Sr. Presidente,
Srs. Deputados:
Se há matéria em que se acentua a descredibilização do regime democrático é na evidente e escandalosa promiscuidade entre o poder político e o poder económico.
A situação a que chegámos não pode deixar de merecer uma forte intervenção de todos os que prezam a independência do poder político e a soberania popular. De facto, e ao contrário do que diz a Constituição, em Portugal, cada vez mais, o poder político se subordina ao poder económico.
Progressivamente, e de uma forma avassaladora, o que vemos é que é o poder económico que determina muitas das decisões do poder político, orientando-as em seu favor.
Não se trata apenas do caso, com evidente relevância e significado, do ingresso do ex-ministro das obras públicas e dirigente do PS, Jorge Coelho, numa das maiores construtoras nacionais. E, Sr. Deputado José Junqueiro, não é uma questão de carácter, é a constatação de um facto e uma avaliação política.
Trata-se, antes, de uma prática reiterada e vulgarizada, bem patente no facto de metade das empresas do PSI-20 terem ex-governantes nos seus órgãos sociais.
É uma matéria em que se aplica uma espécie de «Tratado de Tordesilhas» entre o PS e o PSD, com umas abertas para o CDS, como ainda há pouco ficou patente nas exigências do Presidente do PSD sobre o poder na Caixa Geral de Depósitos.
Podíamos estar aqui longos minutos a desfiar exemplos, assim permitisse a memória. Por exemplo de outros ex-ministros das obras públicas: um, é hoje administrador de uma empresa a quem adjudicou uma valiosa e leonina concessão; outro, passou para a Galp, depois para a EDP.
Para a banca é um ver-se-te-avias: um ex-ministro da presidência, da justiça e da defesa, um ex-secretário de Estado da presidência e um ministro-adjunto, entre outros, todos para o BCP; uma ministra das finanças e um ministro da presidência e da defesa para o Santander; um ministro-adjunto, um ministro do comércio e uma ministra da justiça para a Caixa Geral de Depósitos, para além de vários secretários de Estado; vários ministros e secretários de Estado para outras instituições, como o Banco Espírito Santo, o Banco Português de Negócios ou o Banco Privado Português.
Um secretário de Estado da saúde foi para a administração do hospital Amadora-Sintra, cujo contrato negociou; um secretário de Estado da energia para a REN, a privatizar; um secretário de Estado passou a gestor do Grupo Mello, fazendo um breve intervalo de três anos como ministro da saúde, para aí regressar, sendo esse o principal grupo privado da saúde no nosso País; um ministro do desporto e da administração interna está na Galp; um ministro das finanças e secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro na Iberdrola, Prisa/Media Capital, entre outras.
E podíamos continuar com referências a situações, nesta própria Assembleia, sobre a profusão de cargos e consultorias em seguradoras, bancos, grupos económicos da saúde e da área social, casinos, empresas de comunicações e tudo o mais que se esconde nas sociedades de advogados.
Até temos um Deputado, porta-voz de um partido, e logo o mais representado, que é provedor das empresas de trabalho temporário e defende, claro está com toda a independência, que a legislação laboral devia ser ainda mais liberalizada.
Com tal panorama, multiplicado por diversos níveis de poder, não admira o estado a que o País chegou, com a profusão de decisões lesivas do interesse público tomadas por sucessivos governos.
São os sucessivos processos de privatizações, sempre favorecendo os adquirentes, que, muitas vezes, nada pagaram ou pagaram com o dinheiro do Estado; é a entrega de empresas fundamentais para os serviços públicos a grupos e accionistas privados; é a escandalosa impunidade da banca no aumento dos lucros e na diminuição dos impostos; é a subordinação do Estado ao domínio informático da Microsoft, que acabou, por exemplo, rapidamente com as veleidades de um secretário de Estado da justiça que queria - imagine-se! - aproveitar as vantagens do software livre.
Temos a entrega da rede viária e da Estradas de Portugal às grandes construtoras; temos a concentração das obras nas escolas em grandes pacotes para que só as grandes construtoras possam ter acesso a eles; temos o processo dos projectos de interesse nacional (PIN) e das regiões de turismo desenhados à medida dos interesses de projectos turísticos e imobiliários; tivemos a tomada de posição na Galp pelo grupo Amorim financiada pelos lucros que lhe seriam devidos no futuro enquanto accionista, que ainda não era, mas cujos lucros e dividendos lhe foram convenientemente antecipados; temos a repartição entre quatro ou cinco grupos económicos das parcerias público-privadas da saúde, com elevados prejuízos para o Estado; temos a Lusoponte a reivindicar direito a receber indemnização se o Estado quiser construir uma nova ponte sobre o Tejo, em Lisboa; temos um governo que vai desmantelando a ADSE e os direitos dos trabalhadores da Administração Pública e que depois suporta financeiramente, com uma convenção, o Hospital da Luz, de um grupo privado, o Grupo Espírito Santo; temos um QREN com um gestão altamente centralizada que deve estar já, no fundamental, repartido entre os grandes interesses económicos do nosso país, a coberto desta centralização; etc., etc., etc.
É evidente que há melhorias a fazer na legislação como o PCP já propôs.
É ridículo que a limitação de ingresso em empresas das áreas em que se governou só se aplique por três anos e apenas nos casos em que tenha havido privatizações ou benefícios directos financeiros e fiscais.
Mas não há legislação, por melhor que seja, que evite, por si só, comportamentos e decisões contra o interesse nacional.
Esta situação de promiscuidade mina os alicerces do Estado democrático, compromete a independência da decisão e dá justificadas razões para que o povo esteja descrente nos partidos que alternam na governação.
Pela nossa parte, não pretendemos dar lições de moral. Não, Srs. Deputados, o que pretendemos é dizer, com toda a clareza, que estamos perante um continuado ataque ao interesse público nacional.
É por causa destas decisões e da política de favorecimento dos grandes interesses económicos que se agravam as desigualdades. Há dinheiro para tudo isto que atrás referi, em que se consomem muitos milhões de euros, mas nunca há dinheiro para salários, para reformas, para investimento em serviços públicos, para as pequenas e médias empresas.
Não é possível calar a voz da indignação perante «o estado a que isto chegou», perante a colonização do Estado e dos seus recursos e decisões pelo poder económico. Afirmamos, com determinação, que isto não pode continuar.