Apresentação das Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal

As «Edições Avante!», com o acompanhamento particular de Francisco Melo lançam hoje, neste limiar das celebrações do ano octogésimo sexto de vida do nosso Partido, o Primeiro Tomo das Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal no período de 1935 a 1947.

Uma obra de valor histórico a reclamar consulta de todos aqueles que queiram conhecer a História de Portugal nesse período, que queiram conhecer a história do Partido escrita por quem a viveu e nela deixou a marca impressiva da sua intervenção não apenas nesses 12 anos, mas nos anos subsequentes do século XX.

Nos textos do camarada Álvaro Cunhal agora publicados, todos escritos há mais de seis décadas, e sem esmorecer a fascinante figura do homem com a sua cultura integral e os seus confrontos desassombrados de conteúdo ético, humanista e sociológico, os seus desafios à responsabilização individual dos intelectuais perante o pulsar de vida, dos dramas e problemas dos trabalhadores e do povo, relevam questões que continuam a ter uma actualidade incontornável e são uma referência para os comunistas do nosso tempo.

O Partido, com a sua identidade comunista, os seus princípios e normas de funcionamento democrático; o seu reforço orgânico como tarefa diária e permanente; a sua ligação à classe operária e aos restantes trabalhadores como chão mais sólido e seguro para esse reforço e para o reforço da sua influência social, política e eleitoral, acrescentamos agora; a intervenção combativa, determinada e generosa na luta pela democracia e pela liberdade, pela paz, pelo progresso e pela justiça social, por uma sociedade liberta de todas as formas de opressão e de exploração, pelo socialismo e pelo comunismo.

Dizendo mais em concreto, ao celebrarmos o octogésimo sexto aniversário do Partido, num quadro de grande complexidade em que somos confrontados com uma forte ofensiva e simultaneamente com poderosas e combativas lutas dos trabalhadores e das populações que exigem uma nova política, o fazemos dando continuidade aos objectivos pelos quais lutaram sucessivas gerações de comunistas, cujo exemplo nos comprometemos a honrar e a transmitir às gerações vindouras.

Os anos 40 referidos neste primeiro volume das Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal foram anos decisivos na construção do PCP com as suas características essenciais.

O Partido fundado em 6 de Março de 1921 atingindo rapidamente o milhar de militantes realizou o seu I Congresso em Novembro de 1923.

Já nessa altura vários membros do Partido estavam presos, vítimas da repressão desencadeada pelos governos republicanos sobre as lutas operárias nas quais os comunistas desempenhavam um papel importante.

O II Congresso ocorreu menos de três anos depois, precisamente em 29 e 30 de Maio de 1926, na complexa e difícil situação decorrente do golpe de 28 de Maio.

A violenta repressão que se seguiu à implantação da ditadura fascista direccionada contra o movimento operário e os comunistas levou a uma considerável fragilização do Partido cujas fileiras ficaram reduzidas a cerca de quatro dezenas de militantes.

A reorganização levada a cabo logo nesse ano de 1929 – na qual Bento Gonçalves que nela teve uma participação ímpar e que viria a ser Secretário-geral – foi fundamental e decisiva na medida em que imprimiu ao PCP uma viragem radical que passou de um pequeno grupo de comunistas mais ou menos activos para um Partido da classe operária portuguesa conferindo-lhe uma orientação marxista-leninista, tomando importantes medidas com vista à preparação do Partido para as novas e difíceis condições de clandestinidade.

Entretanto na década de 30, Salazar procede ao processo de fascização do Estado: “Tudo pela Nação, nada contra a Nação” é a palavra de ordem de carácter nacionalista com a qual o ditador mascara a institucionalização do fascismo, tomando como modelo o fascismo de Mussolini e depois, como referência, o nazismo de Hitler.

No tempo que vivemos em que se procura branquear o fascismo e o ditador fascista há que lembrar: As liberdades são suprimidas ao mesmo tempo que se inicia o caminho que irá conduzir à concentração capitalista e implantação do capitalismo monopolista, com o consequente agravamento da exploração e da miséria dos trabalhadores e do povo. São criados os instrumentos repressivos: em 1930 é criado o Partido Único, a União Nacional; logo a seguir Salazar formula a concepção do “Estado forte” que inclui e atribui poderes totais ao Governo, abolição definitiva dos partidos políticos e censura férrea.

Em 1933 é aprovada a Constituição fascista (com 99,5% dos votos expressos – aí incluindo 40,2% de abstencionistas que contavam como votos favoráveis) a seguir é criada a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, mais tarde PIDE, mais tarde DGS; três meses depois é criado o Tribunal Especial Militar; em 1934 é promulgado o “Estatuto do Trabalho Nacional” formatado no modelo da “Carta del Lavoro” de Mussolini que institui a fascização dos Sindicatos; em 1935 os funcionários públicos passam a ser obrigados a assinar uma declaração de repúdio do comunismo e são intimados a denunciar todas as pessoas que conheçam como opositoras do regime; o governo tem o poder arbitrário de demitir das suas funções todos os que não derem provas de aceitação da Constituição fascista; em 1936 sob inspiração do fascismo italiano é criada a Legião Portuguesa, fundada a Mocidade Portuguesa, a Mocidade Portuguesa Feminina  e a FNAT (Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho), nesse mesmo ano é criado o Campo de Concentração do Tarrafal e inaugurado em 29 de Outubro com os primeiros 152 presos na sua maioria comunistas. Pelo Tarrafal passaram 340 antifascistas que aí somaram um total de dois mil anos, doze meses e cinco dias de prisão, 32 dos quais assassinados, entre eles o Secretário-geral do PCP Bento Gonçalves.

O desenvolvimento e implementação deste processo de fascização é acompanhado por uma intensificação das perseguições e da repressão que incidem, essencialmente, sobre o PCP e os militantes comunistas. Muitos militantes e dirigentes do Partido são presos e, em alguns casos, assassinados nas prisões.

Em Novembro de 1935 o Secretariado do partido é preso: Bento Gonçalves, José de Sousa e Júlio Fogaça. Trata-se de um grave golpe, já que toda a direcção estava centralizada no Secretariado e não existia Comité Central. Entretanto o Partido resistia, assistindo-se, mesmo, no decorrer do ano de 1936 a um incremento da actividade e da organização.

Em Abril desse ano é criado um Comité Central, composto por, entre outros, Alberto Araújo, Manuel Rodrigues da Silva, Álvaro Cunhal e Joaquim Pires Jorge (os dois primeiros constituíam o Secretariado).

Mas o fascismo continuava a assestar fortes golpes no Partido, agravados com uma evolução negativa da situação internacional, traduzida, em 1939, na liquidação da República Espanhola e, logo a seguir, no início da Segunda Guerra Mundial.

Importa sublinhar que esta sanha repressiva se prolongou durante todo o tempo da ditadura fascista, precisamente até ao 25 de Abril de 1974.

Importa sublinhar igualmente que as principais vítimas dessa repressão foram sempre os militantes comunistas: foram eles os que em maior número ocuparam os cárceres fascistas, foram eles os mais torturados, foram eles os que mais resistiram e que, mesmo nas prisões, não deixavam de lutar e de se preparar para as lutas futuras.

Porque, apesar de submetidos aos mais brutais espancamentos, às torturas do “sono” e da “estátua”, dos aguilhões eléctricos, dos cigarros apagados nos corpos, da incomunicabilidade e do isolamento totais; atolados em excrementos nas masmorras da Fortaleza de Angra do Heroísmo; sufocados pela sauna pestilenta, pela “frigideira” e pela brutalidade dos trabalhos forçados no Campo da Morte Lenta; fechados em celas sombrias por detrás dos espessos muros de pedra do Aljube ou nos “segredos” e “casamatas” do Forte de Caxias; vigiados pelos carcereiros seleccionados e especializados que, no forte de Peniche, lhes impunham uma disciplina sádica – apesar de tudo isso, os militantes comunistas resistiam e lutavam nas prisões fascistas.

Os anos 30, apesar da brutal ofensiva violenta e repressiva da ditadura, são também momentos de luta e de resistência do povo e do partido contra a fascização da sociedade portuguesa.

O processo iniciado com a reorganização de 40-41 transforma o PCP num grande partido nacional, no grande partido da resistência e da unidade antifascistas, na vanguarda revolucionária da classe operária e das massas. Com a reorganização são criadas condições novas de defesa do Partido face à perseguição e repressão fascistas; são dados os primeiros e importantes passos em matéria de funcionamento democrático do Partido e do trabalho colectivo que lhe é inerente; é dado um impulso decisivo no processo de construção teórica e prática da identidade do Partido.

Os efeitos da reorganização de 40-41 são visíveis desde logo no desenvolvimento da actividade, da luta de massas e da luta antifascista e no reforço orgânico do Partido. Eles estão igualmente presentes no conteúdo e na raiz do processo de preparação e realização do III Congresso do Partido em 1943 – o primeiro realizado na clandestinidade e 17 anos após a implantação da ditadura fascista – num tempo em que o exército nazi dominava a Europa e ameaçava instalar esse domínio e em que a ditadura salazarista oprimia, reprimia, sufocava brutalmente Portugal e os portugueses.

Apesar de andarem à solta os cavaleiros do apocalipse havia quem resistisse e lutasse para os travar e derrotar arriscando a liberdade e a própria vida! Luta sempre houve é verdade. Mas do que falamos é da luta organizada nas mais duras condições da clandestinidade!

Esses efeitos continuarão presentes e assumirão desenvolvimentos notáveis no IV Congresso, em Julho de 1946 – um Congresso “cuja importância e significado muito particulares” decorrem, na análise de Álvaro Cunhal, de ter sido realizado “num momento crucial da história do século XX”, num “dos períodos de mais força e influência do PCP na luta contra a ditadura”, e das “múltiplas experiências e lições que resultam das suas (do Partido) análises, orientações e decisões”.

Importa sublinhar que o IV Congresso, para além de definir os princípios orgânicos do centralismo democrático que orientam a organização do Partido, assimilou e deu expressão política à rica experiência das lutas desse período; analisou minuciosamente a nova situação mundial e as potencialidades que dela decorriam; procedeu a uma análise aprofundada da situação política nacional; reafirmou a política de unidade nacional antifascista do Partido, definiu e apontou, como caminho para o derrubamento do fascismo e para a defesa dos interesses nacionais, o levantamento nacional contra a ditadura. Trata-se de um conjunto de análises e linhas de orientação de uma importância fundamental, como podemos confirmar lendo este I volume das Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal, designadamente o relatório por ele apresentado ao Congresso sobre questões de Organização. E estamos a falar de um tempo em que o processo de reforço do Partido se expressava em números significativos: o PCP contava, então, com 5 mil militantes e 4 mil simpatizantes – os números mais expressivos até ao 25 de Abril de 1974.

A concepção defendida no IV Congresso em matéria de aplicação e desenvolvimento do centralismo democrático constitui um contributo teórico de grande riqueza que viria a ter consequências decisivas na definição do PCP: acrescentando aos quatro elementos clássicos do centralismo democrático, outros que decorriam das experiências específicas do PCP, Álvaro Cunhal imprimiu características próprias e originais aos princípios orgânicos do Partido e à sua concepção relativa ao centralismo democrático, assim dando um avanço notável à criação inovadora do PCP que se define e afirma como um “partido leninista com experiência própria”.

É também no IV Congresso e no relatório apresentado por Álvaro Cunhal que é avançada a definição teórica da identidade do Partido e a concretização prática dessa identidade – uma identidade feita na complementaridade indissociável de um conjunto de traços identitários que incorporam a natureza de classe; o projecto; a ideologia; as normas de funcionamento democrático interno; a estreita ligação às massas e à defesa dos seus interesses; o carácter simultaneamente patriótico e internacionalista.

A importância da identidade do Partido assim definida, torna-se mais evidente se tivermos em conta que, como a vida e a experiência nos mostram, ela é sempre o alvo prioritário e preferencial de todas as ofensivas contra o Partido, sejam elas externas, sejam internas. Todas as tentativas de descaracterização do Partido têm a sua identidade como meta, mesmo quando, e regra geral é isso que acontece, simulam ter como alvo apenas um ou outro desses traços identitários, fingindo que não sabem que se abandonássemos um ou outro – e bastaria abandonar um único – toda a identidade do Partido se desmoronaria.

É também no debate e nas conclusões do IV Congresso – e disso nos fala Álvaro Cunhal nos textos agora publicados – que tomamos contacto com a abordagem aprofundada, e cheia de criatividade, da questão do “trabalho colectivo” – questão que começara a ser abordada no processo da reorganização de 40-41 e prosseguira no III Congresso.

A definição do conceito de “trabalho colectivo” – primeiro passo para a construção do conceito de “colectivo partidário” – constitui uma notável e relevante construção teórica, cuja influência veio a ser decisiva no tipo de Partido que é, hoje, o PCP.

O trabalho colectivo, visto e entendido como “princípio básico essencial do estilo de trabalho do Partido”; como aspecto essencial da democracia interna; e como factor decisivo da unidade, da disciplina e da coesão partidária, tem a sua primeira e fundamental expressão na direcção colectiva, cujo estabelecimento, implementação e instituição como prática corrente no Partido constituiu “um processo complexo, irregular e demorado”. E são as múltiplas experiências de direcção colectiva que alargam o conceito de trabalho colectivo e o estendem progressivamente a todos os restantes organismos de direcção do Partido, aos diversos níveis. E é de todo este processo de reflexão, de aplicação concreta da teoria, de disseminação do trabalho colectivo pela prática partidária, que emerge o conceito novo, avançado, revolucionário, de “colectivo partidário” – o nosso “grande colectivo partidário”, fonte da força essencial do Partido.

Vamos então comemorar os 86 anos do Partido ao mesmo tempo que festejamos a publicação do 1º volume das Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal – e passamos a ter à nossa disposição um conjunto de textos de indispensável leitura para o conhecimento da história do Partido – designadamente de um tempo em que a geração de militantes de então deu importantes passos em frente na construção do Partido que hoje somos.

Nos volumes seguintes das Obras Escolhidas continuaremos a acompanhar a vida do Partido contada por aquele que foi o mais relevante obreiro desta histórica construção colectiva que é o PCP.

Relembraremos a luta de milhares de comunistas, os avanços e os recuos dessa luta, os êxitos e os inêxitos, as vitórias e as derrotas, o positivo e o negativo, os acertos e os erros da nossa intervenção colectiva – donde emerge, sempre, e isso é o que melhor caracteriza a história do PCP, a disponibilidade para prosseguir a luta, para a intensificar e alargar, rumo à vitória sobre o fascismo, rumo ao 25 de Abril libertador e às conquistas revolucionárias da democracia avançada consagradas na Constituição de Abril – e sempre, sempre com os trabalhadores e com o povo; e sempre, sempre “tendo no horizonte o socialismo e o comunismo”.

E dessas experiências de luta e de vida retiraremos as lições indispensáveis à continuação da luta nos dias de hoje, contra a política de direita e por uma política de esquerda ao serviço dos interesses dos trabalhadores, do povo e do país – uma luta na qual o PCP, hoje como de há 86 anos a esta parte, tem um papel singular, indispensável e insubstituível a desempenhar.

Um Partido que aprende com os trabalhadores e as massas populares, que continua a confiar neles como obreiros e protagonistas principais de um futuro melhor e do seu próprio futuro!

Um Partido que tomando nas mãos as decisões do XVII Congresso e convicto de que é possível um PCP mais forte, reforça-se, cresce e avança honrando a sua história e a sua memória mas também por isso carregado de confiança e de projecto a olhar para a frente.

Sim camaradas! Prosseguindo esse objectivo milenário do ser humano de acabar com a exploração de um homem sobre outro homem, tal como o camarada Cunhal sonhou, escreveu, agiu e lutou uma vida inteira, não abdicamos do sonho ousado de um dia o ser humano tocar o céu!

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