Intervenção de António Filipe na Assembleia de República

Cortes no transporte de doentes - Uma das faces mais desumanas da política deste Governo

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Declaração política condenando a alteração das comparticipações do Estado aos bombeiros nos custos de transporte de doentes em ambulância, com o consequente aumento dos preços
Sr.ª Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:
A decisão tomada pelo Governo que assegura a regência do nosso País em nome da troica de alterar as regras de financiamento do transportes de doentes em ambulâncias está a ter consequências dramáticas e, se não for rapidamente alterada, ameaça assumir proporções de tragédia.
Uma recente reportagem da RTP, dando conta da situação de doentes oncológicos residentes em Alfandega da Fé que não podem deslocar-se ao Porto e a Coimbra para os tratamentos de que depende a sua sobrevivência porque as suas pensões não lhes permitem pagar 250 euros por cada deslocação, dá bem a ideia dos foros de desumanidade que a política deste Governo assume, em matéria de acesso à saúde.
Mais recentemente, ainda, uma reportagem da TSF refere o caso de uma cidadã idosa de Odemira que recebe 250 euros de reforma e tem de pagar 200 euros pelo transporte em ambulância e recolhe testemunhos de bombeiros que deparam com o drama de muitos doentes que, para pagar a ambulância, não têm dinheiro para pagar os medicamentos de que precisam.
E casos destes repetem-se aos milhares pelo País fora!
As causas desta situação são conhecidas. O memorando da troica a que o PS, o PSD e o CDS aceitaram amarrar a governação do País, prevê uma redução de um terço dos gastos com transporte de doentes em ambulância. E se a troica manda, o Governo executa e o PS «assobia para o lado».
O critério para a comparticipação do transporte de doentes em ambulância foi alterado. Só os doentes com prescrição médica do transporte em ambulância e que não tenham um rendimento superior ao IAS (indexante de apoio social) terão direito a transporte gratuito, e os centros de saúde receberam ordens para reduzir drasticamente a requisição de transporte de doentes. Dito e feito: as requisições de transportes de doentes foram drasticamente reduzidas!
Para além disso, a comparticipação do Estado aos bombeiros pelo custo das deslocações foi também reduzida e fica hoje muito abaixo do preço de custo, tornando os corpos de bombeiros em financiadores do Estado.
O Estado paga aos bombeiros 48 cêntimos por quilómetro. Há vários anos que esta comparticipação permanece inalterada e, entretanto, o preço do gasóleo subiu mais de 20%. Nas deslocações inferiores a 15 km, o Estado paga uma taxa única de saída de 7,5 € para um único doente; no caso dos demais, paga 1,5 €.
No caso das deslocações a hospitais em que haja demora no atendimento do doente, o Estado já não paga o retorno da ambulância, pagando apenas 2,90 € por cada hora de retenção.
Tudo isto somado, a quebra de 30% nos serviços de transporte requisitados aos bombeiros e as alterações aos critérios de pagamento decididas unilateralmente pelo Governo, fizeram com que as receitas dos corpos de bombeiros com o transporte de doentes tivessem uma quebra da ordem dos 70%. Os bombeiros da Amadora e do concelho de Sintra viram-se mesmo obrigados a suspender o transporte de doentes não urgentes.
Segundo dados da Liga dos Bombeiros Portugueses, até à data, terão sido já despedidos 400 trabalhadores adstritos ao transporte de doentes em ambulância. Ou seja, o Governo instalou o caos a mando da troica.
As receitas dos bombeiros com o transporte de doentes caíram a pique devido à redução drástica dos pedidos e à escassez das comparticipações, pondo irremediavelmente em causa a prestação desse serviço e mesmo a própria viabilidade financeira das corporações.
Os bombeiros aguentam muito, abnegadamente. Aguentam enormes sacrifícios para defender os seus semelhantes; aguentam os maiores perigos para proteger pessoas e bens; aguentam dificuldades financeiras resultantes do subfinanciamento crónico a que são sujeitos, mas já não aguentam fazer tudo isso e ao mesmo tempo financiar o Estado.
O que hoje sucede é que muitos milhares de doentes deixaram de ser transportados aos hospitais e centros de saúde para consultas e tratamentos indispensáveis à sua saúde, quando não à sua sobrevivência. As consequências humanas que daí decorrem são terríveis e os danos causados às populações mais carenciadas são incalculáveis.
Os corpos de bombeiros estão a despedir pessoal adstrito ao transporte de doentes e a ficar com as frotas imobilizadas por falta de dinheiro, pondo decisivamente em causa a sua capacidade para acorrer a situações de emergência. Alguns corpos de bombeiros correm mesmo o risco de encerrar.
A questão com que o Governo tem de ser confrontado é esta: quanto custa ao País esta irresponsabilidade, em vidas humanas, em sofrimentos, em tragédias pessoais e em dramas sociais?
Muitos dos bombeiros de Portugal que, através da Liga dos Bombeiros Portugueses, foram agraciados por esta Assembleia, em 2008, com o prémio dos Direitos Humanos são despedidos da sua nobre função e lançados no desemprego, porque o Governo não paga o transporte de doentes.
Os bombeiros de Portugal, que prestam um serviço insubstituível e de valor inestimável ao nosso País, nas funções de socorro e proteção civil, nas situações de emergência e de catástrofe, no socorro a doentes e sinistrados, no combate a fogos urbanos e florestais, os bombeiros de Portugal, que são das mais benévolas e reconhecidas instituições do nosso país, veem o seu dispositivo ser desmantelado por falta de apoio do Estado, pondo em causa a capacidade de resposta do sistema nacional de operações de socorro. Se não houver bombeiros, quem acorre aos portugueses em situação de emergência?
Quem acorre no auxílio às vítimas da sinistralidade rodoviária? Quem acorre às vítimas de inundações ou de incêndios? Não serão seguramente os senhores da troica nem são certamente os governantes que executam cegamente as suas ordens!
A situação a que se está a chegar é insustentável. Os bombeiros, através da respetiva Liga, têm vindo a alertar insistentemente para a gravidade da situação, perante a impassibilidade do Governo.
Para o Ministério da Saúde, preocupado em poupar dinheiro à custa da saúde dos portugueses, o problema dos bombeiros é com o Ministério da Administração Interna; para o Ministério da Administração Interna, preocupado em poupar dinheiro à custa da segurança e da proteção dos portugueses, o Governo nada deve aos bombeiros e o problema da saúde é com o respetivo ministério. Para o Ministério das Finanças e para o Primeiro-Ministro, não há vida, não há saúde nem segurança para lá da troica.
O que o Governo hoje está a fazer, com as restrições ao financiamento do transporte de doentes, é a declarar guerra aos soldados da paz e a encarar os doentes como danos colaterais dessa guerra. O corte no financiamento do transporte de doentes, com todas as suas consequências, é uma das faces mais desumanas da política deste Governo. Não é só uma guerra contra os bombeiros, é uma guerra contra o direito mais elementar dos portugueses à saúde e à proteção em estado de necessidade. Mas entre o Governo, a troica e os bombeiros, os portugueses saberão, certamente, quem está do seu lado e ao lado de quem devem estar.
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr.ª Deputada Teresa Leal Coelho,
Eu é que não sei em que País é que a Sr.ª Deputada vive, porque não se referiu rigorosamente a nada daquilo que disse na minha intervenção. Os elementos, os dados em que me baseei são objetivos e irrefutáveis.
A Sr.ª Deputada diz que o Governo está em diálogo.
O Governo não teve outro remédio senão retomar o diálogo no momento em que as corporações de bombeiros deixaram de fazer o transporte de doentes.
Esse é que foi o problema! Se não fosse assim, se não fosse a posição firme tomada por algumas corporações de bombeiros, o Governo não dialogava rigorosamente com ninguém.
Disse a Sr.ª Deputada que este Governo não deixa os cidadãos ficarem de fora.
Sr.ª Deputada, mas o problema são exatamente os cidadãos que ficam de fora, os cidadãos que precisam de ser transportados em ambulâncias, precisam de fazer os seus tratamentos, precisam de ir aos hospitais e não têm meios financeiros para pagar o transporte e ficam de fora com estes critérios que o Governo está a impor.
E são também os bombeiros que ficam de fora, porque são despedidos.
Segundo a Liga dos Bombeiros Portugueses (referi isso na minha intervenção), já são 400 os bombeiros adstritos ao serviço de ambulâncias que viram os seus contratos de trabalho rescindidos por falta de
financeiros das corporações de bombeiros. São pessoas que ficam de fora, pessoas que têm prestado um contributo de valor inestimável ao País e que são lançadas no desemprego, enquanto os doentes ficam sem qualquer proteção, quando não têm meios financeiros para se deslocarem para a realização de tratamentos médicos dos quais, nalguns casos, depende até a sua própria sobrevivência. Portanto, essas pessoas ficam de fora com esta política.
Sr. ª Deputada, quando o Governo tem esta atitude, não vale a pena dizer que consegue grandes sucessos em concertação social, porque, evidentemente, isso não resolve minimamente os problemas com que os portugueses se confrontam hoje, no seu dia-a-dia. E é este o País em que vivemos e do qual não nos podemos alhear.
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr. Deputado Filipe Neto Brandão,
Começo por agradecer a pergunta que me colocou.
O Sr. Deputado perguntou-me se este corte de receitas dos bombeiros com o transporte de doentes vai ou não para além de uma redução de um terço que consta do documento assinado com a troica.
Fez bem em lembrar o documento da troica, porque os Srs. Deputados pretendem demonstrar uma coisa que é indemonstrável, quando dizem o seguinte: «nós, Partido Socialista, assinámos o documento da troica, que refere um corte de um terço nas despesas do Estado com o transporte de doentes, mas, se estivéssemos no governo, isto não era feito desta maneira, era feito de outra».
Mas os senhores ainda não demonstraram o que é que fariam de diferente se estivessem no governo, porque, de facto, assinaram um compromisso com a troica no sentido de reduzirem em um terço as despesas do Estado com o transporte de doentes. Portanto, não sei como é que os senhores fariam para aceitar esse princípio da redução de um terço e depois manter tudo a funcionar.
O Sr. Bernardino Soares (PCP): — Exatamente!
O Sr. António Filipe (PCP): — Bom, não sei!…
O Sr. Deputado referiu — realmente, disse-o na minha intervenção — que a quebra de receitas estimada pelos bombeiros, na atual situação, é de cerca de 70%. Trata-se do corte de receitas dos bombeiros que resulta não apenas da despesa que o Estado não faz mas também da despesa que os particulares não podem fazer, porque há muitas situações em que as pessoas se veem privadas de poder comparticipar por falta de meios financeiros. De facto, há um corte drástico nas requisições feitas pelo Estado e há uma perda de receitas dos bombeiros em que se conjugam vários aspetos: a quebra das comparticipações por parte do Estado e a falta de requisições para que os transportes sejam efetuados.
Isto tem duas consequências, Sr. Deputado (e congratulo-me que compartilhe esta preocupação): por um lado, no estado de saúde das pessoas, que se veem privadas de um transporte que para elas é evidente e absolutamente necessário, e, por outro, na desestruturação do sistema de proteção civil.
Se os bombeiros têm que ser despedidos, se as ambulâncias ficam imobilizadas, quando houver um acidente rodoviário grave queremos saber quem é que lá vai!
E queremos também saber quem é que responde por opções políticas destas, que põem em causa decisivamente o sistema nacional de proteção e socorro. Essa é uma grande preocupação que, pelos vistos, só o Governo não tem.
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr. Deputado João Semedo,
Agradeço a sua pergunta, que me parece muito pertinente.
A questão que podemos colocar, desde logo, é se é aceitável que um Governo, um partido político responsável, aceite esta imposição da troica de cortar um terço nas despesas com o transporte de doentes, como se estivéssemos a falar de uma «gordura».
O PSD, quando estava na oposição, fartava-se de falar em cortar nas «gorduras» do Estado. Afinal, uma «gordura» do Estado é isto? Ou seja, é aceitar, à partida, que um terço da despesa com o transporte de doentes tem que ser cortada?
Sr. Deputado, não consideramos que isto seja aceitável, porque, obviamente, ninguém se entretém ou passa o tempo a ser transportado em ambulância para um hospital ou para um centro de saúde. O critério para o transporte sempre foi clínico — as requisições sempre foram feitas por prescrição médica — e, a partir de certa altura, passou a dizer-se o seguinte: «fazem o favor de não prescrever o transporte de doentes, porque a troica diz que temos que cortar em um terço as despesas com o transporte de doentes e nós aceitámos isso».
Sr. Deputado, isto não é minimamente aceitável, porque tem consequências humanas que podem ser irreparáveis. A vida das pessoas é posta em causa com uma atitude destas por parte do Estado e isto não é aceitável a título nenhum. Concordo plenamente com o que diz: o único critério que deve presidir ao financiamento público do transporte de doentes em ambulância é a necessidade clínica desse transporte.
Não pode haver outro critério, porque qualquer outro critério vai pôr em causa a saúde e até, por vezes, o direito à vida dos portugueses.
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr. Deputado João Pinho de Almeida,
Nós esperamos pelo diálogo, mas «não esperamos sentados»…!
Sabemos as circunstâncias em que o diálogo foi retomado e acompanhamos atentamente e, até, com preocupação as notícias que dão conta, muito recentemente, de que não tem havido grandes evoluções. Mas vamos esperar, porque sabemos que a Liga dos Bombeiros Portugueses é, evidentemente, um interlocutor válido, com uma enorme representatividade, que representa os milhares de bombeiros voluntários do nosso país que prestam um serviço inestimável. E esperamos que esse diálogo tenha resultados, que o Governo reconheça o que está em causa e que reconheça a necessidade de que o nosso país esteja dotado, de facto, de condições para os corpos de bombeiros possam acorrer às situações das quais são incumbidos.
Mas, Sr. Deputado, deixe-me dizer-lhe o seguinte: os critérios de financiamento que o Governo alterou depois da troica não foram ditados unilateralmente pelos bombeiros, foram acordados com o Governo de Portugal!
E esse acordo, que estabelecia critérios e montantes para o financiamento dos transportes de doentes e que se desvalorizou, porque, evidentemente, não foi atualizado e o gasóleo tem aumentado ao ritmo que sabemos — coisa com que o CDS se preocupava muito, quando estava na oposição, mas com que, agora, parece menos preocupado…
Mas isso não foi unilateralmente decidido pelos bombeiros; foi um valor considerado justo, tendo em conta as necessidades de financiamento dos bombeiros. Para quê? Para que esse serviço se pudesse manter.
O Sr. Deputado diz que não está aqui em causa o transporte de situações de emergência; simplesmente, se os bombeiros forem despedidos, se as frotas automóveis ficarem imobilizadas, isso é suscetível de pôr em causa o sistema de proteção civil e, mesmo, a necessidade de acorrer a situações que são, elas mesmas, de emergência.
Para além disso, há doentes que não são considerados urgentes, mas que têm necessidade de cuidados médicos dos quais depende a sua sobrevivência; e estamos a falar, designadamente, dos doentes oncológicos e de outras doenças crónicas.
Portanto, Sr. Deputado, o assunto é muito sério. Esperamos que o processo de diálogo que está em curso entre o Governo e a Liga dos Bombeiros Portugueses dê resultados, mas estaremos atentos e não deixaremos, em momento algum, de confrontar o Governo com as suas responsabilidades nessa matéria.

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