Intervenção de António Filipe na Assembleia de República, Reunião Plenária

Sobre a apreciação do veto sobre a eutanásia

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Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

A oposição do PCP em relação às iniciativas sobre a legalização da eutanásia que estão hoje de novo em causa é bem conhecida e ficou claramente expressa nos debates que aqui foram realizados nas duas últimas legislaturas.

Todavia, do que hoje se trata não é de repetir esses debates como se o processo legislativo estivesse no início, ou sequer a meio. Hoje não se trata disso. O texto aprovado nesta Assembleia, contra o qual o PCP votou contra, foi declarado inconstitucional na sequência de pedido de fiscalização preventiva feito pelo Senhor Presidente da República, e do que se trata hoje é da apreciação dos ajustamentos a esse texto, feitos pelos proponentes, com o objetivo de ultrapassar as objeções de constitucionalidade feitas pelo Tribunal Constitucional.

O PCP vai manter o seu sentido de voto, mas não põe em causa a legitimidade inatacável da Assembleia da República para decidir sobre esta matéria. A Assembleia da República está em plenitude de funções e não se trata de um novo processo legislativo. O processo legislativo, concorde-se ou não com o seu conteúdo, foi concluído, e do que se trata agora é reapreciar os termos propostos para a alteração do texto então aprovado.
Se os termos agora propostos serão suficientes para resolver os problemas de inconstitucionalidade suscitados pelo Tribunal Constitucional, não sabemos. O PCP nunca colocou a sua discordância em relação à legalização da eutanásia no terreno controvertido da sua constitucionalidade. Sobre isso pronunciou-se o Tribunal Constitucional e poderá voltar a fazê-lo se a questão vier a ser suscitada por quem de direito.

O PCP manterá nesta fase o voto contra que expressou ao longo do processo legislativo.

É uma opção que não foi tomada de ânimo leve. Não se baseia em maniqueísmos ou ideias feitas. É uma opção que resulta de uma reflexão profunda sobre um tema que, pela sua complexidade, pelas inquietações que suscita e pela importância dos valores que estão em causa, dispensa qualquer atitude de arrogância intelectual ou qualquer invocação de superioridade moral.

O PCP sempre se recusou a encarar o debate sobre a eutanásia como uma guerra de trincheiras, de religiões contra ateísmos, de pessoas de esquerda contra pessoas de direita, de iluminados contra obscurantistas. O PCP é um Partido laico e de esquerda e baseia as suas posições numa reflexão onde não cabem dogmas nem ideias pré-concebidas.

O que está em causa é uma opção legislativa e não um julgamento sobre consciências individuais. O que se decide é uma opção do Estado e não dos indivíduos. O que se decide não é sobre a opção individual de cada um sobre o fim da sua vida, mas a atitude a tomar pelo Estado relativamente à fase terminal da vida dos seus cidadãos. A autonomia individual é algo que deve ser respeitado, mas uma sociedade organizada não é uma mera soma de autonomias individuais. Não pode o legislador assumir uma opção legislativa sobre a vida e a morte das pessoas sem ter em conta as circunstâncias e as consequências sociais dessa opção.

Este não é um debate entre quem preza a dignidade da vida humana e quem a desvaloriza. A dignidade de cada ser humano perante as circunstâncias da sua própria morte é algo que ninguém está em condições de julgar.

Não se discute aqui a dignidade individual seja de quem for. O que se discute é a questão de saber se um Estado que nega a muitos cidadãos os meios para viver dignamente lhes deve oferecer os meios legais para antecipar a morte.

O Estado Português não pode continuar a negar à maioria dos seus cidadãos os cuidados de saúde de que necessitam, particularmente nos momentos de maior sofrimento. A criação de uma rede de cuidados paliativos com caráter universal tem de ser uma prioridade absoluta. Certamente que ninguém aqui entende a eutanásia como um sucedâneo dos cuidados paliativos, mas para o PCP, há uma questão que é incontornável: um país não deve criar instrumentos legais para ajudar a morrer quando não garante condições materiais para ajudar a viver.

A evolução da ciência e da técnica tem permitido avanços da medicina que eram impensáveis ainda há poucos anos. Essa evolução é inexorável e é cada vez mais rápida. A questão é que os recursos disponíveis sejam postos ao serviço de toda a comunidade.

Através de boas práticas médicas, que rejeitem o recurso à obstinação terapêutica e que respeitem a autonomia da vontade individual expressa através das manifestações antecipadas de vontade que a lei já permite, o dever do Estado é garantir que a morte seja sempre assistida, mas não que seja antecipada.

Num quadro em que, com frequência, o valor da vida humana surge relativizado em função de critérios de utilidade social, de interesses económicos, de responsabilidades e encargos familiares ou de gastos públicos, a legalização da eutanásia acrescentará novos riscos que não podemos iludir.

Disse.

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