Intervenção de

Referendo sobre a despenalização da IVG - Intervenção de Odete Santos na AR

Declaração Política relativa ao referendo sobre a despenalização da IVG

 

Senhor Presidente
Senhores Deputados

A consulta popular do passado dia 11 de Fevereiro, assinalando que devolvia à maioria de Deputados favorável à despenalização da IVG, a conclusão do processo legislativo em curso, constituiu uma grande vitória das mulheres portuguesas, mesmo de muitas daquelas que votaram não.

Tratava-se de uma questão de liberdades. Por isso tratava-se de uma questão de vida, que esta não o será verdadeiramente quando aquelas forem espoliadas. Assim o compreendeu uma parte significativa dos eleitores, que, apesar de bombardeados com deturpações e falsidades de toda a ordem, compreenderam que estava em causa uma questão de política criminal. Perceberam que por detrás da campanha do não, estavam preconceitos anti - femininos, retrógradas ideologias sobre a Mulher, e sobre a sua própria racionalidade. Em última análise, por detrás dessa Campanha mistificadora, estava em causa a negação ao ser humano dos amplos caminhos do conhecimento e da liberdade. Caminhos de que o ser humano nunca desiste, nem desistirá, acompanhando sempre a fala do homem nascido de Gedeão, que proclama " O Universo sou eu".

Agora sim, foi o lema confiante usado pelo PCP, durante toda a campanha, que no dia 12 de Fevereiro, adquiriu na 1ª página de um matutino, o sentido de alívio perante o fim de uma angústia que transportamos neste Parlamento há mais de 2 décadas. Desde que o PCP apresentou 3 Projectos de Lei, com medidas sociais e preventivas do aborto, sendo o último deles, o Projecto sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez.

Agora sim, respondeu um número significativo de eleitores, de várias classes sociais, que superando mistificações, entenderam que " o aborto é realmente a expressão de uma contradição entre o desejo das mulheres e as realidades sociais, económicas e familiares.

Não admira assim que tenha sido nas classes sociais  que se debatem com maiores problemas sociais e económicos, e nos locais com maiores tradições na luta pelas liberdades, que o SIM tenha tido uma expressão mais significativa.

E se dúvidas ainda restassem de que a questão se insere no sistema de exploração que domina o mundo, elas seriam removidas com a posição de reconstituídos grupos económicos de antanho, detentores de unidades privadas de saúde, que de imediato anunciaram que naquelas unidades não se aplicaria a lei.

Não admira, perante a dimensão do problema, que o não tanto tenha reclamado o afastamento dos partidos do referendo, contra o estatuto constitucional que a estes é reservado - contribuir para a formação da vontade política do Povo.

A questão é claramente política - nada mais político do que um Código Penal.

Não admira que rapidamente, e na mesma noite, logo se tenha ouvido contar as abstenções como votos no não, recuperando um certo momento do passado, em que as abstenções contaram como votos numa Constituição de má memória, que aliás, consagrava a discriminação da mulher.

E também não admira que superada uma angústia, tenhamos que afrontar aqueles que agora reclamam uma aproximação entre o sim e o não, para, dizem, superar fracturas e clivagens.

Desde os remotos tempos do apagamento do feminino, nada há de mais fracturante, nem pode deixar de ser assim, do que a luta das mulheres pela igualdade.

A Liberdade e a Igualdade não admitem superlativos. Elas são já o máximo superlativo.

Mas registámos que contra os que já anunciavam uma dilação na aplicação da lei, o 1º Ministro veio anunciar a sua rápida aprovação.

De facto, já se perdeu tempo demais, como nós insistentemente referimos antes da campanha do referendo.

E uma lei penal depois de anunciada tem de entrar rapidamente em vigor, sendo uma lei de despenalização vai aplicar-se retroactivamente. E não faz sentido que as mulheres vejam ainda adiada a possibilidade de sair dos meandros do aborto clandestino.

Não faz sentido que o Não queira ganhar por portas e travessas aquilo que perdeu no referendo. Não faz sentido que reivindique a criação de um sistema de aconselhamento (já está consagrada no Código Penal uma consulta médica e um período de reflexão) para que de eventuais estruturas criadas manobre para impedir a liberdade de decisão das mulheres. Foi o que aconteceu na Alemanha, país que tem sido referido como exemplo, mas é um mau exemplo.

Na verdade, as estatísticas de taxas de aborto na Holanda registaram a presença de mulheres alemãs que não aceitavam ser dirigidas e controladas.

Por detrás dos sistemas de aconselhamento, nomeadamente do sistema alemão, está a ideia tão cara aos movimentos antifeministas do Não, de que a decisão da mulher de pôr termo a uma gravidez, não é uma decisão razoável ou racional. Ela é incapaz de compreender o que se passa na sua cabeça e precisa da assistência de alguém que está melhor informado.

O aconselhamento é sempre directivo A mulher está ali porque a sua própria capacidade para tomar uma decisão é considerada inadequada.

Nós dizemos consulta médica sim, tal como já está no Código Penal, período de reflexão sim, tal como já está no Código Penal. Aconselhamento não. Suscitando-se as maiores dúvidas sobre o anúncio feito de uma área residual de cedência ao Não, na previsão de um aconselhamento não obrigatório. A informação sobre a possibilidade desse aconselhamento trará sempre os riscos de um efectivo controle da liberdade da mulher.

Essa liberdade tem ser garantida no Serviço Nacional de Saúde, nomeadamente através de efectivas garantias de confidencialidade.

Porque é de prever que, à semelhança do que se passou noutros países, não só nos E.U.A, mas também na França (onde uma associação denominada Direito a Nascer montou uma monstruosa campanha contra o professor Israel Nisand, autor de propostas que levaram à alteração da Lei Veil), mas também na França, dizíamos, se culpabiliza as mulheres que decidem interromper a gravidez. E também na Alemanha onde os partidários do não se manifestam ostentando cruzes.

De culpabilização, e também de terror, já tivemos quanto baste na campanha do referendo.

Parafraseando Ary dos Santos, só nos faltava agora que este Sim não se cumprisse.

Queremos pôr termo ao aborto clandestino. O exemplo dos países europeus mostra que tal é possível.

E é isto que tem de ser cumprido.

Porque Portugal votou sim, contra a barbárie do aborto clandestino.

Disse.

  • Saúde
  • Assembleia da República
  • Intervenções
  • Aborto
  • IVG