Projecto de Resolução N.º 590/XIV/1.ª

Por um serviço público e universal de telecomunicações em Portugal: 5G, oportunidade para mudar de rumo

O Governo adotou a 7 de fevereiro de 2020, a Resolução do Conselho de Ministros 7-A/2020 que «Aprova a estratégia e calendarização da distribuição da quinta geração de comunicações móveis».

É da mais elementar cautela que, antes de avançar para uma etapa na evolução tecnológica nas telecomunicações, como inegavelmente é o 5G, a Assembleia da República faça o balanço do regime até hoje implementado para a utilização do espectro radioelétrico que é domínio público do Estado.

A essência desse regime, definida na Lei 5/2004, de 10 de fevereiro, com a sua redação atual, é a da sua gestão por um regulador, colocando as frequências à disposição de operadores privados que depois vendem serviços. Além do que, com a privatização da PT, o Estado entregou aos grupos económicos privados toda a atividade operacional, limitando-se a regular, estimular, financiar e garantir «a concorrência leal» entre os operadores privados.

Este modelo, amplamente estimulado pela própria União Europeia, não serve o interesse nacional, serve apenas o interesse dos grandes grupos económicos que muitos confundem com o interesse nacional.

Algumas das consequências deste modelo são bem evidentes:

  • No plano da universalidade de acesso, ela continua longe de ser atingida, com vastas regiões excluídas de um acesso minimamente eficaz às Comunicações Eletrónicas;
  • No plano laboral, de um sector assente no emprego estável e de qualidade, passou-se para uma selva onde lutam centenas de operadores, empreiteiros e subempreiteiros, um modelo que fez crescer a parte da riqueza criada que é apropriada pelo capital à custa da total desregulação, precariedade e degradação da vida dos trabalhadores e suas famílias;
  • No plano dos preços, os portugueses pagam um serviço excecionalmente caro, quer em termos nominais e absolutos quer em termos relativos;
  • O Estado não consegue ver satisfeitas as suas necessidades estratégicas.

De acordo com os dados disponibilizados pela Comissão Europeia, Eurostat, etc., Portugal:

  • Registou um aumento de 7,6 por cento do “IHPC/índice harmonizado dos preços no consumidor” entre dezembro de 2009 e dezembro de 2019 (sendo o segundo país com maior aumento), face a uma média da União Europeia que foi de diminuição de 9,9 por cento no mesmo período;
  • Encontra-se na 22.ª posição (em 23 países da UE!) em termos de penetração de banda larga móvel;
  • Apresenta uma cobertura inferior à média dos países da União Europeia – e uma disponibilidade de serviço 4G de apenas 83%;
  • Encontra-se entre os três países com menor débito médio de download;
  • Encontra-se no conjunto de países onde a velocidade experimentada é das mais baixas.

Esta realidade não pode ser disfarçada pela expansão objetiva que o sector sofreu, e que foi essencialmente ditada pela enorme evolução tecnológica global, e não pelas opções tomadas no plano nacional. Aliás, é sempre oportuno recordar que antes da implementação do atual modelo, o país detinha através da PT pública uma situação privilegiada e de ponta no plano tecnológico.

O Código Europeu das Comunicações Eletrónicas (Diretiva 2018/1972) de que o Governo e a ANACOM têm preparado a transposição para a legislação nacional, vai no mesmo sentido das políticas até hoje implementadas, e não deixará de produzir o mesmo tipo de resultados.

A colocação do espectro radioelétrico ao serviço da acumulação privada de capital e o fim do operador público explicam muitas das dificuldades objetivas sentidas nos últimos anos pelo Estado português no que respeita às telecomunicações. Importa recordar, ainda que de forma sumária, os vários negócios ruinosos em sucessivas PPP ao longo dos anos:

  • A PPP da Televisão Digital Terrestre, entregue à PT, com uma oferta de canais muito inferior ao potencial, e objetivamente contribuindo para o aumento do número de clientes dos operadores privados. E onde nem sequer os bons propósitos da lei 2/2017 foi possível concretizar
  • A PPP do Serviço Universal de Comunicações Eletrónicas (vertente Serviço de Telefone Fixo), que custou 9,8 milhões de euros em 5 anos e não ultrapassou os dois (!) utentes, e que deveria garantir que «um conjunto mínimo de prestações deve estar disponível a um preço acessível para todos os utilizadores, independentemente da sua localização geográfica», sendo que as prestações deveriam «evoluir por forma a acompanhar o progresso da tecnologia», e que oferece um serviço caro de telefone fixo com a velocidade de transmissão de dados limitada a 48 Kbs, uma oferta irrelevante para não concorrer com os privados, e que agora se pretende terminar porque «o mercado já resolve e mais barato».
  • A PPP do SIRESP, que custou ao Estado mais de 500 milhões de euros, e que nunca dotou o Estado com o prometido Sistema Integrado de Redes de Emergência e Segurança de Portugal.

Multiplicaram-se os escândalos sobre a correta utilização dos recursos públicos e ficou patente a dificuldade de salvaguardar o próprio interesse público em questões estratégicas como a segurança das populações e o acesso universal às redes.

Com a Resolução do Conselho de Ministros 7-A/2020 o Governo pretende «Identificar e adotar as necessidades de interesse público relativas a segurança, defesa nacional e proteção civil relacionadas com as redes 5G, nomeadamente no respeitante ao futuro das redes de emergência». Trata-se de mais uma declaração de boas intenções, pois como a experiência já demonstrou só a propriedade e gestão pública dessas redes pode assegurar a defesa do interesse nacional, mas isso a Resolução não aponta, e a segurança nacional não se assegura com palavras.

Aliás, as únicas medidas relativas à segurança que não são meras declarações de intenções para tentar fechar evidentes lacunas do processo são as medidas relativas à «cibersegurança», ou seja, aquelas em que o Estado participará para assegurar a segurança das redes privadas em construção. Mais uma vez, não para assegurar a segurança pública, mas para colocar o Estado ao serviço da acumulação privada.

A Resolução do Conselho de Ministros aponta como «sendo secundário o encaixe financeiro» derivado deste leilão, sendo que «o principal interesse nacional é atingir uma cobertura seletiva que abranja agentes estratégicos da transição digital e competitividade e que seja territorialmente coesa». Sem dúvida que a questão principal não é o encaixe financeiro. Mas não se pode ignorar a valor de mercado daquilo que se está a licenciar e que pode simplesmente resultar na oferta aos operadores privados de centenas de milhões de euros. Importa recordar, por exemplo, que na Alemanha o encaixe com o leilão do 5G foi de 6,5 mil milhões de euros.

É incontornável, em todo o caso, o facto de que o Governo, na Resolução do conselho de Ministros em causa, aponta para uma cobertura da rede 5G com uma formulação que é a todos os títulos uma fraude política.

Quando o Governo assume como único critério de cobertura das redes 5G a circunstância de «estarem dotados com redes 5G – os concelhos (…)» etc., e quando se conhece a situação atual em que se encontram a imensa maioria dos territórios dos concelhos – do interior do País e das chamadas regiões de baixa densidade em particular – com a cobertura clamorosamente insuficiente das redes de telecomunicações.

O processo de introdução em Portugal da tecnologia 5G tem um enorme potencial. Pode assegurar o acesso em todo o território nacional a comunicações eletrónicas e de voz com qualidade, alargando a coesão territorial e potenciando o desenvolvimento do interior. Pode ser compatibilizado com o alargamento da oferta pública e gratuita de televisão. Pode assegurar a existência de redes de emergência eficazes para a defesa nacional e a proteção civil. Pode potenciar um desenvolvimento importante na área dos serviços públicos. Pode contribuir decisivamente para a dinamização da economia e a valorização do trabalho.

No entanto, todas estas potencialidades só serão libertadas se o sector das telecomunicações for antes libertado do espartilho que representa a sua colocação ao serviço da acumulação e centralização de capital.

O Governo afirma no preâmbulo da RCM: «Em matéria de comunicações móveis, deve assegurar-se que o país dispõe, o mais rapidamente possível, da cobertura mais vasta em rede 5G standalone, de uma forma que favoreça a coesão territorial. Não sendo possível garantir este nível de cobertura de imediato, deve em qualquer caso aproveitar-se esta oportunidade para procurar alargar a cobertura do território através das atuais redes 4G, criando-se incentivos para esse efeito.»

Ou seja, o Governo pretende favorecer uma estratégia de rutura tecnológica, em que a introdução do sistema 5G se opere, não a partir das condições propiciadas pelas tecnologias atuais (e desde logo do alargamento da sua cobertura e utilização), mas sim pela contraposição do “novo” relativamente ao “antigo”. Entretanto, logo a seguir admite “incentivos” aos operadores (de forma totalmente desconexa e alheia ao processo de implementação do 5G), incentivos esses que no ponto 4 da RCM surgem sob a forma de «mecanismos, nas taxas anuais de utilização do espectro, que beneficiem os operadores que se comprometam a assegurar num prazo a determinar, individualmente ou em conjunto com outros, a cobertura em 4G da totalidade das escolas públicas de todos os níveis de ensino e da linha ferroviária do Norte».

O que isto significa é que o Governo, perante níveis de cobertura, fiabilidade e disponibilidade da rede 4G que estão hoje escandalosamente aquém do que seria exigível, coloca como objetivo nacional nesta matéria assegurar que o 4G venha a cobrir... as escolas e a linha do Norte. Num prazo a determinar! E com contrapartidas de benefícios aos operadores! Estamos perante uma opção política de total subserviência para com os grupos económicos que hoje dominam o sector, que não pode deixar de ser denunciada.

Entretanto, importa não ignorar a constituição de um monopólio privado no controlo das redes de estações emissoras e de base, atualmente em curso.

Num primeiro momento, a Cellnex adquiriu o operador português de torres de telecomunicações OMTEL por 800 milhões de euros. Deste valor, 200 milhões de euros são relativos à venda de 25% da participação que a Meo tinha na empresa que resultou da venda das torres da antiga PT. Os restantes 75% estavam desde setembro de 2018 nas mãos do consórcio do qual faz parte a Morgan Stanley Infrastructure Partners e a Horizon Equity Partnee.

Esta última empresa foi constituída em 2017 e tinha como administradores Sérgio Monteiro e António Pires de Lima. Sérgio Monteiro foi secretário de Estado das Obras Públicas e António Pires de Lima ministro da Economia no Governo PSD/CDS de Passos Coelho e Paulo Portas. Ambos tinham a tutela das telecomunicações. Na altura, a empresa que agregou as torres de comunicações da Meo foi avaliada em 660 milhões de euros.

Mais recentemente, depois de ter adquirido a OMTEL no início do ano, a empresa espanhola Cellnex chegou a acordo com a NOS para adquirir 100% da NOS Towering, a empresa que gere cerca de dois mil torres de telecomunicações, por 550 milhões de euros.

Estamos perante uma operação de concentração num monopólio privado desta infraestrutura, com todas as implicações para o futuro do sector das telecomunicações e com todas as responsabilidades dos ex-governantes do PSD/CDS-PP nesse processo.

Perante toda esta situação, perante os desmandos deste oligopólio no sector das telecomunicações e as consequências da sua impunidade, com a cumplicidade dos sucessivos governos, desde logo o atual, a resposta do Estado no plano político e regulamentar tem duas abordagens colocadas a propósito da introdução da tecnologia 5G.

Uma abordagem, por parte das autoridades / entidades administrativas independentes com particular competência nesta matéria (nomeadamente a Autoridade Nacional de Comunicações e a Autoridade de Concorrência), tem a resposta aos problemas essencialmente em duas vertentes – por um lado, responsabilizar os “incumbentes”, isto é, os grupos económicos com poder de mercado, com um conjunto de exigências na melhoria do serviço prestado (principalmente no sistema 4G) e por outro lado, facilitar a entrada de novos operadores ao sector em sede de leilão do espectro radioelétrico, quer por via de mecanismos de acesso ao leilão, quer por via de descontos específicos na licitação.

Outra abordagem, por parte do Governo, consiste essencialmente em repudiar as propostas da ANACOM e AdC, com uma agressividade e um ataque político verdadeiramente inéditos na história destas autoridades por parte de qualquer titular de cargos públicos, e abrir novos compromissos de “incentivos” e “benefícios” aos mesmos do costume. Com efeito, o Governo assumiu plenamente uma posição de alinhamento com os operadores que dominam o sector, rejeitando e combatendo qualquer perspetiva de responsabilização aos atuais detentores de espectro por melhoramentos do serviço de telecomunicações – e muito menos qualquer “abertura à concorrência de novos entrantes” conforme defendida pelas referidas autoridades.

Para o PCP, esta posição do Governo é profundamente esclarecedora quanto aos interesses que objetivamente são defendidos e servidos pelas suas opções políticas. Quando a ANACOM e a AdC apontam para medidas que comprometem os interesses do oligopólio, o Governo chega ao ponto de ameaçar – em debate parlamentar – com “alterações no plano legislativo” face às decisões tomadas no plano regulatório.

No entanto, a posição do PCP é de sublinhar que as opções políticas de fundo nesta matéria terão necessariamente de ir além dos mecanismos regulatórios em sede de leilão do espectro. O que é urgente e indispensável para o País neste domínio é a reconstituição de um operador público, que seja efetivamente responsabilizado pela definição e concretização de uma estratégia de modernização e desenvolvimento do sector.

A experiência do País neste sector demonstra que só há uma forma de assegurar o interesse nacional neste tipo de operações: não enveredar por privatizações e PPP, e manter a propriedade pública sobre o processo, remunerando o capital privado por aquilo que ele aporte de concreto e onde aportar alguma coisa de concreto. O que implicaria que o desenvolvimento do 5G em Portugal ocorresse através de uma empresa pública, preferencialmente renacionalizando a PT, que estabelecesse parcerias para a exploração do 5G, mas mantendo sempre o controlo público sobre o processo, as redes e a sua exploração.

Assim, tendo em consideração o acima exposto, ao abrigo da alínea b) do artigo 156º da Constituição da República e da alínea b) do número 1 do artigo 4º do Regimento da Assembleia da República, os Deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português, propõem que a Assembleia da República adote a seguinte Resolução:

A Assembleia da República, nos termos do n.º 5 do artigo 166º da Constituição da República, resolve recomendar ao Governo que:

  1. No contexto da introdução da tecnologia 5G, e considerando a soberania e domínio público sobre o espectro radioelétrico, desencadeie e opere uma mudança estratégica no desenvolvimento do sector das telecomunicações.
  2. Aposte na reconstrução do operador público e num serviço público de telecomunicações que garanta uma oferta de qualidade e economicamente acessível nas comunicações telefónicas, eletrónicas e de televisão, ao invés de um suposto “mercado concorrencial” dominado por um oligopólio de multinacionais.
  3. Cancele o leilão do direito de utilização do Domínio Público sobre o espectro radioelétrico, decretando a sua gestão e exploração pública, e desenvolvendo, quando necessário e se necessário, parcerias com o sector privado, mas sem lhes entregar o controlo e gestão das redes.
  4. Desenvolva, a par da introdução em Portugal do sistema 5G, e no aproveitamento dos sistemas existentes, um Serviço Universal de Comunicações Eletrónicas, apontando como metas, a redução de preços e, no prazo de dois anos, a cobertura total da população nacional para comunicações móveis de voz e a cobertura do serviço de banda larga móvel a 100 Mbps para 98% do território nacional, abrangendo a totalidade da rede ferroviária nacional e dos IP rodoviários.
  5. Impeça a constituição de um monopólio privado no controlo das redes de estações emissoras e de base atualmente em curso; e consolidar no operador público a gestão e o desenvolvimento desse sistema, a par das redes de fibra ótica, cabos submarinos e outros sistemas críticos, com o envolvimento da atual IP Telecom.
  6. Promova a máxima incorporação nacional no desenvolvimento e aplicação das tecnologias a adotar no processo de introdução dos sistemas 5G, desde logo com a participação e envolvimento do Sistema Científico e Tecnológico Nacional, assim como das empresas nacionais.
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