Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-Geral, Sessão Pública «Capitalismo, Soberania, Desenvolvimento tecnológico: novas e velhas questões»

Capitalismo, Soberania, Desenvolvimento tecnológico: novas e velhas questões

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Gostaria, antes de mais, de agradecer a vossa presença nesta Sessão Pública de debate sobre o tema “Capitalismo, Soberania, Desenvolvimento Tecnológico: novas e velhas questões”, bem como os contributos que aqui vieram.

Contributos que serão muito úteis quer para o desenvolvimento da nossa intervenção política prática imediata, quer para o combate ideológico que, a pretexto da chamada revolução tecnológica digital e da robótica e sobre o futuro do trabalho, os centros do grande capital desenvolvem, com o objectivo de garantir o seu domínio sobre os processos económicos e sociais, e assegurar os seus interesses numa sociedade marcada pelo agravamento da exploração, da destruição dos direitos laborais e do próprio direito ao trabalho.

Contributos para um debate que se impõe alargar e que exige novos aprofundamentos pela sua complexidade, pelos seus impactos no mundo do trabalho e na vida dos trabalhadores, cujas consequências a experiência passada e actual mostram que não podem ser subestimadas pela transversalidade dos seus efeitos no conjunto da sociedade. Um debate onde os trabalhadores e as suas organizações representativas tomam um empenhado lugar para se defender e agir, mas também a sociedade em geral e não apenas os especialistas, os grupos de estudo ou as organizações e instituições que servem grupos de interesses que não são os da comunidade em geral.

Debate que assume uma particular acuidade num País como Portugal que sob o duplo efeito dos processos da globalização capitalista e de integração capitalista na União Europeia, e das políticas nacionais que servem tais processos, viu: desaparecer importantes sectores da sua economia; debilitados e liquidados sectores produtivos importantes com impacto devastador no emprego; degradar-se a situação social com a desregulação das relações laborais e das condições de trabalho que precarizaram a vida de uma parte muito significativa da população activa. Viu debilitados direitos sociais essenciais e deteriorar-se o sistema científico e tecnológico nacional. Viu-se desapossado de parte significativa da sua soberania e dos respectivos instrumentos para o seu exercício e para assegurar o seu próprio desenvolvimento de acordo com os interesses nacionais e do seu povo.

Vieram aqui, nas intervenções que me precederam, as dimensões e consequências deste processo, que estão na origem de múltiplas crises que se instalaram, nomeadamente na União Europeia e no nosso próprio País.

Estes últimos anos, e com muita evidência a partir do início da última grande crise cíclica do sistema capitalista, desencadeada em 2007/8, têm mostrado quão fantasiosas eram as construções ideológicas da tecnocracia ao serviço dos interesses dominantes, económicos e financeiros, que apresentavam a globalização capitalista e os seus processos de liberalização planetária dos mercados e da livre circulação de capitais sob o domínio da ditadura das grandes corporações transnacionais, como a grande e única solução dos problemas do desenvolvimento mundial e o melhoramento geral das condições de vida dos povos.

Ao contrário do que se anunciava, a armadilha da globalização capitalista construída por cima do Estado-nação e à custa da soberania dos povos, num quadro de profundas desigualdades e poderes assimétricos, não só não é a solução, como se mostra incapaz de garantir a solução.

Falar hoje do sistema capitalista é falar do aprofundamento da sua crise estrutural. É falar do agravamento dos seus traços mais negativos, da extraordinária concentração e centralização do capital, onde cerca de um milhar e meio de grandes empresas multinacionais controlam mais de 60% da economia mundial. É falar da concentração crescente do poder em instâncias supranacionais dominadas pelas principais potências e que condicionam o desenvolvimento geral e de cada país. É falar da brutal ofensiva para agravar a exploração. É falar do desemprego e da precariedade que afectam centenas de milhões de pessoas, das desigualdades e da pobreza, dos muitos flagelos sociais com solução adiada.

É falar da incapacidade da classe dominante para encontrar soluções para a persistente estagnação ou crescimento anémico, incluindo nos países que são o coração do sistema, União Europeia incluída, apesar da mobilização de uma panóplia de instrumentos e recursos, incluindo financeiros, sistematicamente desviados do investimento produtivo para a especulação, que se apresentam cada vez mais inoperantes.

É falar das crescentes dificuldades de um País mais periférico, dependente e vulnerável, dificuldades que se acentuaram com a adesão ao Euro. É falar na necessidade da recuperação dos instrumentos políticos e económicos perdidos que se revelem indispensáveis ao seu desenvolvimento, no plano económico e monetário, das relações comerciais e do desenvolvimento do sector produtivo, e da defesa da produção nacional e do emprego. É falar da necessidade de garantir a sua soberania e o pleno direito do povo português de decidir do seu próprio destino e de ver assegurada a prevalência dos interesses nacionais.

No nosso recente XX Congresso tivemos a oportunidade de debater e caracterizar a real situação e a profundidade da crise do capitalismo e das suas crescentes dificuldades para a debelar. Identificávamos e afirmávamos, perante o falhanço de outras soluções, o capitalismo dominante e no desenvolvimento dos impactos das tecnologias da informação, procurava agora nos “choques tecnológicos”, tirar a economia capitalista do marasmo em que se encontra, deixando para trás o ataque às verdadeiras causas da crise.

Crise que está não apenas a acirrar as contradições e choques entre grupos monopolistas apoiados pelos respectivos Estados, com consequências imprevisíveis na evolução da situação internacional, mas sobretudo, a procurar «contrariar os seus efeitos através da baixa salarial, da redefinição do trabalho no sistema produtivo e da liquidação dos direitos económicos, sociais e culturais».

Isso não significa, como foi aqui evidenciado, que não há avanços tecnológicos a operarem-se a grande velocidade e com impactos significativos na organização do trabalho e na sociedade e com previsíveis desenvolvimentos num futuro próximo.

O que significa é que, com ou sem aplicação de progressos tecnológicos efectivos, eles têm sido pretexto em nome da competitividade, da concorrência, da globalização e da internacionalização para impor cada vez mais uma política de exploração da força do trabalho e do empobrecimento geral.

São disso expressão o aumento das desigualdades, a redução do peso dos rendimentos do trabalho na distribuição do rendimento nacional, o crescente incremento da subcontratação através de cadeias de distribuição e produção globais, a liquidação do direito de contratação colectiva e de outros direitos, a pressão para a substituição dos sistemas de segurança social por medidas assistencialistas, as medidas de política fiscal que aliviam os lucros e penalizam o trabalho, entre outras, como o alargamento do horário normal de trabalho, mas também a exigência de disponibilidade 24 horas por dia e de flexibilidade de horário.

Uma orientação na acção das classes dominantes, como também os documentos do nosso Congresso dão conta, que se torna mais visível com os «desenvolvimentos recentes, como a emergência e a aceleração da aplicação da chamada economia digital e um maior recurso a tecnologias como a robótica» e que são pretexto também para o ressurgimento e difusão de velhas teses em torno do «fim do trabalho» ou de um «trabalho sem futuro».

Sobre esta matéria veio aqui uma importante explanação, através das diversas intervenções que ajudam a compreender melhor e aprofundam o conhecimento dos processos em curso, e os perigos que eles comportam para a vida dos trabalhadores, como a precarização massiva do emprego ou o maior uso da subcontratação, mas também para a sociedade em geral.

São muitos os estudos e as projecções sob a evolução futura do emprego e do seu volume, muitos dos quais transportam a ganga ideológica da inevitabilidade do desemprego e da precariedade, de que não haverá trabalho para todos para naturalizar as políticas de exploração e empobrecimento, e alimentar o conformismo e a resignação.

Apresentam as teses da sua revolução tecnológica como uma inevitabilidade sem fuga em direcção a uma sociedade que deixa de ser de trabalhadores para ser de subsidiados, vendida como uma alteração profunda do modo de produção ou de uma “modernização” das relações de trabalho, embrulhada em conceitos novos e exóticos e novas soluções que mais não são que formas de trabalho precário, que acentuam a sua natureza exploradora.

Por aqui passou uma amostragem dessas mais refinadas formas de trabalho precário do futuro, que são já presente e quem têm nos exemplos da utilização das plataformas digitais, como aqui foi referenciada a UBER, ou a Amazon, um intermediário num mercado on-line e outras que têm em comum um tipo de relação, onde é praticamente total a desresponsabilização da entidade patronal, tal como é total a desregulação laboral.

Aqui se evidenciaram e desmontaram essas falsas soluções do «salário de disponibilidade» para o trabalho precário rotativo ou em rotação, do «rendimento básico incondicional» ou do «rendimento universal garantido» alternativo ao salário, como a grande resposta à pretensa «crise do trabalho assalariado», apresentadas como forma acabar com a pobreza, a desigualdade e a dependência da Segurança Social.

Segurança Social que, neste novo mundo do que cada um que se amanhe com um subsidiozito que se diz decente, teria como solução a sua liquidação, libertando novas parcelas para a acumulação capitalista – um desastre social, sem considerar o resultado para a comunidade do desaparecimento da forma mais eficaz de integração social e da realização individual que é o trabalho e das suas consequências para o funcionamento de uma sociedade que seria brutalmente injusta e deslaçada, senão mais antidemocrática.

Disse-se aqui que há estudos que dão como adquirido o desaparecimento de 45% a 60% de postos de trabalho nos países do Sul da Europa.

Mesmo sem lhes perguntar o que fariam numa “sociedade sem trabalho” à produção acrescida que resultava dessa proclamada revolução tecnológica e sem lhes perguntar quem a consumia. Se ela é viável. Não questionando até o facto de que tais previsões catastrofistas terem sido no passado sempre infundadas, apesar das muitas anunciadas certezas, nem se as contas estão certas nesse deve e haver entre o emprego perdido e muito novo emprego que inevitavelmente se criará.

O problema está em saber se o aceitamos, se tal fosse verdade, e se estamos condenados irremediavelmente a essa inevitabilidade. Se os trabalhadores, os povos e os países estão condenados a aceitar o seu projecto de desenvolvimento caótico, o seu actual modelo de organização da sociedade e a sua inconsideração em relação aos problemas sociais.

Que o capital espera e deseja ganhos potenciais de milhares de milhões com a aplicação da tecnologia e do desenvolvimento nessa “sociedade do algoritmo” e do robot à custa dos postos de trabalho de milhões de trabalhadores em todo o mundo não é difícil de imaginar. Mas os povos não têm apenas que acompanhar os seus desejos e a sua solução do “não há alternativa”. Há política e solução para defender os interesses gerais, assegurar trabalho para todos e com direitos laborais e sociais.

Neste debate o que fica claro é que no capitalismo os frutos do desenvolvimento tecnológico são sempre objecto de uma intensa e inevitável luta que o capital com os seus recursos tem travado com vantagem e que exige acção e solidariedade dos trabalhadores, para não só reverter a situação que está criada, mas impedir que se multiplique o saque que coloca todas as vantagens do desenvolvimento tecnológico do lado da minoria possuidora dos meios de produção, do lado do lucro e do seu incremento.

É óbvio que o avanço das forças produtivas é, em si mesmo, altamente desejável e o nosso País bem precisa desse avanço. Poderiam enumerar-se um conjunto de vantagens que são oportunidades para promover o desenvolvimento de todos e de cada dos povos e países, mas o progresso tecnológico tem que ser acompanhado por um progresso social e político que não se verifica. Acontece o contrário, ele é cada vez mais pretexto para novas e mais perigosas ofensivas, para novas e amplas extorsões. E este é um problema central – o da apropriação dos ganhos do desenvolvimento tecnológico pelo capital monopolista e multinacional.

Uma apropriação que se alarga às mais diversas áreas da nossa vida colectiva, seja através de patentes e da propriedade intelectual que se traduzem em reais bloqueios na transferência e disseminação do conhecimento e que, como aqui se aludiu, representam, por exemplo, atrasos na erradicação de doenças e que orientam e determinam as áreas do investimento público, este também dirigido ao apoio do investimento privado do grande capital para a investigação aplicada, em áreas rapidamente lucrativas.

A causa dos flagelos sociais não resultam da aplicação das tecnologias, não é no desenvolvimento tecnológico que as podemos encontrar. O problema do desenvolvimento tecnológico resulta do saber a quem serve e ao serviço de quem está. Se o desenvolvimento tecnológico é apropriado por uma minoria cada vez mais restrita e que, como aqui se afirmou, as exigências financeiras para o investimento e a mobilização de outros meios e recursos tenderá a centralizar nela ainda mais poder e valor, ou se é apropriada ao serviço do ser humano e o do desenvolvimento geral. Ela serve para libertar o homem ou para uma minoria exercer o seu domínio, controlo e subjugação. Se ela está ao serviço de alguns e não dos trabalhadores e dos povos.

Elas são a oportunidade para criar riqueza e distribui-la. Elas são uma componente essencial no programa de desenvolvimento do País que preconizamos para combater as suas fragilidades, a sua dependência, os défices estruturais, as debilidades dos seus sectores produtivos e da economia, o elevado desemprego, as nossas insuficientes respostas sociais.

Portugal não está condenado ao atraso, nem os trabalhadores e o nosso povo condenados a viver num futuro sem direito ao trabalho, na precariedade e sem direitos sociais. Tal como o País não está condenado a uma posição subalterna e periférica no processo desenvolvimento global.

Os portugueses podem encontrar na política patriótica e de esquerda que defendemos para o País a resposta necessária para enfrentar os problemas e contribuir para a construção de uma sociedade sem exclusões.

Há no País potencialidades para criar riqueza. É possível uma política económica alternativa. É possível com uma política dirigida para o investimento produtivo e para a defesa da produção nacional que aposte decididamente na agricultura e nas pescas, a par de um programa de reindustrialização do País, de desenvolvimento da ciência e tecnologia, e que tenha como objectivo central a criação de emprego.

Uma política que, recusando a continuação da privatização e liberalização de serviços e mercados, assegure a preservação pública de alavancas fundamentais da economia, garanta a manutenção de centros de decisão e de soberania económica nacionais.

Uma política que tenha como eixo central e primeiro objectivo a valorização do trabalho e dos trabalhadores que tem o pleno emprego como objectivo fundamental. Que não aceita o desemprego como uma inevitabilidade. Que sabe que ele é fruto do capitalismo e da maximização do lucro e da acumulação de riqueza e não ilude tais causas. Que assume a prevenção e travagem da destruição dos postos de trabalho como uma linha de intervenção planeada, onde está presente uma programação adequada e atempada das reorganizações e reestruturações do tecido produtivo.

Com uma política dirigida à valorização dos salários, à promoção do seu aumento real e à elevação da sua participação no Rendimento Nacional.

Com uma política que assume a redução progressiva dos horários de trabalho, sem perda de remuneração, colocando no imediato o objectivo das 35 horas para todos os sectores e um firme combate à desregulação dos horários, assegurando o respeito pelos limites diários e semanais. A revogação de normas que instituem sistemas de bancos de horas e os abusos do trabalho extraordinário.

Uma política que assegure o direito à estabilidade e segurança no emprego, como um segmento prioritário da política de valorização do trabalho e dos trabalhadores, visando erradicar o flagelo do trabalho com vínculos precários, garantindo com uma legislação laboral adequada a garantia do princípio de que a um posto de trabalho permanente deve corresponder um contrato de trabalho efectivo. Assegure o direito à negociação e contratação colectiva, reconhecendo o papel insubstituível da contratação colectiva de trabalho, enquanto fonte de consagração de direitos e instrumento de desenvolvimento e progresso social. Revogação imediata das normas relativas à caducidade das convenções. Desenvolva uma política de educação e formação profissional numa perspectiva de formação permanente, visando a qualificação profissional, social e pessoal. Reforço do papel da Escola Pública e do investimento para a educação de adultos e na formação ao longo da vida, nomeadamente no apoio a processos de reconversão de actividades profissionais.

Garantindo uma Segurança Social Pública valorizada, que assume o regime previdencial como “espinha dorsal” do sistema público, universal e solidário de segurança social e com a reposição da idade da reforma aos 65 anos. Alargando e reforçando o seu financiamento, nomeadamente com a criação de uma contribuição sobre as empresas com elevado Valor Acrescentado Líquido (VAL) por trabalhador, complementar ao actual regime de contribuições.

Permitam-me aqui um parêntesis já que falamos de segurança social: quando se aproxima o momento de uma decisão sobre a valorização das longas carreiras contributivas, mais uma vez reafirmamos o nosso compromisso de continuar a lutar pela nossa proposta para que todos os trabalhadores com 40 e mais anos de descontos para a segurança social, tenham direito à pensão por inteiro sem penalizações!

Estas são medidas para dar resposta a problemas que uma sociedade que se orienta para a inclusão de todos e onde cada um tenha o direito a viver com dignidade. A resposta no caminho para construir uma sociedade mais desenvolvida, mas também mais solidária. Não são as respostas todas, nem este debate tinha a pretensão de encontrar todas as respostas. Mas ser início de um debate que queremos continuar e aprofundar, certos também que algumas destas medidas, se concretizadas no imediato, seriam já uma contribuição para moldar os caminhos de um futuro de progresso sem exclusões, nem excluídos a esse direito essencial que é o direito ao trabalho.

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