Intervenção de Edgar Silva, mestre em Teologia e membro do Comité Central do PCP, Conferência «Uma visão universal e progressista da História - A actualidade da Obra de José Saramago»

A religião e os valores humanistas na obra de José Saramago

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Nota introdutória

É de grande atualidade o “Evangelho Segundo Jesus Cristo” quando, mais uma vez, tantos cristãos estão a trucidar-se uns aos outros em nome do mesmo Deus, nestes dias em que o absurdo da guerra, entre outros profundos nexos causais, na Europa, também é justificada por alguns hierarcas por motivos da religião.

O “Evangelho Segundo Jesus Cristo”, publicado em 1991, tem 24 capítulos, não numerados que totalizam 445 páginas. É o romance mais longo de José Saramago. Naquele texto, mais do que versar sobre a história de Jesus desde a sua conceção até à sua crucificação, na companhia de Jesus, Maria, José, Maria Madalena, dos discípulos de Cristo e do diabo, Saramago é o “evangelista” que faz uma releitura de tragédias da humanidade, da tragédia de todo o humano, designadamente, da vida dos «crucificados menores». O autor português constrói a história dos «crucificados menores» em confronto com o divino e o demoníaco, no fundo, a história da humanidade em prolongada busca de si mesma.

  1. Uma arquitetura do sagrado

Ao longo da sua obra, José Saramago constrói cenários socias, políticos e religiosos imersos numa iconografia judaico cristã, projetados segundo um profundo imaginário religioso.

Revelando exaustivo estudo de textos bíblicos, como é raro na história da literatura portuguesa, na liberdade da palavra, explorando um discurso conotativo, com um fluxo semântico torrencial, por vezes vertiginoso, Saramago desenha uma arquitetura do sagrado. Materializa a crítica do sagrado enquanto religião institucionalizada, como parte da ideologia de domínio social, enquanto componente dos mecanismos repressivos das sociedades. Na sua conceção do sagrado a religião institucionalizada mantém tanta gente num estado de adormecimento, de aceitação de sacrifícios, em resignação, impedindo que os humanos vivam plenamente a sua humanidade. Essa religião como que suga a vontade humana.

Quer seja através de monólogos intimistas ou reflexões sentenciais, quer seja por ditos proféticos, apartes e antevisões ou personagens e histórias trágico-maravilhosas, o autor do “Evangelho Segundo Jesus Cristo” constrói narrativas de rituais religiosos, de quadros bíblicos, de tradições e relatos do judaísmo e do cristianismo. E naquela arquitetura do sagrado, Saramago inaugura uma nova linguagem sobre o fator religioso, relê a linguagem antiga, desnudando a ideologia ou desvelando as camadas de ideologia transportadas por determinadas interpretações dadas aos textos bíblicos, às instrumentalizações retóricas, políticas, sociais das figurações de Deus.

Na sua arquitetura do sagrado, no “Evangelho”, Saramago dessacraliza a palavra tida por sagrada pelos crentes. O narrador é o agente dessa dessacralização. Reproduz histórias da Bíblia para apresentar Deus tal como é mencionado em diferentes contextos no Antigo Testamento. Saramago utiliza as citações bíblicas, reapresenta-as, multiplica as citações ipsis verbis do Antigo e do Novo Testamento, para expor o que considera iniquidades de Deus.

Da história de Deus, conclui Saramago no seu “Evangelho”: é «uma história interminável de ferro e de sangue, de fogo e de cinzas, um mar infinito de sofrimento e de lágrimas».1 Do relato acerca de Deus sentencia Saramago: «É preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue».2

  1. O que há entre Saramago e Deus?

Sendo ateu, Saramago revela-se apegado à ideia de Deus. A sua literatura manifesta uma vasta incidência de temas bíblicos. Não é só no “Evangelho Segundo Jesus Cristo” que Deus, enquanto tema, está presente na obra de Saramago: Deus lá está na “Terra do Pecado”, na “História do Cerco de Lisboa”; em “Levantados do Chão”; no “Memorial do Convento”; em “Todos os Nomes”; nas peças de teatro “In Nomine Dei” e na “Vida de São Francisco de Assis”; nos romances “Ensaio Sobre a Cegueira” e em “Caim”.

Selam Ferraz, no seu estudo sobre «um certo perfil de Deus» em Saramago, refere que «ao longo de sua obra, ele vai apontando perfis de Deus que o incomodam. Em Terra do Pecado, seu primeiro romance, critica um Deus que não gosta de prazer e de sexo; em Memorial do convento, critica aqueles que edificam grandes catedrais para Deus; na peça de teatro In Nomine Dei, critica as guerras que se fazem em nome de Deus. Finalmente em o Evangelho segundo Jesus Cristo, Saramago questiona o Deus de Amor que deixa que seu único filho seja crucificado e que não concede o perdão a Lúcifer».3

Mais do que questionar Deus, Saramago rejeita-o, rejeita o Deus cruel, sanguinário, vingativo. Saramago recusa Deus em defesa da humanidade e, por isso, coloca-se do lado de Jesus. A recusa de Deus é, ao mesmo tempo, acompanhada da valorização da figura de Jesus.

Em contraposição à crueldade de Deus e à arrogância de Deus, Saramago identifica-se com o personagem Jesus. Tanto assim que o narrador do romance nem precisaria declarar - mas declara – que, enquanto no “Evangelho” Deus é o anti-herói, Jesus é o evidente herói daquele evangelho.4 Deus é o grande antagonista no “Evangelho de Saramago”, porque, enquanto Jesus e, diga-se, o Demónio procuram compreender os humanos, Deus procura submete-lo à sua vontade, alargar o número de fiéis e o poder que tem sobre eles.

Saramago destaca a figura humana, demasiado humana de Jesus. Se Saramago rejeita Deus é para exaltar, na figura de Jesus, a figura humana, o homem e a sua dor, o homem e a sua revolta.

Em Saramago há a identificação de Jesus com a humanidade, num processo narrativo que vai ficando mais claro nos diversos episódios que o romance recolhe da sua vida, havendo mesmo uma passagem do “Evangelho” de Saramago na qual Jesus, de certo modo, recusa Deus em favor dos homens: «Não podes ir contra a vontade de Deus - diz-lhe Pedro. Não - responde Jesus - mas o meu dever é tentar».5 Ou seja, em Saramago o Filho de Deus, em vez de se entregar aos desígnios do Pai celestial, ousa questioná-lo em nome da própria humanidade e em favor da humanidade.

Em contraposição aos homens sem vontade ou de vontade adormecida, que deixam de ser verdadeiramente humanos, contrários ao próprio movimento da História, existe um novo mundo por erguer, uma outra força que radica na vontade humana, que liberta os povos da religião institucionalizada, que comporta uma imensa capacidade criadora e transformadora, que possui potencialidades para superar todas as marcas da nossa humana fragilidade. No “Evangelho de Saramago”, o Cristo Homem traz consigo todas as marcas da nossa humana fragilidade e, correlativamente, da nossa força divina. E é neste sentido que na humanidade há uma infinita vontade de transformação do mundo.

Nesta leitura do Nobel português da literatura poderá dizer-se que no “Evangelho de Saramago” o Cristo Homem revela à humanidade a grandeza do humano, o personagem Jesus manifesta o quanto nos falta para chegarmos a ser verdadeiramente humanos.

  1. Teologia de Saramago

Tal como os demais romances de Saramago e, antes de mais, no seu “Evangelho” sobressai aquele que é um dos maiores legados do nosso Nobel da Literatura: o alçar a humanidade ao papel de principal ator da existência.

No contador da História e de histórias que nos fascinam e apaixonam é o humano que interessa. Em José Saramago importa a humanidade detentora do seu próprio destino e única responsável pelos seus próprios atos.

No texto de Saramago “ao homem nada é impossível”. Ele é capaz de cuidar do seu próximo, é capaz de inventar, de criar, de fazer a história prosseguir. Tal como a vontade humana é capaz de amar de forma incondicional, o génio humano (tal como Blimunda, Baltasar e Bartolomeu Lourenço) é capaz de erguer a passarola; é capaz de superar obstáculos (como na saga dos Mau-Tempo) e é capaz, até mesmo, de mudar o rumo da história. Precisa, no seu Evangelho, de matar a inflexível imagem do Deus todo poderoso, como condição para que se liberte a humanidade.

Quando é exposta a humana fragilidade, a nossa cegueira, o medo da morte, as capacidades de destruição, logo Saramago exibe o homem ao próprio homem, a capacidade de sublimar, de compaixão, do altruísmo, da liberdade, da justiça, do amor. Demasiado humano, o humano é mortal, no entanto, aspira à imortalidade; está sujeito ao tempo, porém, aspira à divindade; é criatura, mas deseja ser criador.

Tal como todos nós, no “Evangelho de Saramago”, o Cristo Homem traz consigo todas as marcas de nossa humana fragilidade e de nossa força divina. E é em nome da humanidade que Saramago, através dos tensos diálogos, das suas alegorias, da elaboração de grandes metáforas e parábolas, nas diversas formas de confronto do humano com o absurdo, com o desconhecido, através da ficção narrativa, nos seus retratos literários, em tudo persegue um objetivo: a tentativa de entender o que significa o ser humano.

No Centenário do nascimento de Saramago será destacada a atualidade da sua obra, relida aquela literatura que continua a habitar e a inquirir os nossos dias. Para além de tudo isso, entre muitos outros aspetos, importará valorizar, de sobremaneira, a acutilância da sua palavra sobre o muito que nos falta para chegarmos a ser verdadeiramente humanos, com a insistência de uma indomável confiança na luta dos Povos, uma esperança que não aceita qualquer forma de resignação, nem a exploração, nem a desigualdade que desfigura a comum humanidade dos humanos.

Muito devemos a Saramago, mas, em particular, “como evangelista”, com ele aprendemos a dizer como ainda nos falta tanto caminho para chegarmos a ser autenticamente humanos. E é, por isso, que podemos dizer quanto o “Evangelho de Saramago” nos remete para uma profunda reflexão teológica, reporta-nos para universos da teologia antropológica dos grandes mestres, como o foi Karl Ranher, ou como nos sugere a mais pura teologia da esperança.

Tal como afirmou Max Horkheimer. «a teologia, para mim, é a esperança de que a injustiça que caracteriza o mundo não seja a última palavra».6


1 SARAMAGO, José – Evangelho…, 1998, 381.

2 SARAMAGO, José – Evangelho …, 1998, 391.

3 FERRAZ, Selma – Quais são as faces de Deus? IHU 299 (6 de julho 2009) s.p.

4 Cf. SARAMAGO, José – Evangelho…, 1998, 239.

5 SARAMAGO, José – Evangelho…, 1998, 436.

6 HORKHEIMER, Max – Elipse da Razão. Zahar: Rio de Janeiro, 1976, 18.

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