Intervenção de Bernardino Soares na Assembleia de República

O aumento dos encargos para as pessoas no acesso aos serviços de saúde e na aquisição de medicamentos

Declaração política insurgindo-se contra o aumento dos encargos para as pessoas no acesso aos serviços de saúde e na aquisição de medicamentos

Sr.ª Presidente,
Srs. Deputados:
Vamos a questões concretas, pois parece que é essa a vontade do Partido Socialista.
Nos últimos dias, tivemos muitas declarações e até um fórum muito participado, com a presença do Primeiro-Ministro, com a intenção de demonstrar que, por reacção à proposta do PSD para a revisão constitucional, o PS não aceita desmantelamento do Serviço Nacional de Saúde. Mais: segundo vários responsáveis governamentais e do Partido Socialista, no debate do próximo Orçamento, o PS não aceita cortes na saúde.
Perguntamos: o que tem andado o PS a fazer no Governo? Quem aumentou as taxas moderadoras, e o que é isso senão um corte na saúde, passando custos para os utentes? Quem é que aumentou os medicamentos durante os últimos anos, e o que é isso senão um corte na saúde, passando custos para os utentes? Quem é que estrangulou os hospitais públicos — e, provavelmente, aí iremos encontrar uma boa parte da justificação para a aflição da execução orçamental em que o Governo parece estar — com contas escondidas nos hospitais públicos, nos hospitais EPE, sabendo que no último Orçamento do Estado, aquele que está a ser aplicado, a verba para o Serviço Nacional de Saúde, na realidade, diminuiu em relação ao Orçamento do Estado para 2009, se descontarmos o artifício contabilístico, que não corresponde a um
aumento, de introduzir as verbas da ADSE logo no início do Orçamento, verbas que não aumentam o Orçamento em relação ao ano anterior mas apenas antecipam o momento em que são injectadas no Serviço Nacional de Saúde?
Portanto, o Orçamento do Estado para 2010 foi inferior ao Orçamento do Estado para 2009, e essa é uma das razões para o garrote financeiro em que estão as instituições do Serviço Nacional de Saúde.
Ouvimos o Dr. Correia de Campos — esse insigne ex-governante! — a criticar as propostas do PSD, a dizer que não podia ser, que o PSD quer destruir o Serviço Nacional de Saúde. E leu até o livro do Dr. Passos Coelho. Ora, eu também tenho comigo o famoso livro do Dr. Correia de Campos, onde explica, quando saiu do Governo, que as medidas que tomou na área dos medicamentos levaram, e cito, «indiscutivelmente a aumentar a percentagem de desembolso das famílias nos medicamentos (…)». Ele explica também por que é que tinham de aumentar as taxas moderadoras. Dizia ele: «(.…) a razão mais importante para o alargamento das taxas moderadoras não foi nem o objectivo moderador, nem o objectivo financiador mas sim uma
preparação da opinião pública para a eventualidade de todo o sistema de financiamento ter de ser alterado».
Este é que é o Prof. Correia de Campos e a sua política de saúde.
Quase que me apetecia dizer que ouvir o Dr. Correia de Campos a defender o Serviço Nacional de Saúde seria quase como ouvir o Secretário de Estado Laurentino Dias a defender o ex-seleccionador Carlos Queiroz!…
Queria ainda referir-me ao aumento dos custos dos medicamentos para os utentes, recentemente aprovados pelo Governo, e explicitar o que significam estes valores para os utentes.
Revisão da comparticipação de 100% para idosos com reforma inferior ao salário mínimo, repito, para idosos com reforma inferior ao salário mínimo — esta comparticipação baixa para 95%. Como a própria Ministra da Saúde afirmou que custava, num ano, 100 milhões de euros, significa que vão ser pagos 5 milhões de euros a mais pelos idosos com reformas inferiores ao salário mínimo!
Baixa do escalão A de 95% para 90% de comparticipação. Lembre-se que Correia de Campos já tinha baixado de 100% para 95%. É uma segunda baixa no escalão A, nos últimos anos. Fazendo as contas com valores de 2008, que são os últimos disponíveis e aplicando as taxas de crescimento da despesa moderada, calculando por baixo, chegamos à conclusão de que a percentagem de comparticipação significará, pelo menos, mais 13 milhões de euros para os utentes!
Depois, temos a passagem dos medicamentos antiulcerosos, antiácidos e anti-inflamatórios do escalão B para o C, o que significa deixarem de ser comparticipados a 69% e passarem a ser comparticipados a 37%. O valor que se transfere para os utentes com esta alteração é de quase 70 milhões de euros, repito, 70 milhões de euros, com os antiulcerosos e antiácidos — estes são alguns dos medicamentos mais consumidos em Portugal — e 37 milhões de euros com os anti-inflamatórios (o Nimesulide, o Nimed e outros) que são também muito consumidos no nosso País.
Uma outra medida: a retirada da possibilidade de invocar uma portaria de 2004 nos antidepressores, nos medicamentos psiquiátricos, que permitia que, quando o médico entendesse adequado, a comparticipação fosse de 69% e não de 37%, como estava estabelecido. Isto significa que cerca de 106 milhões de euros, que é a diferença entre uma coisa e outra, vão ser transferidos para os doentes, pessoas que precisam destes medicamentos para terem uma vida estabilizada, para manterem a sua produtividade, a sua assiduidade ao trabalho, a sua estabilidade nas relações familiares. Ora, muitos deles não vão poder pagar estes medicamentos, e isso trará sérios prejuízos para as suas vidas e para o País.
Mais: o Governo propõe que o preço de referência baixe novamente e que, mesmo quando um médico receita um medicamento e o doente não pode trocá-lo por um medicamento genérico, seja o doente a pagar a diferença, uma diferença que agora será ainda maior. Ainda não é possível calcular essa diferença, mas serão, certamente, muitos milhões de euros.
Só em relação às outras medidas, excluindo esta que não é possível calcular desde já, a transferência de custos para os utentes é de 230 milhões de euros. Pelo menos, são 230 milhões de euros que vão ser transferidos para os utentes e que o Estado vai deixar de comparticipar.
É esta a política de defesa do Serviço Nacional de Saúde que o PS nos apresenta!…
São cortes na saúde, são cortes na vida das pessoas, são cortes no acesso aos medicamentos.
Portanto, escusam de invocar a proposta do PSD, porque a vossa política é a mesma que o PSD propõe para ser incluída na Constituição.
É por isso que dizemos, Sr.ª Presidente, Srs. Deputados, que não é possível continuar a resolver os problemas do défice orçamental atacando sempre os mesmo, atacando sempre os que mais precisam, cortando na despesa social, que é o que o PS faz, e depois querer disfarçar
esta política de corte social, esta política de abandono dos que mais precisam com inflamados discursos ou sessões muito concorridas a fingir que defendem o Serviço Nacional de Saúde. Na realidade, não o defendem e contribuem para o afundar com a vossa política, mesmo que a queiram disfarçar com o vosso discurso.
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr. Deputado Pedro Mota Soares,
O Governo assinou dois compromissos: um, com a indústria farmacêutica, e outro, com o sector das farmácias. E o que aconteceu, por exemplo, em relação ao da indústria farmacêutica, foi que tudo o que eram medidas para favorecer os interesses da indústria farmacêutica foram aplicadas e as medidas que criavam algum entrave aos lucros muito grandes que a indústria farmacêutica multinacional tem no nosso país ficaram no papel. É o caso da prescrição por DCI, que o PCP há décadas anda a propor nesta Casa e que, desde há alguns anos para cá, o CDS também passou a apoiar, e ainda bem. É uma medida essencial, porque visa a racionalização
dos gastos com o medicamento. Não se trata de diminuir, porque precisamos de apoiar mais as pessoas com os gastos com medicamentos, mas de racionalizar, usar bem o dinheiro, e não o contrário.
A unidose é um instrumento que também deve ser utilizado. No entanto, chamo a atenção para um outro aspecto. Estes governos também aprovaram no Infarmed a obrigatoriedade de redução da dimensão das embalagens para que as pessoas não precisassem de comprar embalagens de 60 comprimidos quando só tinham de tomar 20 ou 25. Contudo, essa redução nunca passou à prática, porque o Governo cedeu à indústria farmacêutica e recuou nas determinações que tinha aprovado.
Sr. Deputado, depois de terem sido tomadas estas medidas todas, o que é que temos? Os gastos do Estado com medicamentos a subir e os utentes a pagarem mais. E para onde vai este dinheiro? Não é, certamente, para corrigir as contas orçamentais, mas para quem lucra com este sector à custa do dinheiro público e à custa do dinheiro dos utentes. Contudo, o Governo, que não quer tomar medidas para diminuir as margens dos que lucram muito de forma a poder equilibrar as suas contas e, sobretudo, a apoiar mais as pessoas que mais precisam de apoio nos medicamentos, só tem força para aplicar medidas aos reformados com pensões abaixo do salário mínimo, às pessoas que precisam desesperadamente, por causa das suas doenças crónicas, de medicamentos que estão no escalão mais alto da comparticipação, às pessoas que
precisam de antidepressores para a sua vida no dia-a-dia, às pessoas que precisam dos seus remédios e que tantas e tantas vezes e cada vez mais não conseguem comprá-los na farmácia, porque não têm dinheiro para pagar o que lhes é prescrito.
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr.ª Deputada Maria Antónia Almeida Santos,
Também tenho aqui uma citação para si. Na revisão de 1989, quando foi introduzido o carácter tendencialmente gratuito da Constituição, o PS justificou o que é que isto significava. Dizia o Deputado Ferraz de Abreu o seguinte:
«Naturalmente que a introdução da frase ‘tendencialmente gratuito’, que tem sido aqui objecto de tanta discussão, para nós tem apenas um significado: é que a tendência que já vinha sendo aplicada e reconhecida vai continuar sem retrocesso. Portanto, caminharemos para a gratuitidade do Serviço Nacional de Saúde.»
Chegados aos tempos de hoje, vemos que o PS caminha, cada vez mais, para o pagamento do Serviço Nacional de Saúde. E até o Dr. Correia de Campos já reconheceu, no livro que há pouco citei, que é a ideia da introdução do co-pagamento que está na base dos aumentos das taxas moderadoras e de um cada vez maior pagamento pelos serviços de saúde.
Sr.ª Deputada, quer justificar as medidas que tiram benefício aos reformados com reformas abaixo do salário mínimo com a ideia da racionalidade dos gastos?! Com o facto de o Serviço Nacional de Saúde ter de ser justo e solidário?! Como é que o Serviço Nacional de Saúde é justo e solidário, quando retira aos mais pobres um apoio para comprarem os seus remédios? Essa é que é a sua ideia de justiça e solidariedade? Sr.ª Deputada, penso que tem de mudar o seu léxico ou, então, mudar a sua ideia sobre justiça e solidariedade.
Quanto aos abusos, Sr.ª Deputada, estamos fartos de ouvir, aqui, nesta Assembleia, o PS e o seu Governo justificarem os cortes nas prestações sociais com os abusos que existem nalgumas situações. Se há abusos, têm de os fiscalizar e não cortar para todos aquilo que é um apoio
justo, necessário e indispensável para que tenham acesso aos medicamentos.
A Sr.ª Deputada fez uma insinuação a que não vou responder. Mas quer falar de abusos? Fale, por exemplo, com o seu Governo dos abusos dos que vendem medicamentos e recebem a comparticipação do Estado quando recebem de borla uma boa parte das embalagens desses medicamentos. O seu Governo já prometeu atacar esses abusos e nunca mais tomou essa medida. Abusos é haver quem receba da indústria embalagens de borla e as cobre ao utente e cobre a comparticipação ao Estado sem que o Estado faça nada para corrigir isso. Quer falar de abusos? Vamos falar, então, desses abusos!
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr. Deputado João Semedo,
A sua posição na bancada não significa que esteja numa posição recuada em relação à política do medicamento. Aliás, isso comprova-se porque não tenho aqui qualquer citação de revisão constitucional para lhe ler, à semelhança do que fiz para o PSD e para o PS.
De facto, trata-se de um aumento que, mesmo excluindo o efeito do abaixamento do preço de referência, porque é difícil de calcular, neste momento, vai significar uma transferência de mais 230 milhões de euros para a população portuguesa em custos com os medicamentos.
A verdade é que a população portuguesa não vai gastar estes 230 milhões de euros, porque muitos não vão ter dinheiro para comprar os remédios, o que se traduzirá num problema gravíssimo de saúde pública, que vai ter consequências na vida das pessoas, no acesso aos serviços de saúde, na ida mais frequente aos serviços de saúde, na produtividade no País e vai ter consequências gerais na nossa sociedade.
Disse o Sr. Deputado João Semedo, e muito bem, que a Sr.ª Ministra tem andado a mentir aos
portugueses, porque não é verdade que não haja aumentos superiores a 1 euro. Isso é totalmente mentira, porque quando um medicamento tem 69% de comparticipação e passa para 37%, o aumento não é de 1 euro, mesmo que seja um medicamento genérico dos mais baratos.
A verdade é que estes aumentos vão ser incomportáveis para a maioria das pessoas neste país, alguns medicamentos aumentam mais de 10 vezes e são dos mais consumidos porque são utilizados por muitas pessoas.
A verdade é que o Governo, que tanta fala de abusos, como referiu o Sr. Deputado João Semedo, fala de abusos nas receitas. Então, o Governo não fez um contrato com uma grande multinacional para fazer o acerto das contas das receitas, para fazer o cruzamento das facturas e das receitas?! E não deu a essa multinacional mais de 30 milhões de euros para instalar esse sistema?! Então, utilize esse dinheiro para combater os abusos e as burlas! Ou esse acordo foi só para dar dinheiro àquela multinacional que está a fazer um serviço que devia ser feito pelos serviços públicos?
Aí é que estão os abusos, aí é que está a inaceitabilidade destas medidas.
Finalmente, Sr. Deputado João Semedo, precisamos de impor a prescrição por princípio activo como regra no Serviço Nacional de Saúde, no ambulatório tal como já é no internamento, e isso é indispensável para que avancem boas políticas do medicamento, que racionalizem os gastos do Estado, melhorem a prescrição e a sua qualidade e garantam um maior apoio à população portuguesa.

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