Intervenção de Bruno Dias na Assembleia de República, Reunião Plenária

É possível, é urgente, é indispensável, uma política alternativa, que defenda a ferrovia

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Senhora Presidente, Senhoras e Senhores Deputados,

Senhores membros do Governo,

Teoricamente, há hoje um amplo consenso sobre a importância da ferrovia. E dizemos “hoje” porque não esquecemos os anos em que PS e PSD alternavam alegremente na destruição da ferrovia nacional, no encerramento de linhas, na pulverização da CP, na destruição da Sorefame, na montagem de PPP que exauriram os recursos públicos, na liberalização da ferrovia a mando dos pacotes ferroviários da UE.

Mas mesmo agora, em que na teoria existe um consenso sobre a necessidade de investir na ferrovia, na prática, os investimentos arrastam-se, os concursos marcam passo, os financiamentos e os processos de recrutamento são bloqueados pelo Governo, e a ferrovia nacional continua a degradar-se em vez de responder às necessidades do país.

Sucedem-se atrasos, problemas e incidentes nas intervenções em curso na rede ferroviária nacional, a suscitar preocupações e perplexidades sobre as opções que estão a ser seguidas. São inúmeras as situações de comboios suprimidos por falta de pessoal ou por falha de material circulante.

Nas oficinas chega a haver situações aflitivas (algumas seriam até caricatas se não fossem tão graves). Não há peças e é preciso autorização para adquirir, depois vem a peça e falta pessoal para o trabalho. Em Guifões, há pouco tempo, estavam todas as rampas de acesso para cadeiras de rodas compradas – e a sua instalação continuava em suspenso, porque a prioridade era naturalmente a instalação dos rodados nos comboios.

As estações estão cada vez mais desguarnecidas, sem trabalhadores, sem informação afixada ou antecipada sobre a entrada de comboios.

Muitos dos problemas que existem hoje na operação ferroviária poderiam ser evitados se não houvesse uma separação entre CP e IP. Mas o Governo recusou-se sempre, e continua a recusar-se, a reverter a fusão da REFER com a EP.

É fundamental reconstruir a REFER, ligá-la à CP, reforçar a sua capacidade operacional na área do projeto, da fiscalização, da manutenção e até da construção.

A pergunta continua a colocar-se de forma incontornável: como é possível desligar desta forma a roda e o carril? De que serve eletrificar uma linha sem adquirir o material circulante elétrico para nela circular e para que o aumento e a modernização da oferta façam crescer a procura? Mas essa descoordenação continua a prejudicar a ferrovia nacional!

Está anunciado um ambicioso plano de investimentos na ferrovia. Mas, por exemplo, apenas 15% do Ferrovia 2020 está concluído, dois anos depois da data da sua previsível conclusão total.

O derrapar do investimento público foi uma estratégia permanente: anúncios e promessas sistemáticas de milhões, que são repetidos uma e outra vez, até que se dá o anúncio do projeto da obra, o anúncio do caderno de encargos, o anúncio do lançamento do concurso, o anúncio do vencedor do concurso, a inauguração da primeira pedra, a inauguração do primeiro troço, a inauguração do segundo troço, até à eventual inauguração final.

Uma estratégia propagandística, de criar e gerir expectativas, e ao mesmo tempo, acumular esses milhões anunciados – mas não aplicados – para ir reduzindo o défice... à custa da ferrovia.

Na Linha do Norte (o principal eixo ferroviário do País) ocorreram, no início deste ano, quatro abatimentos em três semanas. Uma situação que é indissociável do sistemático recurso à subcontratação, aos concursos em que se contrata pelo preço mais baixo, em que até a fiscalização é feita em outsourcing – em que a competência técnica na operação ferroviária é gradualmente substituída por uma precária “gestão de contratos” à moda da IP, à moda liberal.

Por coincidência, no dia em estava marcado este debate, foi anunciado nos jornais que a CP obteve um resultado líquido positivo em 2022.

O resultado das empresas públicas de transportes é sempre o reflexo do seu modelo de financiamento. Nos anos em que o Estado as subfinancia, elas têm prejuízos, e acumulam dívida (como aconteceu com a CP ao longo de demasiados anos); quando estas são devidamente financiadas, obtêm resultados operacionais equilibrados.

Ora, perante esta perspetiva, ganha mais força a exigência de medidas que o PCP defende há muitos anos, como seja a resposta urgente às carências gritantes de pessoal em todas as áreas e o investimento nas oficinas e no reforço da oferta.

Desde logo, este resultado vem evidenciar a justeza e a importância de resolver o problema financeiro de fundo – que não foi criado pela CP, mas pelos sucessivos governos. É que o saneamento financeiro da CP, retirando da CP a dívida que o Estado nela parqueou, foi uma medida que o Governo PS prometia solenemente na véspera das últimas eleições, mas que continua por concretizar.

Só com uma CP una, pública e nacional será possível dinamizar uma política de promoção do transporte ferroviário, incluindo na vertente de construção nacional de material circulante, e da sua articulação com o equilíbrio territorial e o desenvolvimento do País.

Senhora Presidente, Senhoras e Senhores Deputados, Senhores membros do Governo,

Não é possível ter ferrovia sem ferroviários.

Em Portugal faltam ferroviários, na operação, na manutenção, na fiscalização, no projeto, na construção. Falta preparar a saída de muitos ferroviários que se aproximam da reforma e têm de transmitir o seu saber.

Falta formar, motivar e valorizar os ferroviários, desde logo valorizar a carreira do ponto de vista remuneratório, acabando com as políticas de congelamento ou redução salarial que estão a degradar as remunerações reais de um vasto conjunto de trabalhadores e técnicos altamente especializados.

Segundo dados da própria CP, 42,3% dos trabalhadores da empresa ganham até 960 euros. Mais de 82 por cento recebem menos de 1250 euros. As remunerações dos ferroviários estão na prática congeladas há quase 15 anos! Fala-se muito nas greves, mas fala-se pouco nesta realidade, que é a que leva os ferroviários à luta.

Sem esquecer os muitos milhares de trabalhadores, eles também ferroviários, que foram empurrados para prestadores de serviços, na limpeza, na vigilância, na manutenção e nos bares dos comboios – cuja justa luta daqui saudamos, e cuja integração na CP se coloca como exigência que o Governo não pode ignorar.

A ferrovia que Portugal precisa tem de assentar na criação de emprego de qualidade. 

Sra. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, Srs. membros do Governo, isto não pode continuar assim – e não tem de ser assim! Não estamos condenados a esta degradação. É possível, é urgente, é indispensável, uma política alternativa, que defenda a ferrovia, que defenda o interesse das populações, o interesse do país. É disso que iremos tratar neste debate que o PCP convocou.

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