Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-Geral, Conferência «Uma visão universal e progressista da História - A actualidade da Obra de José Saramago»

«O legado de José Saramago constitui um precioso manancial de ensinamentos para os nossos combates de hoje»

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Saudações do PCP a todos os participantes na Conferência «Uma visão universal e progressista da História – A actualidade da Obra de José Saramago», que hoje aqui realizamos.

Esta é uma conferência que, inserindo-se no programa de comemorações do centenário de José Saramago que o PCP se propôs realizar sob o lema «escritor universal, intelectual de Abril, militante comunista», afirma-se como um acontecimento aberto a todos, militantes do PCP e da JCP, mas também aos democratas e patriotas, homens e mulheres sem partido, que independentemente das suas opções literárias e estéticas, reconhecem em José Saramago o escritor, o intelectual, o homem de militância política cuja memória importa preservar, cuja obra importa projectar, cujo exemplo importa prosseguir. 

Agradecemos, naturalmente, à direcção da Escola Secundária Camões pela cedência deste auditório, tornando assim possível a realização desta Conferência neste espaço com excelentes condições que, simbolicamente, associa o valor e actualidade da obra de José Saramago à formação das novas gerações.

Aproveito igualmente para agradecer o apoio, o contributo, a colaboração de quem estudou, pesquisou, analisou, se confrontou com a notável obra de José Saramago e se disponibilizou para que as iniciativas das comemorações que prosseguem se realizassem com reconhecido êxito. Intelectuais conhecedores da obra e da vida de José Saramago, cujo trabalho reconhecemos e valorizamos, alguns dos quais se disponibilizaram para participar nesta Conferência

Debatemos aqui, hoje, uma escrita e toda uma obra onde está presente o  penetrante olhar sensível e profundamente humano de José Saramago sobre a vida dos homens e sobre os «males do mundo», mas também a acção e intervenção política concreta de um homem que tomou Partido na luta pela liberdade, pela democracia, contra as desigualdades sociais, por um mundo melhor e diferente. 

Esse homem que levou muito a sério na sua criação literária aquele célebre princípio humanista: «sou humano, nada do que é humano me é estranho»; que sintetizou um dia na expressão: «a prioridade absoluta tem de ser o ser humano. Acima dessa não reconheço nenhuma outra prioridade»; e que está presente não só na sua actividade criadora, mas também na opção política e ideológica que abraçou.

Sim, Saramago é esse reconhecido escritor universal, autor de uma vasta obra, onde nada do que é humano lhe é estranho e onde está presente um profundo sentido de solidariedade e justiça e uma permanente inquietação sobre o destino da humanidade. 

É esse escritor que não renega as raízes nacionais, que nos fala da singularidade histórica e cultural das gentes que habitam este pequeno rectângulo na parte mais ocidental da Europa, dos processos históricos, culturais e políticos, reflectindo e inquirindo o País que somos, onde o povo está presente e é protagonista, em obras tão diversas como Manual de Pintura e Caligrafia, Levantado do Chão, Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, A Jangada de Pedra e História do Cerco de Lisboa, e nesse perturbador romance que é A Caverna, mas também em Claraboia ou  A Viagem do Elefante. 

É esse criador literário, que na sua obra nos fala de tudo o que é inerente ao humano em todas as latitudes, que estuda e revela a natureza humana, nas suas virtudes e nos seus defeitos, como nos mostra toda a sua obra, nomeadamente no Ensaio sobre a Cegueira ou no Ensaio sobre a Lucidez.  

Esse homem que tinha para ele como as mais luminosas palavras aquelas que retirara de A Sagrada Família de Marx e Engels:  «Se o homem é formado pelas circunstâncias, então será preciso formar as circunstâncias humanamente».

«Está aqui tudo», chegou a afirmá-lo. Afirmou-o e assumiu-o nas múltiplas dimensões da sua vida, como escritor, intelectual e militante comunista. Quis ser e foi um combatente que agiu com coerência, visando transformar a realidade humanamente. 

Sim, mudar a realidade, mudar as circunstâncias de um mundo injusto e desigual para nos tornarmos mais humanos.

E quanto imperioso e necessário é reforçar este combate no mundo de hoje, na defesa e afirmação dos valores básicos elementares como a igualdade de direitos, a generosidade, a fraternidade, a justiça social e solidariedade humana, que nos apela à obrigação de permanecer sempre atentos a todas as grandes desigualdades, injustiças e discriminações sociais. 

Quão necessário é trabalhar para alargar aquele questionamento de consciências que na dedicatória desse romance épico que é o Levantado do Chão, José Saramago toma da escrita de Almeida Garrett, em que aquele escritor, perante as enormes desigualdades e injustiças sociais do seu tempo, confronta os seus leitores com a questão:

«E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas» – interroga Garrett – «se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infância, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?»

Questão pertinente e actual em que, sob o mando e pela especulação do grande capital, a riqueza se acumula nas mãos de poucos – os grupos económicos –, enquanto a exploração prossegue e os trabalhadores e o povo empobrecem.

Ontem mesmo à sombra da pandemia, hoje das sanções e da guerra, com a cobertura e empenhamento dos Partidos da política de direita, que seja qual for o lugar que ocupem – no governo ou na oposição – , convergem, como se vê no nosso País, no propósito de fazer pagar ao povo o preço da exploração desenfreada, do custo de vida e do retrocesso económico e social que estamos a viver e aos quais os trabalhadores, o povo e o País não podem deixar de pedir contas e penalizar com o seu veemente protesto, exigindo o fim da especulação e da política de confrontação e da guerra. 

Por isso, estes são tempos difíceis mas que são também de luta pelos direitos e condições de vida e pela concretização de uma política alternativa que rompa com a política de direita, em defesa do regime democrático, pelo desenvolvimento soberano e o progresso social. 

É essa tarefa que hoje temos em mãos – de lutar e organizar a luta -  por profundas transformações das estruturas económicas e sociais, pela libertação colectiva da submissão àqueles interesses e aos seus instrumentos de domínio ideológico, cultural e político. 

Debatemos aqui esse homem, escritor, intelectual e militante comunista que, aquando do banquete realizado em Estocolmo, comemorativo do Nobel da Literatura, não se coibiu de afirmar: «[…] A mesma esquizofrénica humanidade capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas, assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte do que ao nosso próprio semelhante. Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os governos, porque não sabem, porque não podem, ou porque não querem. Ou porque não lho permitem aquelas que efectivamente governam o mundo, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a quase nada o que ainda restava do ideal da democracia.»

Quanta realidade e actualidade transporta esta afirmação!

Esse homem que nos dizia também no ensaio A verdade e a ilusão democrática e tão válido na vida e no mundo que aí está: «Efectivamente, dizer hoje “governo socialista”, ou “social-democrata”, ou “democrata-cristão”, ou “conservador”, ou “liberal” e chamar-lhe “poder”, é como uma operação de cosmética, é pretender nomear algo que não se encontra onde se nos quer fazer crer, mas sim em outro e inalcançável lugar - o do poder económico».

Uma realidade que no nosso País se tornou norma décadas a fio, expressa nesse rotativismo de pura alternância sem alternativa promovida e tacitamente concertada entre os partidos da política de direita e dos negócios e que hoje os senhores do dinheiro e do mando querem relançar e com ele garantir a perpetuação da política que os serve, com mais ou menos cosmética, tomando novas ou velhas vestes. 

Esse homem que no seu inacabado livro Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas questiona a guerra e reafirma a importância da luta pela paz.

Essa preocupação que nos acompanha nos dias de hoje e que está colocada nas prioridades da nossa intervenção e luta e que esteve  sempre presente na vida e na obra de José Saramago, que determinou muitos dos seus passos, actos de solidariedade e tomadas de posição, em Portugal e em muitas outras regiões do mundo.  

Esse homem que  nasce na Azinhaga  (concelho da Golegã) em 16 de Novembro de 1922, numa família camponesa, origem que marcou indelevelmente o seu percurso de vida e a sua obra. Esta terra que sempre amou e nunca esqueceu e que transportou até Estocolmo, para essa  cerimónia de atribuição do Nobel, tão marcante para si, para a Literatura portuguesa  e para o País, e nela ou dentro dela a vida dura das suas gentes, na pessoa dos seus familiares mais directos, que em pouco se distinguiam da vida dos demais, daqueles, e eram a maioria, que muito pouco tinham de seu, apenas a força dos seus braços para trabalhar. 

Nesta Azinhaga, cuja terra era muita para poucos e rara e muito escassa para a maioria do povo.

Esse homem que antes de ser editor, tradutor, jornalista e escritor, foi metalúrgico, desenhador e administrativo, condição profissional e origem de classe que muito determinantes foram na formação da sua consciência cívica e política, na formação da sua consciência de classe, nas suas opções políticas ao longo da vida, nomeadamente na sua adesão àquele que viria a ser o seu Partido de sempre e para sempre, o Partido Comunista Português, fundado pouco mais de um ano antes de José Saramago nascer, determinado a pôr fim à exploração do homem pelo homem.

Sim, José Saramago foi também o combatente que, como alguém já o afirmou e muito justamente, não hesitou em «descer à arena», vir à luta tomando o seu lugar no terreno da acção concreta no seio dos homens e das mulheres em todos os tempos da sua vida, tomando posição pública e intervindo, com o seu Partido.

José Saramago cedo iniciou a sua actividade antifascista, participando em actividades de resistência à ditadura. Foi apoiante da candidatura de Norton de Matos e participou em muitas outras actividades contra o regime fascista  nos anos seguintes. Esse abominável regime que Saramago denunciou também em Levantado do Chão, mostrando o seu lado sinistro, num tempo de lutas pela dignidade dos trabalhadores rurais.

Foi já como militante comunista (Partido a que aderiu em 1969) que, nos anos sessenta, desenvolve uma intensa actividade no quadro das actividades da Oposição Democrática e da CDE (Comissões Democráticas Eleitorais) nos períodos das farsas «eleitorais» da ditadura, em 1969 e 73. 

De facto, em 1969, no âmbito da Comissão de Escritores da CDE, nas «eleições» do fascismo à Assembleia Nacional, teve um papel destacado, junto com outros escritores, no arranque da organização do trabalho para a criação da Associação Portuguesa de Escritores.

Participou igualmente no trabalho unitário que levou à criação da Comissão de Defesa da Liberdade, que teve um papel relevante na união de centenas de intelectuais e outros trabalhadores do País, no combate ao fascismo.

Participou também no III Congresso da Oposição Democrática, em Aveiro, sobre cuja realização no próximo ano passam 50 anos e que importa assinalar pela sua importância na luta pela liberdade e a democracia, onde apresentou a tese «Para o estudo da situação da cultura e da informação em Portugal».

Depois do 25 de Abril integra a organização dos escritores do Sector Intelectual de Lisboa e faz parte da Direcção do Sector de Artes e Letras e estará em importantes e diversificadas acções no movimento operário e popular no decorrer do processo revolucionário.

Este é um tempo cheio de intervenção e acção do homem de letras e militante comunista na luta em defesa da Revolução e dos seus valores e conquistas, rasgando com a sua palavra e o seu saber os novos horizontes da elevação cívica e cultural que a Revolução de Abril proporcionava e empenhado na defesa do projecto político do seu Partido. 

Já como escritor consagrado, percorreu o planeta, levando a outros povos e outras gentes a sua reflexão sobre a situação no mundo, o intelectual e escritor que falando dos seus livros disse um dia: «Creio que nada ou quase nada que fiz depois do 25 de Abril, poderia ter sido feito antes», palavras que confirmam que a sua obra é, também ela, uma conquista de Abril. 

Militante comunista, em nenhuma circunstância escondeu ou iludiu essa sua condição de membro do PCP. Condição que com orgulho patenteava, como deixou claro ao afirmar, após o anúncio do Prémio Nobel: «Eu hoje com o prémio posso dizer que, para ganhar o prémio, não precisei de deixar de ser comunista». Posição que reafirmaria em 2008, quando o PCP lhe prestou nova homenagem no Centro de Trabalho Vitória em Lisboa, nos 10 anos da atribuição do Prémio Nobel. 

A par da continuação de uma intensa actividade de criação literária, travou importantes combates políticos e eleitorais, integrou a lista da Coligação «Por Lisboa», sendo eleito Presidente da Assembleia Municipal, e como candidato da CDU, indicado pelo PCP, participou em todas as eleições para o Parlamento Europeu, entre 1987 e 2009. 

Para o Parlamento dessa Europa que José Saramago transportou para a literatura na sua Jangada de Pedra. Essa Europa, que não toda a Europa, onde via o seu País, como afirmava «correr maiores e mais graves riscos que outros seus “parceiros” bafejados pela História, pela Geografia e pela Fortuna, pois, no que toca a soberanias e identidades, será forçado a renunciar, substancialmente, a muito mais que aqueles outros que, por terem influência económica e política de peso, estão em condições de escolher e impor o jogo, de decidir as regras e baralhar as cartas.»  

O tempo e a história têm provado a justeza desta análise.

José Saramago participou na actividade geral do seu Partido, ao longo de décadas, até ao final da sua vida, como o documenta a obra recentemente editada, no âmbito deste programa de comemorações, «José Saramago, um escritor com o seu povo».  

Saramago foi um escritor que veio do povo trabalhador, a quem amou e foi fiel. Um homem comprometido com os explorados, injustiçados e humilhados da terra, que assumiu valores éticos e um ideal político do qual não abdicou até ao fim da sua vida!

Termino reafirmando que José Saramago podia ter sido só um escritor maior da literatura portuguesa. Foi mais do que isso. Foi um homem que acreditou nos homens, mesmo quando os questionava, que deu expressão concreta à afirmação de Bento de Jesus Caraça da aquisição da cultura como um factor de conquista da liberdade.

O legado de José Saramago constitui um precioso manancial de ensinamentos para os nossos combates de hoje que continuam norteados  pelos seus valores de liberdade, democracia, emancipação social, desenvolvimento e independência nacional e pelo porvir de uma sociedade nova de justiça e progresso social, por um mundo melhor.

A vida e obra de José Saramago serão objecto dos trabalhos desta Conferência, que certamente constituirá um importante contributo para enriquecer o seu conhecimento e alargar a sua divulgação, nomeadamente junto das novas gerações. 

A todos os conferencistas, a todos os participantes nesta importante iniciativa política e cultural, desejamos votos de bom trabalho.

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