Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-Geral

Debate na Ordem dos Médicos

Debate na Ordem dos Médicos «Ciclo de Debates SNS 30 anos»

Quero começar por agradecer à direcção da Ordem dos Médicos ter endereçado ao Secretário Geral do PCP o convite para participar neste debate sobre um tema que é hoje motivo de ansiedade e preocupação na sociedade portuguesa e transmitir-vos as nossas saudações, destacando o papel de muitos profissionais de saúde, entre os quais muitos médicos, que ao longo destes trinta anos colocaram de pé e deram vida a uma das principais conquistas de Abril, o Serviço Nacional de Saúde.

Considero que o tema proposto para o debate “perspectivas de evolução do SNS” é da maior importância, dado que não é possível, na nossa opinião, considerar no futuro qualquer projecto sério de desenvolvimento integrado para o País que não integre um serviço público de saúde, geral, universal e gratuito, ou seja o SNS reforçado e melhorado com o Estado a assumir todas as suas responsabilidades em matéria de saúde.

Nós concebemos a saúde como um direito, um avanço civilizacional, um pilar fundamental do desenvolvimento e não como um negócio. Perspectivar a evolução futura do SNS, passa em primeiro lugar por se fazer uma avaliação do papel que este teve em Portugal, as suas virtudes e defeitos, o quadro político em que se desenvolveu, os entraves e sabotagens a que foi sujeito, mas sobretudo os ganhos em saúde que com ele foram atingidos.

Apesar de todas as dificuldades que resultaram do facto de desde sempre o SNS ter contra si os interesses instalados na saúde, nomeadamente os grupos privados dominantes na produção e distribuição de produtos farmacêuticos e equipamentos e os grupos financeiros privados com as respectivas seguradoras, os resultados obtidos são muito significativos como alguns dos principais indicadores e os níveis de produção obtidos no ano de 2007 confirmam.

Mas muito mais poderia ter sido realizado, não fosse a insistência em opções neoliberais, cujo objectivo de debilitar o SNS para depois o privatizar, mais não fez do que aprofundar a promiscuidade entre o público e o privado, transferir milhares de milhões de euros do OE para o sector privado e dificultar o acesso de milhões de portugueses aos cuidados de saúde, nomeadamente os mais carenciados.

O SNS tem de facto uma matriz. O SNS é o resultado da iniciativa revolucionária do povo e de muitos profissionais de saúde no contexto da Revolução de Abril, tendo sido consagrado na Constituição da República Portuguesa que o designou como Serviço Nacional de Saúde, instrumento da concretização da responsabilidade prioritária do Estado em garantir o direito à saúde. Ou seja, o Estado ficou obrigado a criar as condições necessárias para garantir o acesso aos cuidados de saúde em condições de equidade, a todos os cidadãos, independentemente das suas condições económicas e sociais. Ainda hoje e apesar de todas as revisões porque passou, a Constituição da República consagra o direito à protecção da saúde através de um Serviço Nacional de Saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito.

Esta é uma questão relevante para o futuro do SNS, porque, como é sabido, alguns dos detractores do SNS, consideram que a sua matriz constitucional é o principal impedimento para que o Estado garanta no futuro o SNS, insistindo na necessidade de se avançar para novas fontes de financiamento, particularmente através de novos impostos ou de taxas ditas moderadoras, mais caras.

Mas se a questão do financiamento aparece como o principal entrave à sustentabilidade do SNS, no cerne do problema colocado pelos adversários do SNS está uma tese central a partir da qual desenvolvem uma lógica meramente económica, centrada na premissa de que ao Estado deve caber a função de regular e financiar e ao sector privado a prestação de cuidados, ou seja aquilo que dá lucro, tese defendida por quem vê na doença uma oportunidade de negócio. 

Foi neste contexto que a regulação e a intervenção do Estado, ao contrário de servir para garantir o reforço das políticas sociais num quadro de mais investimento e mais crescimento e assim garantir um mais elevado nível de vida das populações e serviços de qualidade para todos os cidadãos, serviu sobretudo, como instrumento de recomposição dos grandes grupos económicos que intervêm na saúde.

O ataque ao SNS passa fundamentalmente pela vertente económica e financeira, facto a que não são alheios os valores movimentados anualmente neste sector. Em 2008, se tivermos em conta os resultados das contas consolidadas do Estado em 2006 e a inflação oficial nos dois anos seguintes, o movimento foi superior a 16 000 milhões de euros.  

Uma outra linha de ataque dos defensores da privatização é a utilização do dogma de que a gestão privada é mais eficiente que a pública. Esta conclusão é claramente desmentida quando observamos a gestão de certas unidades privadas que se dedicam à prestação de cuidados de saúde que o Estado sobrefinancia e de cuja prestação é deficitário, como por exemplo a hemodiálise.

Um outro bom exemplo da desastrosa gestão privada para o Estado foi o Hospital Amadora Sintra, comprovada pelo relatório da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo de 9/11/2001 e posteriormente pelo inquérito da Inspecção de Finanças que concluiu terem sido gastos em excesso 75,6 milhões de euros. Tão grave se tornou a situação que no passado dia 1 de Janeiro a sua gestão voltou para o sector público, passados 13 anos de delapidação dos dinheiros públicos.

A boa gestão dos serviços públicos é possível, a menos que as opções políticas do governo e a incompetência dos gestores a impeça. Por exemplo, não se compreende que os cuidados primários gastem mais de 300 milhões de euros em análises quando estas podiam ser feitas nos laboratórios dos Hospitais, como acontece hoje no Hospital de Santa Maria que passou a efectuar as colheitas de amostras nos Centros de Saúde da sua área, com ganhos muito significativos, mais ou menos 2 milhões de euros ano.

Então podemos perguntar. Porque razão não se estende esta decisão a outros hospitais e a outras regiões do País? É que a saúde, sendo uma necessidade básica, tem os “clientes” garantidos. Mas para avançar o privado era preciso fazer recuar o Estado. Foi o que fizeram os sucessivos governos ao longo destes trinta anos.

De forma directa privatizando funções e serviços através da proliferação inconsiderada de convenções, entregando unidades públicas à gestão privada ou, mais recentemente, através do estabelecimento das chamadas parcerias público-privadas e dos contratos de prestação de serviços.

De forma indirecta, degradando os serviços públicos, seja com a escassez de meios, seja com gestão economicista, limitando a sua capacidade de resposta, o que obriga os cidadãos ou a recorrer a serviços privados ou a ficar sem cuidados.

Os esforços dos grandes grupos financeiros para se apoderarem do negócio da saúde têm provocado alterações profundas nas relações entre o SNS e os prestadores privados. A complementaridade cede lugar à concorrência, os grandes prestadores absorvem os pequenos, os grandes contratos de prestação de serviços tomam o lugar dos consultórios individuais. A pequena promiscuidade dá lugar aos grandes negócios. E, por essa razão, também as relações entre o SNS e os seus profissionais de saúde se têm degradado. No caso concreto dos médicos, os esforços para redução do custo da força de trabalho e pelo controlo da prescrição traduzem-se, designadamente, na precariedade das relações laborais.

 Também o caso dos medicamentos é um bom exemplo da desresponsabilização do Estado. Nos medicamentos, entre 2005 e 2007, o aumento da parte paga pelos utentes foi de 95 milhões de euros (14%). A opção do Governo foi poupar dinheiro à custa dos utentes, em vez de enfrentar os interesses económicos. E isto quando o que seria necessário era aumentar a comparticipação do Estado em tantos medicamentos, por exemplo nas doenças crónicas mais graves.

Tarda a prescrição pelo princípio activo, acompanhada por medidas que impeçam o controle seja pela industria farmacêutica, seja pelas farmácias, dos medicamentos vendidos. Continuam a não existir farmácias públicas nos hospitais e nalguns centros de saúde. Continua a não ser imposta a obrigação do dimensionar as embalagens para que não haja desperdício e maior custo para os utentes. Mantém-se o injusto sistema de preço de referência que faz com que a legislação do governo e a decisão do médico tenham efeitos na carteira do doente.

Uma outra área de preocupação tem sido a situação que se vive nos Cuidados de Saúde Primários. Os Cuidados de saúde Primários são, consensualmente, o alicerce de qualquer sistema de saúde moderno. Esse facto está patente nas conclusões dos recentes debates a propósito do 30º aniversário da Conferência de Alma-Ata e nas propostas em apreciação na 62ª Assembleia Mundial da OMS, que hoje teve início.

O desenvolvimento do SNS terá necessariamente que seguir o caminho da renovação dos Cuidados de Saúde Primários, atendendo às novas realidades sócio-demográficas e à crescente consciência dos impactos do ambiente na saúde.

A evolução dos Cuidados de Saúde Primários em Portugal não se tem feito no sentido da sua modernização. Depois de uma arrastada fase de desvalorização e desinvestimento segue-se agora uma nova fase marcada pela ameaça da sua segmentação e privatização. Primeiro com o Governo PSD/CDS, através de um Decreto-lei que veio a ser revogado pelo actual Governo PS e, depois, de forma menos expressa, mas reconduzindo aos mesmos resultados, por este mesmo governo do PS.

A reforma conduzida pelo actual governo tem dois momentos.

O primeiro de exaltação das Unidades de Saúde familiar. As USFs eram: “A reforma”. Depois, perante, a realidade, passou-se aos Agrupamentos de Centros de Saúde, ficando as USF em segundo plano.

Ao fim de três anos as USF cobriam, a 11 de Maio de 2009, cerca de 21% da população e 20% dos médicos ao serviço nos cuidados primários. O acesso está distribuído em 3 níveis: 21% nas USF; 5 a10% sem médico e os restantes 70 a 75% com médico, mas mantendo um nível, em muitos casos medíocre, de acesso. Esta segmentação do acesso em três níveis distintos trouxe consigo novas desigualdades, resultado claramente contrário àquilo que são objectivos básicos dos Cuidados de Saúde Primários.

Para que este projecto de reforma fosse viável era necessário que os médicos, que o abraçassem e dispusessem de disponibilidade e mobilidade para voluntariamente se organizarem, fossem, pelo menos, em número semelhante ao número total dos que prestam serviço nos Cuidados de Saúde Primários. Com a falta de médicos existentes compreende-se que reduzir a reforma a tal modelo era, desde logo, condená-la ao fracasso. Em fuga para a frente iniciou-se o processo de encerramento de serviços de proximidade e a contratação de empresas de prestação de serviços médicos.

Perante o desaire o governo avançou agora para os Agrupamentos de Centros de Saúde, onde, mantendo as USF, se inclui a criação das Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados, com estrutura idêntica à prevista para as USF, mas cujos contornos ainda não se conhecem.

A “reforma” no modelo USF revelou-se um processo gerador de desigualdades, de improvável aplicação geral e de baixa sustentabilidade, mas deixou em aberto a possibilidade da privatização da prestação nos Cuidados de Saúde Primários na forma das USF modelo C, que a constituição dos Agrupamentos de Centros de Saúde não contraria.

A manterem-se as orientações até agora dominantes na definição das políticas de saúde, os Agrupamentos de Centros de Saúde podem mesmo tornar-se um novo instrumento de segmentação e privatização dos Cuidados de Saúde Primários. Não nos parece um bom caminho a prática adoptada na definição das áreas geográficas dos Agrupamentos de Centros de Saúde, que levou, por exemplo, à criação de um agrupamento de 130 Km de comprimento por 30 de largura de Vendas Novas a Mourão, e a possibilidade, não acautelada na legislação que lhes serve de base, de municipalização dos Cuidados de Saúde Primários.

Para o PCP a saúde é um factor endógeno de desenvolvimento económico e social e, por outro lado, sofre o impacto das opções de política económica e social. Investir no plano social permite obter mais ganhos em saúde com os mesmos gastos. Os custos de saúde não são apenas resultantes dos problemas de ordem biológica, mas sobre esta questão os sucessivos governos têm dito muito pouco.

O que tem impedido mais ganhos em saúde com os mesmos gastos é o carácter de classe da política económica e social que tem sido implementada que incrementa a despesa pública e privada em doença como um poderoso travão do próprio desenvolvimento.

Uma política orientada para a eliminação de injustiças e desigualdades sociais é um componente indispensável da prevenção da doença e da promoção da saúde, condição necessária da sustentabilidade do SNS. O seu adequado financiamento e reforço como serviço público de carácter universal, geral e gratuito, são condições essenciais para o desenvolvimento económico e para o progresso social.

Estamos pois perante duas lógicas distintas de organizar o sistema de saúde em Portugal: a que o PCP desde há muito defende um serviço público que garanta a todos, independentemente das suas condições sócio económicas, o acesso em qualidade e segurança aos cuidados de saúde; e a da lógica meramente económica, centrada na premissa de que ao Estado deve caber a função de regular e financiar e ao sector privado a prestação de cuidados (ou seja aquilo que dá lucro) defendida por quem vê na doença uma oportunidade de negócio.

Neste quadro a regulação e a intervenção do Estado, tem de servir para garantir o reforço das políticas sociais, num quadro de mais investimento e mais crescimento de forma a garantir um mais elevado nível de vida às populações e serviços de qualidade para todos os cidadãos e não como um instrumento ao serviço da recomposição dos grandes grupos económicos, como tem vindo a acontecer no sector da saúde.

Para o PCP defender e reforçar o SNS geral, universal e gratuito, é hoje um imperativo nacional. É um direito natural de um povo, direito que não se pode alienar, ter acesso a um Serviço de Saúde moderno, eficaz e eficiente que promova a melhoria dos seus indicadores de saúde, nomeadamente o aumento da sua esperança de vida e promova o bem-estar e a qualidade de vida.

Um Serviço Nacional de Saúde geral, universal e gratuito, que garanta o acesso em qualidade e tempo útil aos cuidados de saúde com qualidade e segurança objectivo que deve ser acompanhado de um conjunto de medidas tais como:
Promover a sustentabilidade, reorganização e financiamento adequado do SNS que promova o desenvolvimento pleno das suas potencialidades, o total aproveitamento da capacidade instalada, o reforço dos recursos técnicos e humanos para a melhoria da qualidade dos cuidados de saúde acessíveis a todos os cidadãos e que permita acabar com as inaceitáveis listas de espera;
O fim das medidas de empresarialização dos serviços de saúde públicos, antecâmara da sua privatização e a reintegração dos Hospitais EPE no serviço público administrativo, salvaguardando desta forma o carácter público de todas as unidades de saúde do SNS;
A implementação de um modelo de gestão pública e democrática, participada, competente e desgovernamentalizada;
O fim da promiscuidade entre o público e o privado com uma separação clara entre os dois sectores;
Avançar para uma verdadeira reforma dos Cuidados Primários de Saúde que aproxime os serviços dos utentes, com um significativo investimento em meios técnicos e sobretudo humanos. Reforma que, atendendo à necessária participação dos profissionais e dos utentes, tem de ser acompanhada da abertura de novos Centros de Saúde e da requalificação de muitos dos existentes;
O desenvolvimento de uma rede pública de cuidados continuados de convalescença e paliativos;
Defender um plano de emergência para a formação de profissionais de saúde, principalmente médicos e abrir mais vagas para os internatos de medicina geral e familiar;
Na área do medicamento definir com rigor no plano legislativo a intervenção de cada uma das componentes do sector, desde a produção até à venda a retalho, impedindo que em qualquer momento alguma das partes possa ter uma intervenção do tipo cartel, com a obrigatoriedade da prescrição por DCI que deve ser acompanhada de mecanismos de supervisão e informação aos interessados, médicos e utentes, sobre a existência, composição e custos dos genéricos;
Revogar o decreto-lei que estabelece os mecanismos do preço de referência;
Abrir farmácias públicas nos hospitais e em alguns dos maiores Centros de Saúde;
 
Por último umas palavras mais sobre um problema central para os médicos que á a questão das suas carreiras. A definição de "Carreiras Médicas" foi um salto fantástico dado nos anos 70 consolidado posteriormente após a criação do SNS com a legislação das Carreiras.
Mas tudo isso está a ser posto em causa, embora a propaganda diga exactamente o contrário. De facto trata-se da destruição do SNS por dentro. Desestruturando as Carreiras como tem sido feito nos últimos 6 / 7 anos estamos à beira do total desmoronamento da prestação de cuidados com alguma qualidade.

As propostas apresentadas pelo Ministério visam acabar com as Carreiras - querem 'fundir' as actuais Carreiras existentes (Saúde Pública, Hospitalar, Medicina Geral e Familiar, Medicina Legal) numa única Carreira Médica (alegando que o curso de Medicina é só um...) isto significa que pretendem de facto misturar a organização existente, deslocar profissionais de umas carreiras para as outras, em função das necessidades (de voto ou de pressão popular), propondo mesmo uma categoria de 'médicos indiferenciados' (pagos ao preço da uva mijona...).

Portanto: procuram criar profissionais de saúde que possam substituir cuidados médicos e não desperdiçar dinheiro com as reais necessidades das populações.

Procuram acabar com as diferentes carreiras, as suas especificidades, e a sua independência ( ou não se percebe o interesse de passar do plural 'carreiras' para 'carreira').
Impedindo o acesso dos profissionais destas ultimas gerações a integrarem-se em carreiras no sistema público, impedem a formação, o desenvolvimento, a qualificação para melhoria técnica dentro do sistema público e, assim, acabam com a qualidade do sistema público, com os bons cuidados para a população, descontentam-se os médicos jovens que não conseguem evoluir e progredir e fogem do serviço publico e com a degradação dos cuidados, voltam a população contra os profissionais.
Desorganizando o sistema público criam tantas e diferentes formas de contratação, remuneração, regalias, horários, etc, cria um clima de descontentamento, invejas, desinteresse e mercenarização, em que apenas se discute pagamentos e mais nada, e é só isso que interessa.
Acabando com as hierarquias nos serviços públicos - hierarquias técnicas - criam a mediocridade, a subida às chefias dos medíocres, nunca respeitados pelos pares e sem qualquer poder de intervenção numa verdadeira direcção técnica e profissional.

O PCP  é a favor de Carreiras Médicas independentes, autónomas e paralelas, com formação especifica e exercício profissional especifico (sem intermutabilidade) e defendemos a criação de uma nova carreira de Saúde do Trabalho. Defendemos a entrada para as carreiras por concursos públicos e de acordo com as competências. Estes concursos devem ter a máxima transparência. A avaliação nos concursos para os graus e subidas nas carreiras deve ser feita pelos pares, sem intervenção dos 'gestores' e administradores.