Intervenção de

As armas de destruição maciça de Saddam Hussein<br />Intervenção de António Filipe na Assembleia

Senhor Presidente, Senhores Deputados,Concluiu-se ontem em Lisboa o 1º Fórum Social Português. Esta iniciativa, animada pelos princípios que presidiram à realização do Fórum Social Mundial de Porto Alegre e do Fórum Social Europeu que teve lugar este ano em Florença, juntou mais de duas centenas de organizações sociais e muitos cidadãos que individualmente se lhe associaram, em largas dezenas de iniciativas de discussão sobre os problemas mais prementes do nosso tempo.O 1º Fórum Social Português, cuja realização saudamos vivamente, constituiu um importante espaço de debate, de reflexão e de participação, em torno dos problemas que afectam a nossa democracia, da luta pela justiça e pela igualdade de direitos, da luta pela paz e por um mundo mais justo e equilibrado.No mesmo dia que se concluía esta importante iniciativa de luta pela paz, passava por Portugal um senhor da guerra, cuja presença entre nós não nos honra nem engrandece, que aproveitou a sua estadia para mais uma das suas inacreditáveis declarações, na companhia subserviente do senhor Ministro de Estado e da Defesa Nacional.Afirmou ontem em Lisboa o senhor Rumsfeld que as armas de destruição maciça de Saddam Hussein hão-de, mais tarde ou mais cedo, ser encontradas, no que contou com a concordância do ministro português, para quem a existência das armas de destruição maciça no Iraque continua a ser uma questão de fé na sacrossanta administração Bush.Que o Senhor Ministro de Estado e da Defesa Nacional aceite com todo o enlevo fingir que acredita nas patéticas declarações do senhor Rumsfeld, é um problema seu. Agora, sermos tomados por parvos no nosso próprio país, já é um problema nosso. O Senhor Ministro da Defesa Nacional fará as figuras que quiser para agradar aos belicistas norte-americanos, mas não tem o direito de nos tomar a todos por parvos, secundando afirmações do senhor Rumsfeld sobre as célebres armas de destruição maciça do tipo das que, como lucidamente escreveu Mia Couto, não passam de argumentos para consumo de diminuídos mentais.Depois das revelações feitas pelo subsecretário da Defesa norte-americano Paul Wolfowitz, de que a existência de armas de destruição maciça no Iraque não passaram de um artifício propagandístico com que a burocracia norte-americana procurou convencer o mundo da necessidade de uma guerra determinada por razões estratégicas e pelo facto do Iraque “nadar em petróleo”, cai por terra qualquer réstia de credibilidade de todos os que em Portugal aceitaram por as mãos no fogo pela seriedade dos argumentos norte-americanos. A administração Bush está sob o escrutínio do Congresso dos Estados Unidos por ter falsificado relatórios dos serviços secretos. O Primeiro-Ministro Blair está a braços com pesadas baixas no seu próprio Gabinete e está sujeito a um inquérito parlamentar na Câmara dos Comuns por ter mentido ao Parlamento e ao país sobre a existência de armas de destruição maciça.E também em Portugal, não podemos deixar de retirar consequências e de pedir responsabilidades a um Governo que, em nome da necessidade de libertar o mundo da ameaça das armas de destruição maciça supostamente detidas pelo regime iraquiano, decidiu amarrar o nosso país a um seguidismo acéfalo em relação à guerra.A intervenção de vários membros do Governo nesta Assembleia não podiam ser mais claras.Em 19 de Novembro de 2002 afirmou aqui o Senhor Primeiro-Ministro que “o Iraque deve demonstrar por actos, e não por uma mera repetição de palavras, que desistiu dos seus propósitos de desenvolver armas de destruição maciça. Estas são, pela sua própria natureza, uma ameaça global que deverá ser contrariada por uma resposta global”.Em 1 de Fevereiro deste ano, o Senhor Primeiro-Ministro veio a esta Assembleia, segundo as suas próprias palavras, “apresentar a posição do Governo sobre a grave crise internacional suscitada pela obstinação do regime iraquiano em não cumprir o Direito Internacional”, salientando que “Portugal deve ter uma posição intransigente contra um regime como o Iraque que promove armas de destruição maciça”.Em 19 de Março, o Senhor Primeiro-Ministro afirmou peremptório nesta tribuna: “A verdade, nua e crua, é esta: A paz passa pelo desarmamento do Iraque. Esta é a vontade unânime da comunidade internacional: O desarmamento do Iraque”. E no debate das moções de censura, em 27 de Março, reiterou que “a posição de Portugal, em nome dos princípios da segurança internacional e da democracia, não podia ser outra que não fosse a de ajudar os seus aliados, na medida das suas possibilidades, na neutralização de uma ditadura que ameaça o mundo ocidental com armas de destruição maciça”.É aliás muito significativa a forma como o Senhor Ministro dos Negócios Estrangeiros iniciou a sua intervenção nesse debate. Foi assim:“Senhor Presidente, Senhores Deputados: A origem do actual conflito iraquiano é inquestionável: A recusa de Saddam Hussein em cumprir 17 resoluções das Nações Unidas que, desde 1991, exigiam o desmantelamento incondicional, total e efectivo do arsenal de armas de destruição maciça”.Pois bem: As armas nunca apareceram. Antes da guerra, as autoridades norte-americanas e britânicas tinham provas irrefutáveis da existência de armas de destruição maciça no Iraque e com elas convenceram alguns poucos aliados, e entre eles, o Governo Português.O secretário de Estado Colin Powell discursou longamente no Conselho de Segurança das Nações Unidas e exibiu fotografias que davam conta da existência de armas de destruição maciça. Só convenceu os membros do Conselho que já estavam previamente convencidos.Mas convenceu o Governo Português de tal modo que, mesmo depois das esclarecedoras revelações de Paul Wolfowitz e das graves acusações feitas pelo Chefe dos Inspectores da ONU, Hans Blix, de falsificação de relatórios dos serviços secretos norte-americanos e britânicos, e da maior e mais irrefutável de todas as evidências que é o facto de as armas nunca terem aparecido, o Governo Português continua a fingir acreditar que elas um dia hão-de aparecer.Na ânsia de desencadear a guerra, as autoridades norte-americanas recusaram o tempo solicitado pelos inspectores das Nações Unidas para uma inspecção rigorosa e detalhada. A guerra não podia esperar indefinidamente e os inspectores foram mandados regressar.Agora, consumada que foi a ocupação militar do Iraque, após uma campanha que pôs em evidência os escassos recursos militares do regime iraquiano, os inspectores foram impedidos de regressar, e é preciso tempo para encontrar as armas de destruição maciça.É preciso tempo e descaramento. É preciso o descaramento de quem escreve que Paul Horowitz não disse o que disse ou disse o que não queria dizer, ou que fazer a guerra era a única forma de saber se haveria ou não armas de destruição maciça, ou que se não há armas de destruição maciça, poderia haver no futuro, e já agora o descaramento de quem, sendo Ministro da Defesa de Portugal, acha natural que, apesar das fotografias convincentes de Colin Powell e dos relatórios irrefutáveis dos serviços secretos americanos e britânicos, as armas de destruição maciça não apareçam porque o Iraque é do tamanho da França.O que é grave não é a indigência dos argumentos e justificações de quem apoiou a guerra por subserviência, independentemente de quaisquer justificações nem o facto de ter havido um alto responsável da administração americana a quem fugiu a boca para a verdade e disse o que todos estamos fartos de saber.O que é grave é que a maior razão para a guerra, aquela que levou o Governo Português a apoiá-la, era afinal, falsa. E agora, de duas uma: Ou o Senhor Primeiro-Ministro estava consciente da falsidade ou inconsistência das provas que lhe foram apresentadas, ou não estava.Partindo do princípio de que não estava, e que aceitou de boa fé as ditas provas da existência de armas de destruição maciça no Iraque, o Senhor Primeiro-Ministro está hoje em condições de saber que foi enganado e de retirar ilacções do comportamento de uma potência que engana os seus aliados para obter o seu apoio numa guerra que desencadeia por interesses estratégicos.A verdade é que o Governo Português apoiou uma guerra com base numa mentira. E não só não retirou nenhuma ilacção desse facto, como continua a prestar vassalagem aos senhores da guerra e se dispõe mesmo a pôr em perigo a vida dos nossos elementos da GNR para aliviar o fardo dos ocupantes a troco de, porventura, algumas migalhas do saque.A justificação principal que o Governo Português invocou perante este Parlamento para apoiar a guerra contra o Iraque não passava afinal de uma falsificação. Umas das muitas falsificações com que o aparelho de propaganda dos países belicistas procurou justificar esta guerra perante a opinião pública.O Governo poderá ter convencido a maioria, já convencida por dever de ofício. Mas nunca convenceu a opinião pública portuguesa que esteve sempre contra a guerra e que não deixará de tirar as devidas ilacções da decisão do Governo Português apoiar, em seu nome, uma guerra de rapina assente numa despudorada falsificação.

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