Intervenção de Miguel Tiago na Assembleia de República

Consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas

Consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, e protecção sanitária e social das pessoas que manuseiam tais substâncias sem prescrição médica

Senhor Presidente, Senhores Deputados

O Grupo Parlamentar do PCP apresenta hoje para discussão o Projecto de Lei 120/X que altera o regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a protecção sanitária e social das pessoas que manuseiam tais substâncias sem prescrição médica por considerar que o caminho percorrido pelo Estado na vigência do actual regime constitui uma experiência que importa consolidar e aperfeiçoar.

Se, por um lado, durante o último Governo do PSD/CDS, a lei foi remetida para o plano da inconsequência, alturas houve em que efectivamente impulsionou uma nova abordagem perante o consumo de substâncias psicotrópicas, perante o consumidor não toxicodependente e o toxicodependente. Foi pelas opções políticas, pela inactividade e pela incapacidade voluntária que o Governo do PSD/CDS não agiu como necessário, provocando o descrédito ao regime legal que estabelece a descriminalização. PSD e CDS votaram contra a Proposta de Lei que deu origem ao actual regime. PSD e CDS sempre entenderam que a criminalização e a punição seriam a melhor das formas para tratar o problema do consumo de estupefacientes.

Não podemos, ainda assim, deixar de saudar a iniciativa legislativa do PSD. Iniciativa que manifesta uma inesperada evolução no posicionamento político do próprio PSD. Registamos, todavia, com agrado que mais um partido se juntou à posição que há muito temos vindo a defender, a da descriminalização do consumo de drogas e a do encaminhamento do toxicodependente para tratamento e acompanhamento. É mais uma demonstração de que este é efectivamente o caminho a seguir. O facto de um partido que sempre se posicionou contra o rumo da descriminalização, assumir agora que esta é a orientação correcta, demonstra bem o quão positivos foram os passos dados pela aplicação desta lei. Inegável avanço o que foi possibilitado pela lei da descriminalização, mesmo com o bloqueio do PSD e do CDS-PP.

O PCP considera que, no essencial, o actual enquadramento jurídico cumpre um papel fundamental e que dá um contributo decisivo para a ruptura com o paradigma da criminalização de comportamentos que carecem, não de pena, mas de encaminhamento e tratamento.

Claro que o actual regime, estabelecido na Lei nº 30/2000, apresenta, no entanto, as suas falhas. Sete anos após esta lei - que estabelece a descriminalização - estamos em condições de analisar as experiências e de agir para corrigir, aperfeiçoar, melhorar ou mudar, onde se mostre necessário.

É exactamente nesse sentido que apresentamos o presente Projecto de Lei.

Analisando a experiência que nasce com a actual lei e que se desenvolve diariamente em resultados, mas também no curso do trabalho de muitos profissionais que trabalham na área da toxicodependência ou do consumo de estupefacientes, o PCP identificou um conjunto de necessidades no actual quadro legal. Ainda durante a primeira sessão legislativa, o PCP levou a cabo uma audição sobre a matéria que hoje discutimos, onde reuniu diversos profissionais e especialistas, colhendo e integrando os seus contributos.

É, portanto, um Projecto de Lei com base na experiência e na discussão que serve de base ao que hoje discutimos. O PCP reafirma o seu compromisso com a descriminalização do consumo, não deixando de enquadrar o consumo e o seu regime legal, numa abordagem muito mais abrangente ao problema da toxicodependência, do tráfico ao consumo, passando pela criminalidade associada a este fenómeno.

O PCP propõe que, após a desestruração e desestabilização provocadas pelo anterior Governo, está na altura de reafirmar e potenciar as virtudes da lei da descriminalização.

Um dos principais instrumentos para a aplicação da lei 30/2000 são as Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência. As CDT.

Estas comissões são um importante instrumento para a justa aplicação da lei, essencial para a intervenção do Estado. Daí a sua importância vital, daí a importância da sua distribuição geográfica, das suas capacidades, dos seus meios e da sua relação orgânica com o Estado. A actual lei preconiza o funcionamento das CDT na dependência dos Governos Civis. O PCP propõe que passem a funcionar em articulação com o Instituto da Droga e da Toxicodependência, estrutura bastante mais dedicada e adequada ao problema, favorecendo uma acção integrada contra a toxicodependência.

Mas o PCP adianta também todo um outro conjunto de propostas, no quadro sancionatório, mas também no orgânico e processual:

- A possibilidade de o Ministério Público suspender o processo por posse de drogas para consumo próprio, quando as quantidades detidas são superiores a dez dias de consumo, remetendo o arguido à CDT para acompanhamento;

- A instituição de um novo regime de maior pró-actividade das CDT junto das autoridades policiais, administrativas e de saúde, com vista a tornar mais eficaz a sua intervenção;

- A definição de que o Tribunal competente em matérias de recurso de decisão sancionatória é o que tem jurisdição na zona de residência do indiciado;

- A possibilidade de o indiciado, durante os actos para juízo sobre a natureza e a circunstância do consumo, indicar um perito da sua confiança para acompanhar os exames médicos;

- O estabelecimento do prazo máximo de 45 dias para a decisão das CDT em qualquer processo;

- A criação de um novo regime de sanções, a aplicar pelas CDT, que exclui as coimas - ineficazes e contraproducentes em situações de simples consumo de drogas - substituindo-as nos casos de menor gravidade, pela simples advertência;

- A possibilidade de a advertência ser acompanhada, em casos de maior gravidade, por qualquer uma das sanções actualmente previstas, a que se junta a prestação de serviços gratuitos a favor da comunidade.

- A consideração, na aplicação de sanções, da disponibilidade do indiciado para abandonar o consumo e para tratamento voluntário.

- A criação de um regime especial para o toxicodependente que recusar repetidamente o tratamento e apresente sintomas de anomalia psíquica, possibilitando uma avaliação médica da sua capacidade de auto-determinação, podendo chegar a internamento;

- A possibilidade de as CDT proporem soluções de acompanhamento aos toxicodependentes em casos particulares, incluindo em meio prisional, em termos que garantam a dignidade do indivíduo;

- O estabelecimento do dever de informação, por parte dos serviços de saúde, às CDT, no mínimo de dois em dois meses, sobre o andamento de cada tratamento.

Estas são apenas algumas das inovações que o PCP propõe para que a presente lei possa ser reforçada, promovendo a sua operacionalidade e o seu ajustamento à realidade.

São apenas algumas das propostas que hoje o PCP traz a esta Assembleia com o objectivo de aperfeiçoar uma lei, alterando onde se identificam as suas insuficiências ou incapacidades. São propostas que vão ao encontro do necessário progresso, propostas que não podem ser rejeitadas numa altura em que estão criadas as condições políticas para que sejam dados os passos em frente. Embora, na verdade, o actual Governo não leve a cabo uma política estruturada e consequente na área da toxicodependência, embora continue uma tendência para a subvalorização da problemática do consumo de drogas, é tempo de o próprio Partido Socialista e este Governo, assumirem também um compromisso para com a lei que os próprios aprovaram em 2000. É tempo de corrigir problemas que se arrastam - a falta de nomeação de Presidentes de CDT, a falta de investimento na prevenção e a gradual e crescente privatização da componente do tratamento, entre outros. É importante que o Governo e o Partido Socialista mostrem que estão verdadeiramente empenhados com o rumo da descriminalização que começámos.

É esse rumo que urge consolidar, continuando na busca de respostas às questões colocadas. É nesse rumo que o PCP pretende avançar. É para o garantir no futuro que o PCP apresenta hoje este Projecto de Lei.

Disse.

(...)

Sr. Presidente, Sr.ª Deputada Fátima Pimenta,

Sobre a coerência do PSD, penso que está tudo dito, mas o que é facto é que, efectivamente, há um contributo da parte daquele partido, daquela bancada, para uma discussão, o que, como, aliás, reconheceu, e nós também reconhecemos, tem componentes positivas e tem alguns vectores que podem servir para uma discussão na especialidade, de modo a construir, em conjunto, obviamente, com a iniciativa do PCP, um melhor quadro legal da matéria que hoje discutimos.

Mas a Sr.ª Deputada Fátima Pimenta suscitou um conjunto de questões, algumas das quais nem consigo enquadrá-las nesta discussão. Refiro-me, por exemplo, à distribuição geográfica das CDT. É que o PCP, no seu projecto de lei, remete para um membro do Governo e, portanto, não propõe uma distribuição fixa, conforme parece ter transparecido da sua intervenção. O que nós aqui estabelecemos é que, efectivamente, haja uma obediência a critérios de racionalidade mas, ainda assim, sem retirar ao membro do Governo competente a definição da distribuição geográfica das CDT.

A Sr.ª Deputada acha mal que haja articulação entre as forças policiais e as CDT, mas é bastante estranho.

Parece-lhe mal que as forças policiais procedam, o que é perfeitamente natural, à identificação de um indiciado, mas o que propomos é que venha a ficar bastante clara a forma como é feita a identificação.

Parece-lhe mal que as forças policiais notifiquem as CDT, caso se verifique algum incumprimento no acompanhamento natural que pretendemos que venha a ser dado aos casos que as CDT acompanham.

Portanto, parece-lhe mal que haja uma articulação entre as diversas forças que agem sobre a mesma matéria. Sinceramente, não consigo encaixar essas críticas, até porque entendemos exactamente o oposto, ou seja, entendemos que a desarticulação favorece o desequilíbrio e a incapacidade na implementação e no cumprimento da lei.

Assim, criar as pontes necessárias, se necessário por via de lei, para que as diversas entidades colaborem e cooperem no tratamento deste problema, parece-nos um passo bastante positivo.

Mas a questão que quero colocar à Sr.ª Deputada é muito simples e tem a ver com o seguinte: o Partido Socialista criticou, disse que via muitos aspectos positivos nestas propostas, mas que iria tratar do problema.

Ora, hoje, não trouxe nenhuma proposta, Sr.ª Deputada. Nem uma! Não há nenhuma proposta do Partido Socialista nesta matéria. O que sabemos é que se perpetuam os problemas que já vinham do anterior

governo e cuja resolução continua sem uma resposta clara. Não há, absolutamente, proposta nenhuma nem sequer, tão-pouco, uma luz que indique em que sentido virão as propostas. Mas a nós, mais uma vez, é-nos pedido que confiemos cegamente na boa vontade do Partido Socialista e do

Governo, porque, daqui a uns meses, vão apresentar uma proposta de lei que, muito provavelmente, será a fusão das duas iniciativas legislativas que hoje aqui estão a ser discutidas ou a cópia de uma, conforme já nos habituaram.

Portanto, o que lhe quero perguntar é se, efectivamente, reconhece ou não que há, na lei, alguns parâmetros desajustados e se há ou não necessidade de rever o quadro jurídico. E, nesse sentido, estão aqui duas iniciativas de dois partidos que deram o seu contributo, o PCP e o PSD. A questão que se coloca, se o Partido Socialista está verdadeiramente empenhado em melhorar o quadro legal, é a de deixar os projectos em apreciação baixar à especialidade, para serem discutidos.

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