Intervenção de António Filipe na Assembleia de República

Comemorações do Centenário da República

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Sessão de encerramento das comemorações do Centenário da República

Sr.ª Presidente,
Sr. Ministro Adjunto e dos Assuntos Parlamentares,
Sr.ª Secretária de Estado dos Assuntos Parlamentares e da Igualdade,
Sr.as e Srs. Deputados,
Ilustres Convidados,
Minhas Senhoras e Meus Senhores:
A Revolução Republicana, cujo centenário temos vindo a comemorar, constitui um importante marco na caminhada do povo português pela sua libertação.
Culminando um generalizado descontentamento e protesto contra uma Monarquia profundamente desacreditada, a implantação da República representou uma afirmação de soberania e um assinalável progresso no plano das liberdades fundamentais, da educação e da cultura e da laicidade do Estado.
A Constituição de 1911 consagrou um conjunto de novos direitos e garantias individuais de cariz progressista.
Extinguiu os títulos de nobreza e os privilégios de nascimento. Consagrou a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença. Reconheceu a igualdade política e civil de todos os cultos e a liberdade de culto de todas as religiões. Consagrou a gratuitidade e a obrigatoriedade do ensino primário elementar e o seu carácter laico. Consagrou as liberdades de expressão do pensamento, de reunião e de associação. Garantiu a inviolabilidade do domicílio e da correspondência. Introduziu o direito de habeas corpus contra abusos do poder. Reconheceu o direito à assistência pública. Consagrou o direito de resistência contra qualquer violação
das garantias individuais. Instituiu o controlo judicial da constitucionalidade das leis.
Porém, em contraste com medidas positivas no domínio económico e social, designadamente no Direito da Família, do inquilinato urbano, da assistência pública, da educação e cultura, o regime saído da Revolução Republicana caracterizou-se também por uma forte hostilidade para com as classes trabalhadoras e o movimento operário. Para além das limitações capacitárias do sufrágio, que limitaram radicalmente a capacidade eleitoral das classes trabalhadoras, a repressão, a negação e a limitação das liberdades, as deportações e prisões arbitrárias, foram a resposta do poder republicano a um movimento operário cada vez mais organizado e combativo.
A frustração das expectativas populares e a hostilidade para com os trabalhadores, ao privar a República de uma base social de apoio que tinha sido decisiva para a sua implantação, veio a revelar-se fatal e a abrir caminho à ditadura militar e à instauração do fascismo.
Nos 16 anos em que subsistiu, a I República Portuguesa conheceu glórias e misérias.
Nasceu dos sentimentos profundos do povo que a defendeu nas barricadas da Rotunda. Foi defendida de intentonas monárquicas, de incursões militares e de ingerências externas. Passou por noites sangrentas e ditaduras efémeras. Envolveu-se na tragédia da Grande Guerra. Criou promessas que não cumpriu. Traiu as expectativas das classes laboriosas. Sucumbiu às mãos de uma ditadura fascista que sequestrou os valores republicanos e que afundou o País durante quase meio século na opressão, na pobreza e no obscurantismo.
Só em Abril de 1974, coroando a resistência do povo português, a República foi resgatada e os seus valores matriciais foram postos em prática, com a reafirmação de Portugal como uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular.
Sr.ª Presidente e Srs. Deputados:
Um século passado sobre a implantação da República e sobre a primeira Constituição republicana, o nosso País está confrontado com uma nova espécie de ditadura das finanças que
rasga a Constituição democrática de 1976, que destrói conquistas civilizacionais de carácter social, duramente alcançadas pela luta de gerações, que desrespeita os mais elementares princípios do Estado de direito, da moral e da decência.
Quando a nossa soberania nacional é alienada às mãos de um autoproclamado directório europeu e se torna refém dos especuladores; quando a esmagadora maioria dos portugueses tende a ser esmagada por decisões políticas iníquas, supostamente ditadas por uma crise
financeira que não provocou e de que é vítima; quando os direitos dos portugueses à saúde e à educação são implacavelmente postos em causa; quando prestações sociais destinadas a garantir condições mínimas de sobrevivência são cruelmente suprimidas; quando os trabalhadores são privados de mais de metade dos seus dias de férias sem qualquer remuneração, através do aumento dos horários de trabalho, em nome da competitividade das empresas; quando os despedimentos são liberalizados e as indemnizações por despedimento drasticamente suprimidas; quando os trabalhadores são privados de grande parte dos rendimentos do seu trabalho para pagar a ganância dos especuladores; quando os trabalhadores e os reformados são sufocados por uma carga fiscal insuportável para que os rendimentos do capital se mantenham isentos de tributação; quando a maioria da população é lançada na pobreza para que os ricos sejam cada vez mais ricos; quando tudo isto acontece por decisão de um poder político submetido ao poder económico, conquistado e exercido à custa de falsas promessas, e que arrasta na lama a credibilidade dos governantes aos olhos dos cidadãos, são os valores mais profundos da República e da democracia que são perigosamente postos em
causa.
Dizia, há dias, o Prof. Gomes Canotilho que defender a Constituição nos tempos que correm é como tentar travar o vento com as mãos. É uma frase triste que, vinda de um insigne constitucionalista, só pode ser entendida como um alerta e um sinal de preocupação com os ventos que sopram.
Bem sabemos que os ventos que sopram são adversos. Adversos para os princípios em que assenta a República, para os valores da democracia e do Estado de direito, para o respeito pela dignidade de quem vive do seu trabalho. Mas também sabemos que não é esta a primeira vez em que o povo português é chamado a lutar contra o vento com as suas próprias mãos.
Foi contra ventos e marés que o povo português ergueu a República em Outubro de 1910 e foi com as suas próprias mãos que a resgatou na Revolução Democrática de Abril de 1974.
Este povo, que construiu uma Nação com nove séculos de história, já demonstrou por mais de uma vez que pode travar o vento com as suas próprias mãos.
Terminamos as comemorações do Centenário da República com uma profunda inquietação com o presente. A nossa democracia passa hoje pela maior crise da sua história. Mas há uma profunda convicção que nos anima: a nossa confiança no povo português e a certeza de que não são os banqueiros e agiotas mas o povo quem mais ordena!
Por mais adversos que sejam os ventos, confiamos que o povo português saberá virar esta página difícil da sua — nossa — história e impor, mais cedo que tarde, uma mudança política no sentido do progresso e da afirmação plena dos valores da democracia e da República.

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