Intervenção de António Filipe na Assembleia de República

"A responsabilidade da formação dos Governos não é presidencial, mas parlamentar"

Sr. Presidente,
Srs. Deputados

Ficámos ontem a saber pelo Sr. Presidente da República que há em Portugal uma crise política. Não há razões para haver. Só há uma crise política artificial porque o Sr. Presidente a criou e só subsiste porque o Sr. Presidente a alimenta.

Na ânsia de se manter no poder custe o que custar ao País, a direita portuguesa não se conforma com os resultados das eleições de 4 de outubro, em que perdeu a maioria e, confrontada com a perspetiva real do seu afastamento do poder, aposta na criação de uma crise artificial e no facto consumado de um governo de gestão que permanece ilegitimamente em funções e que, como se viu no escândalo da venda da TAP, não hesita em exorbitar as suas competências, comprometendo, de forma intolerável, as decisões que só podem competir a um governo saído das eleições de 4 de outubro.

Não é admissível que, passados 45 dias sobre as eleições legislativas, o País permaneça sem governo, em consequência de uma crise artificialmente criada pelo Sr. Presidente da República, que, por meras razões de discordância política, tarda em aceitar a única solução governativa constitucionalmente válida, baseada na vontade política manifestada por quatro partidos representados na Assembleia da República e que, no seu conjunto, correspondem à maioria absoluta desta Assembleia.

A atuação do Sr. Presidente da República na atual situação política merece a nossa mais veemente reprovação. Não me refiro a declarações que revelam o seu total alinhamento político com o Governo derrotado em 4 de outubro e cujo Programa foi já rejeitado por esta Assembleia, nem me refiro a comparações manifestamente despropositadas com outros momentos políticos, que já foram, aliás, publicamente desmentidas.

O que é verdadeiramente grave na situação presente é que o Sr. Presidente da República, que devia ser o primeiro garante do normal funcionamento das instituições democráticas, esteja a atrasar artificialmente a entrada em funções de um governo democraticamente legítimo, assumindo poderes que a Constituição não só não lhe confere como expressamente lhe recusa.

O que a Constituição consagra no seu artigo 187.º, sobre a nomeação do Primeiro-Ministro, é textualmente o seguinte: «O Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente da República ouvidos os partidos políticos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais.»

Daqui decorrem duas ilações que deviam ser óbvias: como não existe no sistema político português qualquer eleição direta do Primeiro-Ministro, os resultados eleitorais em causa são para a Assembleia da República, pelo que o que releva para a nomeação do Primeiro-Ministro é a composição da Assembleia da República. Não havendo, como não há, uma maioria absoluta na Assembleia da República, o significado dos resultados eleitorais para a formação do governo é aferido pela audição dos partidos políticos. Conhecidas as posições dos partidos, é possível apurar as possibilidades de formação do governo. Os partidos não são consultores do Presidente da República. Pertence-lhes, na verdade, a palavra decisiva.

Como é sabido, o Presidente da República decidiu nomear um Primeiro-Ministro sem apoio na Assembleia da República. Ou seja, ouviu os partidos, mas não lhes deu ouvidos. Preferiu atuar na base de uma «tradição» inexistente e juridicamente irrelevante.

É que o regime democrático português não se rege pela tradição, rege-se pela Constituição.

E a haver tradição nesta matéria, seria a de nomear como Primeiro-Ministro o único líder partidário com condições para formar governo com apoio parlamentar. Foi sempre isso que aconteceu no passado. E se havia «tradição» nesta matéria, o Sr. Presidente quebrou-a e nomeou um Primeiro-Ministro que a única garantia que dava era a da rejeição do seu Governo pela Assembleia da República.

Com a nomeação do Dr. Passos Coelho, o Presidente da República condenou o Governo a uma demissão anunciada, que se concretizou com a aprovação de uma moção de rejeição do seu Programa pela maioria absoluta dos Deputados em efetividade de funções, nos precisos termos constitucionais. E, assim, perderam-se 26 dias.

Perante a disposição afirmada — e passada a escrito — por quatro partidos representados na Assembleia da República, que, no seu conjunto, correspondem à maioria absoluta, de possibilitar uma solução governativa duradoura, na perspetiva da legislatura, o Presidente da República não nomeia o novo Primeiro-Ministro, mantém o Governo demitido em funções de gestão e decide proceder a audições.

O Sr. Presidente da República é livre de fazer as audições que quiser e sobre os assuntos que muito bem entender, mas é preciso dizer que, no que se refere à nomeação de um Primeiro-Ministro, essas audições são constitucionalmente irrelevantes. As únicas audições que contam são as dos partidos políticos com representação parlamentar.

As audições, e a demora na nomeação de um Primeiro-Ministro que substitua o já demitido, são alegadamente justificadas pela necessidade de o Presidente da República ponderar a solidez da solução oferecida no quadro parlamentar. Só que não é legítimo ao Presidente da República invocar qualquer dilema que justifique a sua demora na nomeação do futuro Primeiro-Ministro, pela simples e óbvia razão de que o Presidente da República está constitucionalmente impedido — e bem! — de convocar novas eleições até ao final do seu mandato.

Perante um governo com apoio parlamentar maioritário, o único dilema constitucionalmente possível para o Presidente da República é entre a nomeação do Primeiro-Ministro que detém esse apoio ou a dissolução do Parlamento, devolvendo a palavra ao povo. Não pode o Presidente inviabilizar um governo por não concordar com o seu Programa ou com a sua orientação. Isso compete unicamente a esta Assembleia. Se o Presidente se encontra impedido de dissolver o Parlamento até ao final do seu mandato, não há aqui dilema possível. O Presidente da República, ou nomeia o Primeiro-Ministro aceite pelo Parlamento, e já ontem era tarde, ou assume a responsabilidade de deixar o País sem governo, abrindo um conflito institucional de consequências imprevisíveis, cuja resolução seria deixada ao seu sucessor.

Não se diga que o Presidente da República pode nomear um governo de iniciativa presidencial. É muito claro que a responsabilidade política do Governo se efetiva perante a Assembleia e não perante o Presidente da República. Sendo certo que nenhum governo pode dispensar o apoio parlamentar para subsistir, num quadro em que existe a possibilidade de um governo formado na Assembleia da República com apoio maioritário, qualquer governo de iniciativa presidencial seria condenado à rejeição e a sua subsistência em gestão traduziria sempre um quadro insustentável de paralisia e confronto institucional.

Vou terminar, Sr. Presidente.

E não se diga que o Presidente poderia manter um governo demitido em gestão até ao verão do próximo ano. O Presidente da República não pode deixar o País sem governo, sem Orçamento do Estado e em total paralisia legislativa, com o risco permanente de o governo demitido extravasar os seus limitados poderes de gestão e gerar uma situação de instabilidade e de permanente conflito institucional.

Concluo, Sr. Presidente, dizendo que, no respeito pela Constituição, o Presidente da República não tem alternativa. A responsabilidade da formação dos governos não é presidencial, mas parlamentar. Sem poderes de dissolução, o Presidente da República não pode recusar a solução governativa que o Parlamento oferece ao País, sob pena de atuar à margem da Constituição e de se tornar responsável por lançar o País numa situação de ingovernabilidade de consequências imprevisíveis.

(…)
Sr. Presidente,
Sr.ª Deputada Graça Fonseca,

A questão que colocou é muito pertinente, porque aquilo que a direita pretende dizer é que, por parte do PSD e do CDS, perante a apresentação nesta Assembleia do programa de um governo sem apoio parlamentar, todos os outros Deputados eram obrigados, coagidos a aceitar, mesmo que tivessem uma alternativa. Ou seja, nós temos uma alternativa, mas os senhores é que governam; somos obrigados a apoiar o vosso Governo, porque, enfim, os senhores acham que sim.

Portanto, isto é um absoluto contrassenso, Sr.ª Deputada, porque quem decide a formação dos governos é a maioria parlamentar que se forma e que corresponde, efetivamente, à expressão da vontade dos portugueses nas urnas.

O Sr. Deputado Hugo Lopes Soares misturou uma série de coisas e disse uma série de imprecisões que me vão permitir corrigir.

Bom, em primeiro lugar, o Sr. Deputado compara as críticas que acabei de fazer ao Sr. Presidente da República, à sua atuação ou, neste caso, à sua não atuação, com aquilo que o PSD disse relativamente aos juízes do Tribunal Constitucional. Deixe-me usar uma expressão popular, isso é «confundir a estrada da Beira com a beira da estrada».

Isto porque uma coisa é emitir uma opinião legítima sobre a atuação de um órgão de soberania, outra coisa é defender, como a Sr.ª Deputada Teresa Leal Coelho chegou a fazer publicamente, a existência de sanções jurídicas contra os juízes do Tribunal Constitucional, contra uma decisão jurisdicional.
Isso, Sr. Deputado, do ponto de vista da separação de poderes, não pode levar a qualquer comparação.

Mas, Sr. Deputado, sobre as posições do PCP, elas são claríssimas desde a noite das eleições.

Desde a noite das eleições, quando o Secretário-Geral do PCP, salientando a derrota que os senhores tinham sofrido ao perderem 700 000 votos e ao terem perdido a maioria absoluta, considerou que seria inteiramente possível ser formado um governo de iniciativa do Partido Socialista, que está tudo muito claro, tudo muito claro!

Aos Srs. Deputados que se queixam muito, dizendo que demorou muito tempo a existir um acordo entre os vários partidos…

Olhe, Sr. Deputado, se o Sr. Presidente da República não tivesse nomeado o Dr. Pedro Passos Coelho, seguramente, esse acordo teria sido publicitado muito mais cedo. Infelizmente, não foi!
(…)
Sr. Presidente,
Sr.ª Deputada Mariana Mortágua e Sr. Deputado Telmo Correia,

Muito obrigado pelas questões que colocaram e que me permitem, também, fazer algumas referências.

Desde logo, acho curioso que quer o Sr. Deputado Telmo Correia, quer, há pouco, o Sr. Deputado Hugo Lopes Soares tenham trazido aqui o exemplo do Dr. Santana Lopes, que é o exemplo acabado de que não há, em Portugal, eleições para Primeiro-Ministro.

Portanto, é interessante que tragam esse exemplo.

Mas o que é que faz toda a diferença entre esses momentos que os senhores invocam e o momento atual?

É muito simples: nessa altura, o Presidente da República tinha poderes de dissolução do Parlamento e o atual Presidente da República não tem e, portanto, agora, não há dilema. Agora, ou o Presidente da República aceita, como lhe compete, como é seu dever constitucional, o governo que lhe é oferecido pela Assembleia da República, ou deixa o País sem governo. É esta a questão, não há aqui nenhum dilema, há uma responsabilidade que deve ser assumida: ou respeitar o Parlamento, ou deixar o País numa situação de ingovernabilidade. É esta opção que o Sr. Presidente da República tem de tomar.

Queria dizer que somos inteiramente livres e é nosso dever — estamos num Parlamento — emitir as nossas opiniões sobre as questões mais relevantes para a vida política nacional. E esta questão, a questão do governo do País, é incontornável! É incontornável! Não passaria pela cabeça de ninguém, perante a situação que o País está a viver, que houvesse uma sessão parlamentar, um Plenário, com declarações políticas e que passássemos todos ao lado desta situação, como se o País não estivesse há 45 dias à espera de um governo que possa entrar em plenitude de funções.

Os senhores, naturalmente, são livres de rejeitar o programa de um qualquer governo que aqui seja apresentado, como nós fomos livres de rejeitar o Programa do Governo que aqui foi apresentado.

O que não é legítimo é procurar impedir artificialmente que esse programa seja apresentado, e é isto com que estamos neste momento confrontados. Os senhores assumirão a responsabilidade, como nós assumimos as nossas; agora, o que não é legítimo é procurar impedir que um governo que tenha apoio parlamentar nesta Assembleia possa ser nomeado e possa assumir funções.

Termino dizendo que há pouco o Sr. Deputado Telmo Correia, e o Sr. Deputado Hugo Lopes Soares também fez alusão a isso, disse que o PCP, na noite das eleições, anuncia sempre que ganhou.

Devo dizer que nós temos muita fama, mas há outros que têm muito mais proveito, porque já passaram 45 dias sobre a vossa derrota e os senhores ainda andam a afirmar que ganharam, e não sabemos quando é que vão acabar com esse discurso!

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