Intervenção de

Carta dos direitos de acesso aos cuidados de saúde - Intervenção de Bernardino Soares na AR

Carta dos direitos de acesso aos cuidados de saúde pelos utentes do Serviço Nacional de Saúde

 

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

A matéria que hoje aqui abordamos é da maior importância, trata-se de garantir aos cidadãos o acesso aos cuidados de saúde, em concreto o acesso a cirurgias, mas quero, desde já, lembrar que um dos mais graves problemas que hoje existe nos serviços de saúde no nosso país, para além dos verificados em matéria de cirurgias, é a dificuldade de acesso a consultas de especialidade, e esta é, aliás, uma das razões que mais encaminha para o sector privado prestações de saúde que deveriam ser asseguradas pelo sector público e que faz com que as populações paguem cada vez mais, directamente, os seus cuidados de saúde.

As listas de espera continuam a ter uma dimensão muito relevante e muito grave, porque, como todos sabemos, só estão registados nas listas de espera dos pedidos de cirurgia os utentes inscritos nos hospitais e, como em muitas unidades há o sistema de atribuir vagas nas listas de espera a cada centro de saúde, parte desses pedidos estão «escondidos» nos centros de saúde, já que muitas vezes as pessoas nem sequer chegam a inscrever-se na lista de espera dos hospitais. Esta é, portanto, uma realidade com uma dimensão maior do que aquela que é recenseada nos dados oficiais, e que continua a ser um dos mais graves problemas da saúde no nosso país.

Por isso, a iniciativa do Bloco de Esquerda é louvável, pois vem no sentido de atacar este problema, mas também temos de dizer que as soluções propostas merecem alguns reparos.

Assim, lembro, como, aliás, recorda o próprio preâmbulo da iniciativa, que há uma lei, aprovada na Assembleia, sobre recuperação de listas de espera, a Lei n.º 27/99, que, para quem não saiba, teve origem num projecto de lei do PCP, quase integralmente transcrito para a lei, e ao qual o Partido Socialista acrescentou uma proposta concreta, que foi a obrigação de o Ministério da Saúde informar, de dois em dois meses, a Assembleia do estado das listas de espera no nosso país.

Portanto, o próprio Partido Socialista propôs esta norma, que não tem sido cumprida com rigor pelos governos, ao longo destes anos, e por este também não o foi.

Devo dizer, por isso, que algumas das disposições que constam no projecto de lei do Bloco de Esquerda nada acrescentam àquilo que já está na Lei n.º 27/99. Por exemplo, a proposta de uma avaliação anual até Junho, a nosso ver, não pode ser entendida em prejuízo da obrigação de informar a Assembleia de dois em dois meses, que já está estabelecida em lei. Em nossa opinião, esta obrigação é muito importante e não deve ser substituída por uma avaliação anual.

Relativamente a alguns direitos que são estabelecidos na carta dos direitos de acesso aos cuidados de saúde, que, apesar do nome, tem um conteúdo muito circunscrito, embora positivo, devo dizer, por exemplo, que a possibilidade de se recorrer à Entidade Reguladora da Saúde já está prevista num outro diploma.

Quanto ao recurso a outras unidades do sector privado, não percebo bem o espanto do CDS, porque, segundo a lei aprovada, que tem por base o projecto de lei do PCP - se calhar, isto também é uma novidade para o CDS, mas estava na iniciativa do PCP, não foi uma proposta do Partido Socialista -,  quando o recurso a meios do Serviço Nacional de Saúde for impossível, deve ser autorizado o recurso a meios externos ao Serviço Nacional de Saúde. É que, Srs. Deputados do CDS, nós não estamos aqui para impedir as pessoas de terem acesso aos cuidados de saúde.

Estamos aqui para aproveitar o melhor possível as unidades públicas e, se for caso disso, recorrer a outro tipo de prestação de serviços. O que os senhores fazem, e querem fazer, é o contrário, é, à partida, que se recorra logo aos serviços privados, mesmo que os serviços públicos não estejam esgotados.

No projecto de lei do Bloco de Esquerda há uma matéria que, a nosso ver, deve ser revista, as contraordenações, não porque não deva merecer censura o incumprimento das obrigações aqui previstas mas porque nos parece que o instituto das contra-ordenações dificilmente se pode aplicar a entidades públicas; aplica-se, sim, a incumprimentos privados de regras públicas e de obrigações perante o Estado e a Administração Pública. Não estamos a ver como é que este instituto, mesmo que entendido de uma forma ampla, ao nível da responsabilidade civil extracontratual do Estado, possa ser aplicado nesta situação, como está proposto no projecto de lei do Bloco de Esquerda, porque isto significaria, por exemplo, que os hospitais que não cumprissem teriam de devolver ao Ministério das Finanças e da Administração Pública uma parte da verba orçamental que lhes é transferida. Penso que este instituto das contra-ordenações não faz sentido nesta lei, nem no seu conteúdo.

Finalmente, uma palavra para uma matéria que tem a ver com o acesso aos cuidados de saúde, embora não directamente com as cirurgias, que é o acesso aos serviços de saúde ao nível das urgências. O Governo está a levar a cabo uma operação geral de «encolhimento» do Serviço Nacional de Saúde!

O Governo quer transformar o Serviço Nacional de Saúde numa instituição residual, num«servicinho nacional de saúde», que abrange um mínimo de população, ao querer, em muitas zonas, afastar, o mais possível, a resposta às populações em aspectos fundamentais, como os blocos de partos, os serviços de urgência, de grandes zonas populacionais - fala-se hoje que mais de um milhão de pessoas irá ficar a cerca de uma hora ou a 45 minutos de distância das urgências.

A redução da resposta pública é uma realidade que tem a ver com critérios economicistas.

Mas, e dizemo-lo aqui com toda a clareza, estas medidas encaixam, na perfeição, na estratégia do sector privado, no sentido de encontrar nichos de mercado para as suas próprias unidades, porque onde desaparecer uma unidade pública e for rendível, do ponto de vista financeiro e comercial, lá estará uma unidade privada para fazer aquilo que, agora, o Governo quer proibir as unidades públicas de fazer. Esta é a estratégia que está por detrás deste «encolhimento» geral das unidades de saúde feito pelo Governo do PS e pelo Ministro da Saúde, o que, de todo, repudiamos, porque é inconstitucional e vai contra os interesses das populações.

Com esta medida, o que o Governo está a preparar é a redução do Serviço Nacional de Saúde a um nível cada vez mais residual e é a abertura, cada vez mais, ao sector privado, da resposta às necessidades das populações, certamente, com custos maiores para as próprias populações, com custos acrescidos àquele que já é o elevado pagamento das despesas com saúde feito pelos cidadãos do nosso país, ao contrário do que a Constituição lhes garante.

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