empresa”, são na verdade inferiores em 40 milhões de euros ao que da CP recebem, em usura, os banqueiros (122 milhões de euros em despesas com o pessoal e 160 milhões em pagamento de juros). Aliás, mesmo na hipótese absurda de que todos os trabalhadores da CP trabalhassem todo o ano sem receber salário (!), a empresa continuaria a ter um resultado negativo, tal o volume da usura a que está sujeita.

Esta afirmação – e esta proposta – do PCP não surgem agora pela primeira vez. Elas foram apresentadas após a publicação do Decreto-Lei n.º 137-A/2009, de 12 de Junho, dando então resposta a uma peça central da ofensiva contra o serviço público do transporte ferroviário. Nesta altura importa retomar e relembrar o essencial do que foi na altura a afirmação do PCP, aquando da primeira apresentação desta iniciativa na Assembleia da República.

O referido decreto-lei representa o lançamento desse processo de fragilização sem precedentes, do transporte ferroviário enquanto serviço público, e da CP enquanto operador público nacional do caminho-de-ferro.

Este diploma colocou de forma evidente uma perspectiva de segmentação e privatização da CP. Em termos imediatos, é decidida no artigo 10.º a cisão do transporte de mercadorias e a criação de uma empresa «CP Carga – Logística e Transportes Ferroviários de Mercadorias, S. A.», facilitando e abrindo caminho à sua privatização. Esta operação insere-se numa estratégia que, recorde-se, já passara entretanto pela alienação da TEX e sua venda à empresa Urbanos.

Mas entretanto o artigo 9.º estabelece que «podem ser autonomizadas, nos termos da lei, áreas de actividade da CP, E. P. E., de apoio à prestação de serviços de transporte de passageiros urbano e suburbano, regional e inter-regional e de longo curso e de mercadorias, e, no âmbito das respectivas actividades acessórias, designadamente de reparação, manutenção, readaptação ou renovação e construção de material circulante.» É a consagração de uma inaceitável política de desmembramento da CP enquanto empresa.

Aliás, importa recordar que há meses, ainda no final da XI Legislatura, o PCP denunciou no Plenário da Assembleia da República a decisão da CP de contratar um consultor para a privatização da gestão do transporte ferroviário nas áreas metropolitanas. Como então sublinhámos, este era um trabalho de dois meses pago a 250 mil euros, um “certificado oficial” da política de desmantelamento do serviço público de transportes.

A esse propósito tivemos oportunidade de ler parte da acta de uma reunião da CP realizada a 7 de Dezembro de 2010, onde a empresa se propunha «contratar um consultor para a concessão a privados das linhas suburbanos», e desafiámos o então Secretário de Estado dos Transportes a negar este processo. Tal obviamente não foi negado, antes se concretizou com a contratação da empresa consultora A. T. Kearney para um estudo sobre os modelos alternativos de subconcessão do serviço ferroviário suburbano das linhas de Lisboa e Porto a empresas privadas.

O documento, segundo a notícia já veiculada na comunicação social, estabelece os vários cenários possíveis para a duração do contrato entre o Estado e os concessionários, bem como as respectivas compensações financeiras pelo serviço a prestar, a cedência dos comboios, a afectação do pessoal e o contrato de manutenção do material circulante.

No entanto, desse autêntico “guia para a privatização” que foi preparado nas costas dos trabalhadores e das populações, não foi dado conhecimento nem à Assembleia da República nem às Organizações Representativas dos Trabalhadores, numa situação de inaceitável falta de transparência que o PCP já denunciou na AR e que motivou um Requerimento ao Governo, até agora sem resposta.

Entretanto, o diploma legal já mencionado não se limitou a dividir a empresa em unidades de negócio, mas vai ao ponto de admitir que as mesmas podem vir a ser subconcessionadas pela CP a empresas privadas. É a mesma orientação que já foi aplicada nos serviços postais e nos CTT ao longo dos últimos anos, com os desastrosos resultados para as populações que se conhece.

A “contratualização” do serviço público de transporte chega a ser prevista na perspectiva da segmentação regional do país, dividindo o território em várias partes – como se pode constatar da alínea c) do número 3 do artigo 6.º – colocando a possibilidade de atribuição “a la carte” do serviço público de transporte. Adianta-se ainda a perspectiva em que o Governo insiste (prosseguindo a de anteriores Governos PS, PSD e CDS-PP) das “parcerias e acordos” com municípios e outras entidades «para a exploração de serviços de transporte ferroviário, designadamente através da criação de entidades jurídicas autónomas» (artigo 8.º). Estas opções foram levadas à prática na Linha do Tua, também com os resultados que estão à vista.

Cada vez se evidencia com mais clareza o papel indispensável do sector público – e do investimento e financiamento público – para a efectiva concretização de um serviço público de transporte colectivo, digno desse nome. Seja ao nível do direito das populações à mobilidade, seja da defesa do aparelho produtivo nacional, seja da defesa do ambiente e da gestão racional dos recursos energéticos, em suma, de um efectivo desenvolvimento económico e social.

Nesta mesma perspectiva, está em causa também afinal a defesa do emprego com direitos e a sua estabilidade – inclusivamente como factor de promoção de um serviço de qualidade e segurança – e de uma política de transparência democrática ao nível da gestão. No entanto, o decreto-lei em causa aponta para uma linha de flagrante governamentalização, aprovando o total controlo da fiscalização da CP, extinguindo a Comissão de Fiscalização e criando em seu lugar um Conselho Fiscal com três membros, todos nomeados pelo Governo, e afastando para um Conselho Consultivo de reduzida eficácia o representante eleito pelos trabalhadores. Se no momento oportuno o PCP chamou a atenção para esta realidade, entretanto o que se verifica é que nem mesmo esses organismos, que poderiam ser invocados como hipotéticos espaços de “participação” e “consulta” dos trabalhadores e suas organizações, foram sequer concretizados – não funcionam até agora!

Os resultados da política de entrega do serviço público aos interesses privados estão à vista, em concreto, no negócio da concessão à Fertagus do transporte ferroviário Lisboa/Setúbal: enquanto as populações têm com um serviço muito mais caro, com uma oferta de transporte muito aquém das necessidades e do que seria exigível, com um sistema tarifário que exclui à partida o passe social intermodal. O Estado está a pagar demais, os utentes estão a pagar demais, e o serviço de transporte que está a ser prestado está muito longe de corresponder às necessidades das populações da Área Metropolitana de Lisboa. Esta situação é absolutamente inaceitável, e exige uma ruptura política nas opções estratégicas deste sector.

O Governo invoca as decisões tomadas ao nível da Comissão Europeia e do Conselho no sentido da “contratualização do serviço público” – o que na prática significa a sua entrega a empresas privadas, sempre a bem da sacrossanta “concorrência livre”. Em relação a isto importa desde logo sublinhar três aspectos.

Em primeiro lugar, as políticas de liberalização da União Europeia fervorosamente seguidas até agora já mostraram os seus resultados para os serviços públicos e o aparelho produtivo do nosso país, nas pescas, na agricultura, na indústria, demonstrando de forma tragicamente clara que não podemos continuar nesse caminho. Em segundo lugar, a aplicação dessas orientações neoliberais não é uma inevitabilidade, como tem sido evidenciado em vários países europeus, que mantiveram os seus operadores públicos numa perspectiva de gestão e exploração das redes ferroviárias de uma forma integrada. E em terceiro lugar, o Governo não pode utilizar como “desculpa” para as suas políticas as orientações europeias que anteriormente aprovou.

Só com essa gestão pública integrada se pode garantir que o sistema ferroviário tenha uma dinâmica consistente, com complementaridades, interfaces adequados e segurança. Só assim o sistema ferroviário poderá desempenhar o seu papel estruturante e estratégico para a economia nacional, para as populações e para o país e contribuir para o desenvolvimento integrado, harmonioso, sustentado e solidário do nosso País, para a correcta gestão dos recursos públicos, para a defesa do emprego e da produção nacional. Com este Decreto-Lei, o Governo faz exactamente o contrário, pelo que entendemos que a Assembleia da República tem o imperativo dever de o revogar.

O que o PCP propõe não é uma recomendação genérica para que o Governo suspenda (até quando?) a privatização da gestão das linhas suburbanas da CP. Não pretendemos propor um “intervalo” no processo de desmantelamento do serviço público de transporte ferroviário – o que propomos é a retirada de um enquadramento legal iníquo e destrutivo, que abre a porta à segmentação e privatização desse serviço público essencial a centenas de milhares de pessoas e fundamental para a economia nacional.

Ao invés de fazer recomendações ao executivo governamental, a Assembleia da República neste caso pode e deve legislar em defesa do serviço público e do operador público ferroviário. É isso mesmo que o PCP propõe que se faça nesta altura, correspondendo ao apelo e reivindicação dos trabalhadores, dos utentes e das suas organizações representativas, que se dirigiram a este órgão de soberania através do direito de petição.

Essa petição interpela os deputados e exige-lhes que tomem posição. O PCP mais uma vez assume-se do lado dos trabalhadores e das populações, com propostas concretas que demonstram que há alternativas a esta política de desastre, de agressão e submissão que pretendem impor ao Povo Português.

Assim, ao abrigo das disposições legais e regimentais aplicáveis o Grupo Parlamentar do PCP apresenta o seguinte Projecto de Lei:

Artigo 1.º
Objecto

A presente lei revoga a alteração ao estatuto jurídico da empresa CP, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 137-A/2009, de 12 de Junho, e restabelece o regime e estatutos anteriormente vigentes na CP, Empresa Pública.

Artigo 2.º
Norma revogatória

É revogado o Decreto-Lei n.º 137-A/2009, de 12 de Junho, repristinando-se o Decreto-Lei n.º 109/77, de 25 de Março, com a redacção dada pelos Decretos-Leis n.ºs 406/78, de 15 de Dezembro, 116/92, de 20 de Junho, e 274/98, de 5 de Setembro.

Artigo 3.º
Entrada em vigor

A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.

Assembleia da República, em 30 de Agosto de 2011

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