Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-Geral, Mesa redonda «Produção nacional de embarcações e navios - O desenvolvimento do aparelho produtivo e do sector marítimo-portuário»

Produção nacional de embarcações e navios - O desenvolvimento do aparelho produtivo e do sector marítimo-portuário

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A discussão de hoje partiu de uma preocupação – a situação da produção nacional de embarcações e navios – para naturalmente derivar para as actividades que lhe estão a montante e a jusante, da siderurgia e electromecânica até ao sector da pesca, ao sector portuário, ao transporte de passageiros, à marinha de comércio, à marinha de recreio, às actividades marítimo-turísticas, à autoridade marítima ou à marinha de guerra.

O que é perfeitamente normal, pois a reconstrução do aparelho produtivo nacional exige essa leitura, exige que se olhem para as diferentes fileiras produtivas e se veja, em cada caso, as suas relações e as potencialidades e necessidades nacionais.

É que a primeira coisa com que é preciso acabar é com a subsidiação financeira pelo Estado dos grupos económicos. E que, de certa forma, se reflecte no último ano de discussão sobre o PRR, onde a abordagem partiu do montante dos fundos disponibilizados e se desenvolveu essencialmente em torno de como os fatiar e a quem distribuir as fatias. Ora, a abordagem sobre os grandes investimentos do nosso País tem que começar pela identificação das necessidades nacionais, dos défices nacionais, e das potencialidades nacionais.

E, desde logo, é preciso interiorizar que não é a mesma coisa ir às compras ao estrangeiro ou organizar a produção em Portugal dos bens e mercadorias de que necessitamos. Deram aqui o exemplo dos barcos da Transtejo. O Governo actuou exclusivamente preocupado com o tipo de energia que iria colocar os motores a funcionar, decidindo arriscar-se numa solução técnica de muito discutível maturidade. Com essa sua prioridade, empurraram o trabalho para ser realizado no estrangeiro em vez de num estaleiro nacional. Em vez de comprar dez barcos, o País podia e devia ter construído dez barcos. Com o mesmo investimento teríamos criado umas centenas de postos de trabalho, viabilizado por uns anos um importante estaleiro nacional ou contribuído para aumentar as encomendas das empresas que trabalham para a indústria naval. Com o mesmo investimento reduzíamos um défice – o da falta de embarcações para o transporte de passageiros no Tejo – e ainda reduzíamos o défice de empregos sem aumentar o défice da balança comercial.

De facto, o investimento é público, feito por uma empresa pública mas estaria a viabilizar uma empresa privada. É que, ao contrário do que tem gritado toda a direita, que exige que os fundos comunitários sejam oferecidos em subsídio às empresas privadas, principalmente às maiores, o investimento público, se bem direcionado, também contribui para a dinamização das actividades produtivas do sector privado de que o País também precisa.

Uma outra questão que aqui trabalhámos é a da vocação marítima nacional com as suas enormes potencialidades: temos a maior zona económica exclusiva na União Europeia; possuímos mais de mil quilómetros de costa atlântica; temos dois arquipélagos que constituem outras tantas Regiões Autónomas; temos portos com condições naturais excepcionais, das águas profundas de Sines ao extraordinário estuário do Tejo; somos o terceiro maior consumidor mundial (per capita) de pescado.

Apesar disso, o nosso défice comercial nas pescas é superior a mil milhões de euros. Uma razão estruturante para esse défice é difícil de resolver e de facto não é culpa da política de direita: os portugueses gostam muito de bacalhau, e este é, no essencial, importado. Mas temos possibilidade de pescar mais peixe nas nossas águas e de promover um maior aproveitamento desses nossos recursos. Mas os sucessivos governos vivem ajoelhados aos pés da Política de Pescas Comum e sem apostarem na pesca nacional.

A nossa frota de pesca tem uma média etária de 33 anos. As nossas quotas de produção estão subdimensionadas nuns casos – como a sardinha e o espadarte – e não são plenamente utilizadas noutros casos – como o carapau e a cavala. Os nossos navios de investigação científica, que são fundamentais para avaliar stocks e monitorizar a evolução e o equilíbrio de recursos marinhos e para alargar o conhecimento e a capacidade produtiva, passaram os últimos dez anos essencialmente encostados, ora por falta de tripulação, ora por falta de orçamento, ora por falta de investigadores, enquanto as políticas submetidas ao défice e aos critérios da troika nos faziam poupar uns milhares para depois perder uns milhões de euros.

É preciso deixar de falar tanto no Mar e começar a aproveitar esse recurso fundamental. Começando por organizar e planificar a exploração dos nossos recursos piscícolas. A modernização da frota de pesca é uma prioridade: para aumentar a sua capacidade produtiva, mas também para melhorar a sua segurança e as condições de trabalho a bordo. E esse trabalho deve ser feito no essencial num conjunto de empresas e estaleiros nacionais, muitos dos quais de pequena e média dimensão.

Da mesma forma, o navio de investigação científica que precisamos de construir não pode ter como única condicionante que o seu motor funcione a amónia dita verde, como consta no chamado Plano de Recuperação e Resiliência. Para o PCP a primeira condicionante é que o navio tem que ser projectado e construído em Portugal, e tem que ter, desde o início, uma tripulação e uma equipa de técnicos e cientistas capazes de o rentabilizarem ao serviço do País.

É que importa não esquecer tão depressa as conclusões tiradas recentemente sobre a evolução da quota da sardinha: tivesse o Governo português agido de outra forma e desde 2018 que poderíamos ter aumentado a quota da sardinha muito significativamente sem prejudicar a necessária protecção do recurso. Falamos de milhares de toneladas de sardinha que não foram pescadas e que o podiam ter sido. De rendimentos para pescadores e armadores que foram perdidos. De custos para o Orçamento de Estado, nomeadamente de apoios sociais, que poderiam não ter sido necessários. Da obrigação à importação de sardinha para a indústria conserveira que podia ter sido capturada em Portugal.

Como aqui tão bem foi ilustrado, muito se poderia dizer em relação à dimensão portuária e da Marinha Mercante. Gastamos em fretes, em alugueres, aquilo que o País não investe na (re)construção de uma Marinha Mercante.

A nossa Marinha de Comércio encontra-se reduzida a dez pequenos armadores nacionais, que operam com 49 navios próprios ou afretados, apenas 37 destes com bandeira nacional e, destes, pelo menos três operadores e 23 navios não são, de facto, empresas nacionais. Uma frota com uma média etária de quase 20 anos e que emprega apenas 605 trabalhadores.

Mesmo nos nossos portos, no essencial, são empresas e navios estrangeiros que asseguram os serviços entretanto mercantilizados e liberalizados, seja no abastecimento a navios, seja nos reboques e lanchas, seja nas dragagens.

E mesmo o que é público e está ainda entregue às administrações portuárias, tem uma gestão das suas frotas completamente desarticulada, desligada da produção nacional, e que resulta no lançamento tardio e casuístico de concursos, que a mais das vezes acabam com a compra no estrangeiro em vez da construção em Portugal. Foi assim recentemente com a embarcação adquirida pelo porto de Sines em França e pelo porto de Lisboa na Turquia.

Neste nosso debate – e nos trabalhos que o antecederam – identificámos um conjunto vasto de necessidades e possibilidades. Necessitamos de um rebocador de alto mar, de construir dragas capazes de dotar uma reconstruída empresa nacional de dragagens, de construir navios para as operações entre as nossas ilhas atlânticas, destas com o Continente e entre os vários portos nacionais, de nos equiparmos com barcaças para a cabotagem fluvial, de substituir os navios fretados que nos nossos portos asseguram as operações de abastecimento, e tantos outros exemplos.

As necessidades são muitas, é verdade. O atraso é grande. Mas a programação e planificação da satisfação gradual dessas necessidades tem o potencial de garantir uma base produtiva a um conjunto de estaleiros de diversa dimensão que seria fundamental para alavancar a sua própria intervenção no mercado.

Ouvimos aqui também os trabalhadores do Arsenal do Alfeite. Num momento em que a nossa Marinha tem barcos a reparar na Holanda que podiam e deviam ser reparados no Alfeite. Quem conhece o processo sabe que o Alfeite está a pagar a factura da sua colocação no «mercado», da sua transformação em Sociedade Anónima a preparar uma privatização.

É o Estado português, e em concreto os seus sucessivos governos, que têm tratado de liquidar a capacidade da nossa Marinha de Guerra de proceder à reparação da sua própria frota. Adiam-se investimentos de pouca monta indispensáveis para assegurar a capacidade produtiva – como é o caso aqui trazido do alargamento da Doca Seca – e depois gastam-se essas poupanças a comprar serviços na Holanda.

Ouvimos os trabalhadores do Estaleiro de Viana, também eles vítimas de uma estratégia de sabotagem da actividade do próprio Estaleiro para empurrar para a sua privatização. Como não lembrar a triste história do navio Atlântida, e o triste papel do Governo da República e do Governo Regional dos Açores.
Lemos ainda a resposta do Governo a uma pergunta do PCP na Assembleia da República a dizer o quanto lhe é indiferente o futuro do Estaleiro do Mondego.

É impressionante. Quem ouve PS e PSD a falar de reindustrialização e dos objectivos da UE às vezes até parece que mudaram o discurso. Que é preciso reindustrializar o País. Mas é sol de pouca dura, pois na realidade, perante os processos práticos de decisão política, continuam a comportar-se da mesma forma, ou seja: a permitir a destruição, degradação e envelhecimento do nosso aparelho produtivo, desperdiçando todas as oportunidades de o valorizar.

Foram sinalizados nesta iniciativa um conjunto de compromissos de trabalho do nosso grupo parlamentar. É um trabalho importante. São propostas justas e necessárias, concretizáveis no curto prazo, e que a serem aprovadas iriam valorizar o aparelho produtivo nacional e combater vários dos défices do País.
São simultaneamente exemplo concreto da política patriótica e de esquerda de que o nosso País urge.

São igualmente um desafio ao PS e ao Governo. Mais um. Estão aqui um conjunto de propostas que contribuiriam para inverter o rumo liberalizante que tem sido imposto ao sector. Está o Governo disponível a apoiar estas medidas ou vai continuar submetido à União Europeia, aos seus critérios e em convergência efectiva na política económica com o PSD, o CDS e as suas derivações?

E em termos de investimento público, está o Governo disponível em apostar na reconstrução do aparelho produtivo nacional de embarcações e navios?
Falamos de cerca de 100 milhões de euros para a modernização e ampliação dos estaleiros navais nacionais, e cerca de 250 milhões de euros anuais nos próximos dez anos em apoios públicos à construção e modernização de navios portugueses em Portugal. Mais uma vez, parece muito e é muito dinheiro.

Mas mais de metade deste dinheiro está já previsto ser gasto, na compra «no mercado» de navios e embarcações e o resto está previsto ser gasto na aquisição de serviços a navios das multinacionais. Está o Governo disposto a investir na construção das embarcações e navios necessários a Portugal, e na reconstrução do aparelho produtivo nacional, ou vai continuar a limitar-se a comprar o que a União Europeia lhe autorize comprar, da forma e a quem esta autorizar?

Para o PCP o caminho tem que ser obrigatoriamente outro, diferente do que tem sido imposto. Mobilizando os recursos públicos necessários, sejam estes provenientes do PRR ou de outros fundos comunitários, ou sejam eles provenientes directamente do Orçamento do Estado. É preciso investir em várias dimensões do nosso aparelho produtivo. Dos equipamentos e meios de transporte à energia, dos medicamentos aos alimentos, Portugal precisa de substituir importações por produção nacional.

Estas análises e propostas do PCP são a afirmação da possibilidade de um outro rumo para o nosso País. São a afirmação que não vivemos num País pobre e condenado ao atraso, mas que precisamos de nos organizar para aproveitar as riquezas nacionais. São a afirmação da necessidade de ruptura com a política de direita, de ruptura com a submissão à União Europeia, de ruptura com a mitologia neoliberal e o endeusamento dos mercados. São a afirmação da profunda confiança do PCP no povo português, na sua capacidade de luta e de trabalho, que são o melhor garante da soberania nacional e da possibilidade da construção de uma vida próspera, de um Portugal com futuro.

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