Intervenção de Miguel Viegas, Deputado no Parlamento Europeu, Seminário «Controlo público da banca, condição para o desenvolvimento da soberania nacional»

A União Bancária

A União Bancária

Áudio

A crise financeira de 2007 pôs em evidência a necessidade de “fazer alguma coisa” relativamente à regulação e supervisão do sector financeiro. É por este motivo que, desde 2010, a Comissão Europeia propôs várias dezenas de actos legislativos para garantir que todos os actores, produtos e mercados financeiros sejam devidamente supervisionados (no total são mais de 30 textos entre directivas, regulamentos e actos delegados).

É neste panorama de profunda crise e desorientação que os Chefes de Estado e de Governo da União Europeia comprometeram-se em Junho de 2012 a criar uma União Bancária com este fundamento apelativo de controlar os bancos e evitar que, numa próxima eventual crise, sejam os contribuintes europeus a ter que pagar a factura.

O projecto da União Bancário é constituído por três pilares: o mecanismo único de supervisão, o mecanismo único de resolução e o sistema de garantia dos depósitos. Os dois primeiros encontram-se já em plena funcionamento ao contrário do terceiro que conta com a oposição do governo alemão. É aliás significativo que seja este terceiro pilar, na prática, o único voltada directamente para o interesse dos depositantes, a marcar passo.

O Mecanismo Único de Supervisão

O Conselho da União Europeia elaborou a 15 de Outubro de 2013 o Regulamento (UE) N.º 1024/2013, que veio implementar um novo sistema de supervisão bancária, atribuindo ao BCE o poder de supervisionar as instituições de crédito “significativas” também chamados de bancos sistémicos.

A partir de Novembro de 2014, o BCE ficou responsável directo pela supervisão de 120 dos maiores bancos europeus, representando cerca de 85% do sistema bancário europeu. No que diz respeito a Portugal, os 4 maiores bancos portugueses (CGD, BCP, BPI e Novo Banco, ex BES) ficam sob supervisão direita do BCE.

O BCE também publicou uma lista de instituições menos significativas onde se encontra o BANIF bem como todas as restantes instituições de crédito nacionais (cerca de 5000) de acordo com o exigido pelo Regulamento-Quadro (Regulamento (EU) nº468/2014 do BCE de 16 de Abril). Esses bancos continuam a ser supervisionados indirectamente pelas autoridades nacionais competentes. Contudo, o BCE pode decidir, em qualquer momento, exercer a supervisão directa a fim de assegurar a aplicação consistente de elevados padrões de supervisão.

Sobre este mecanismo único de supervisão, parece-nos óbvio o seu propósito de obstaculizar ainda mais todo e qualquer controlo público por parte dos estados nacionais sobre os respectivos sistemas financeiros. Ao centralizar a supervisão, os governos nacionais perdem mais um instrumento político de enorme importância que limita ainda mais o exercício da sua soberania num sector vital para qualquer economia.

Num outro plano de crítica, este passo leva a um reforço político do BCE que passa a acumular a gestão da política monetária e a supervisão do sistema financeiro, duas funções que poderão gerar conflitos de interesse. São conhecidas as críticas dos sectores mais liberais a esta sobreposição. Segundo estes, a política monetária deve ser neutra e imparcial. Se aumenta a promiscuidade entre o BCE e as instituições financeiras, designadamente aquelas que entram em dificuldade podem recair suspeitas sobre a condução da política monetária. Convém ter a noção que o BCE não fixa apenas as taxas de juro. Está permanentemente no mercado comprando e vendendo activos e portanto pode haver suspeita do BCE estar a favorecer este ou aquele banco em dificuldade falseando a concorrência. Contudo, para nós a crítica deve de mais de enquadramento. Qual é a missão do BCE. Em princípio deveria ser o pleno emprego. Juntemos agora a supervisão. Qual passa agora a ser o objectivo. É o crescimento económico e o pleno emprego? É a estabilidade de preços? Ou é a supervisão bancária. Como responsável pela supervisão bancária, o objectivo é evitar o colapso do sistema financeiro. Não haverá tendência para o BCE privilegiar este objectivo em detrimento dos outros, e atrelar a política monetária a este objectivo? Não é por acaso que o BCE fez questão de anunciar uma clara separação orgânica entre estas duas funções, submetendo os dirigentes de topo de cada estrutura a condições de estrita confidencialidade profissional e independência. Mais poeira dizemos nós quando sabemos e já denunciámos todo o tipo de promiscuidade existente entre esta casa e os grandes grupos financeiros…
Finalmente, é mais do que justa a reserva sobre a eficácia desta supervisão que falhou sucessivamente no passado. Com efeito, em 2014 e antes de assumir a supervisão única, o BCE promoveu os famosos testes de “stress” nos 130 maiores bancos europeus. Na prática foram dois testes. Um primeiro destinado a avaliar a qualidade dos activos detidos pelos bancos (Asset Quality Review, AQR) e outro a partir do qual os balanços avaliados foram submetidos a cenários de crise, analisando-se o comportamento dos rácios de solvabilidade. Tudo muito rigoroso e muito científico como está de ver. Estranho é que na avaliação dos activos (AQR) que começou em Novembro de 2013 e se prolongou até Outubro de 2014, nada se tenha descoberto relativamente ao BES que faliu em Agosto de 2014. Já agora, registe-se que, em Setembro de 2015, o Banif declarava que tinha capital e reservas de 675 milhões de euros, permitindo-lhe apresentar um rácio de capital CET1 de 8,5% e um rácio de solvabilidade de 9,5%. Ou seja, os dois rácios de capital do Banif situavam-se bem acima do mínimo legal exigível pela supervisão europeia.

Este mecanismo único de supervisão bancária, por mais apelativo que seja, retira soberania ao Estado Português e dificulta qualquer estratégia de controlo público do sistema financeiro, inclusivamente o banco público que fica igualmente sob a supervisão do BCE.

Mecanismo Único de Resolução

O Mecanismo Único de Resolução (MUR) pretende implementar uma gestão mais eficaz da resolução bancária através de um Mecanismo de Único de Resolução (MUR) articulado em torno de um Comité Único de Resolução (CUR) e de um Fundo Único de Resolução (FUR). Assim, se um banco entra em falência, pretende-se substituir a lógica de bail out que prevaleceu até aqui (capitais de fora, normalmente públicos recapitalizam o banco) pelo bail in (são os próprios accionistas e credores do banco a pagar os prejuízos). O mecanismo de resolução aplica-se a todos os bancos da zona euro e dos países que, não fazendo parte do euro, queiram aderir à união bancária.

O Fundo Único de Resolução constituído a partir das contribuições dos bancos começa a ser criado em Janeiro de 2016 e pretende-se que esteja plenamente constituído em 2024 com um valor de 55 mil milhões de euros, correspondente a cerca de 1% dos depósitos cobertos. Janeiro de 2016 é a data em que os fundos de resolução nacionais deixam de existir, fundindo-se no fundo de resolução único. É também a data em que entra em pleno funcionamento o mecanismo único de resolução em todas as suas prerrogativas.

Este mecanismo único de resolução constitui um enorme embuste que visa apenas disfarçar o propósito de aprofundar a integração financeira da EU, despojando cada vez mais os Estados Nacionais da sua capacidade de controlar este sector tão importante. Como iremos ver, este mecanismo não evita o recurso a fundos públicos para pagar os prejuízos da banca e muito menos resolve a questão de fundo das entidades demasiado grandes para falir (too big to fail).

Em toda a propaganda destinada a vender este fantástico pacote da União Bancária, usa-se até à exaustão esta ideia de que os contribuintes deixarão de ter de pagar as operações de salvamento do sistema financeiro. Todos os partidos ditos de esquerda apregoam esta ideia tão apelativa e que certamente cai no goto de muitas pessoas. Os documentos legislativos (aqueles que realmente contam) são contudo menos contundentes. As expressões “os contribuintes não serão novamente chamados a pagar”, ou “para que, no futuro, os contribuintes não tenham de pagar a factura dos erros cometidos pelos bancos” são substituídos por formulações bem mais vagas e menos vinculativas de tipo “com custos mínimos para os contribuintes e para a economia real” ou “um regime de resolução eficaz deverá minimizar os custos a suportar pelos contribuintes” etc..

E percebe-se porquê. Vejamos em primeiro lugar o mecanismo de resolução e como actua o conselho de supervisão. Havendo um banco em dificuldade, de duas uma, ou não comporta risco sistémico e entra em falência de acordo com os procedimentos normais de insolvência ou tem risco sistémico e neste caso, sob decisão do CUR entre em acção o mecanismo único de resolução. Este mecanismo permite estabilizar um banco com dificuldade e assegurar a continuidade do seu serviço usando preferencialmente os seus recursos internos. Pode renegociar o seu passivo, converter dívida em capital. As perdas são suportadas em primeiro lugar pelos accionistas e outros credores do banco com destaque para os detentores de obrigações convertíveis ou subordinadas. Os depósitos superiores a 100 mil euros podem igualmente ser chamados a contribuir, dependendo das legislações nacionais. No caso do BANIF o governo garantiu a totalidade dos depósitos. Vamos agora a números. O Fundo Único de Resolução entra em acção a partir do momento em que as perdas dos accionistas e outros credores atinjam o nível de 8% do activo. Por sua vez, o contributo do fundo de resolução não pode ir para além dos 5% do activo. Finalmente, e tal como faz questão de sublinhar o regulamento, nada impede os governos de ir para além destes limites no que toca à recapitalização dos bancos.

Ou seja e resumindo, cria-se um fundo de resolução de 55 mil milhões de euros que corresponde apenas e cerca de 3.5% dos fundos que forma usados entre 2008 e 2012 para salvar o sistema financeiro.

Ou seja, está criado um sistema de resolução que não toca no problema de fundo que reside na estrutura do sector financeiro. Sem a separação entre a banca de retalho e os bancos de investimento e sem o controlo público do sector financeiro, e apesar de toda a regulação que possa haver, os governos continuaram a ser chamados a cobrir os prejuízos do sistema financeiro aquando do rebentamento da próxima bolha especulativa. E como fica claro com contas simples, este mecanismo de resolução apenas de destina a criar um mero paliativo que não tem outro propósito senão criar a ilusão de que alguma coisa está a ser feita para que tudo permaneça na mesma.

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