Intervenção de

Políticas de Saúde - Intervenção de António Filipe na AR

Interpelação ao Governo sobre "Políticas de Saúde"

 

Sr. Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Sr.as e Srs. Deputados:

O que o Sr. Ministro da Saúde aqui veio hoje dizer, em abono da política do seu Governo, é, literalmente, mais do mesmo.

Talvez por ser criticado por falar muito - há até um conhecido comentador da nossa praça que o censura por falar demais e por, com isso, causar frequentes embaraços ao Governo -, o Sr. Ministro achou por bem limitar-se hoje a repetir o que já tinha dito.

Já os Srs. Deputados do Partido Socialista, mais do que defender a bondade das políticas do seu Governo, preferem atacar quem as critica.

Isto pela simples razão de que não conseguem demonstrar o que é que os portugueses beneficiaram com a política de saúde do seu Governo.

Mas muito mais importante do que o que o Sr. Ministro ou os Srs. Deputados possam dizer é o que os portugueses sabem e sentem. O que os portugueses sabem e sentem na pele é a falta de médicos de família, que afecta centenas de milhares de portugueses; são os meses de espera por uma cirurgia, que afectam mais de 200 000 cidadãos; são os encerramentos de dezenas de SAP por todo o País, deixando as populações, particularmente as do interior, a uma distância de uma urgência que pode, por vezes, representar a diferença entre a vida e a morte; foram os encerramentos de maternidades, impondo aos serviços públicos um critério que não se aplica aos privados; é o encerramento de urgências hospitalares, deixando mais de um milhão de portugueses a mais de 60 minutos de uma urgência polivalente; são os centros de saúde em prédios de habitação degradados, sem elevador e sem condições para fazer passar uma maca; são os aumentos galopantes das taxas moderadoras; é a imposição de taxas moderadoras nos internamentos hospitalares; é a carência de recursos humanos no Serviço Nacional de Saúde.

São, ainda, os medicamentos que, segundo dados do INE hoje mesmo publicitados, aumentaram 6,7% para os consumidores, no último trimestre de 2006, devido ao fim da majoração de 10% da comparticipação dos genéricos e à redução de comparticipações em outros medicamentos. É o Governo a anunciar uma baixa de 6% e o INE a anunciar uma subida de 6,7% nos custos dos medicamentos.

Se perguntarmos o que beneficiou a grande maioria dos portugueses com a política de saúde deste Governo, a resposta é muito simples: nada. Mas se perguntarmos o que ganharam ou esperam ganhar com esta política os grupos económicos, que esfregam as mãos com o negócio da saúde, a resposta é igualmente simples: ganham muito e esperam ganhar ainda mais.

Com a política deste Governo, a saúde é cada vez menos um direito de muitos e cada vez mais um negócio de alguns.

O Serviço Nacional de Saúde é uma das mais importantes conquistas democráticas do nosso povo, responsável por um melhoramento sem precedentes dos indicadores de saúde do nosso país, que aumentou significativamente a nossa esperança média de vida e nos colocou entre os 12 melhores na prestação de cuidados de saúde à população.

O Governo não pode deixar de admitir este facto, mas, em vez de se orgulhar dele e de fazer o que lhe compete para melhorar o que pode e deve ser melhorado, está a pôr em prática uma política de degradação e de destruição do Serviço Nacional de Saúde.

Na falta de argumentos convincentes para justificar as suas medidas, o Governo escondese por detrás de estudos devidamente encomendados que, sob uma aparência científica, chegam às conclusões a que o Governo quer chegar. Na base de estudos, fecham maternidades públicas onde, depois, abrem privadas. Na base de estudos, fecham urgências e SAP, o que deixa as populações ainda mais isoladas e desamparadas. Na base de estudos, não se constroem hospitais públicos, mas vão nascendo, como cogumelos, hospitais e clínicas privadas.

O traço fundamental da política de saúde deste Governo é o seu compromisso ideológico com a privatização dos serviços de saúde: destruir o Serviço Nacional de Saúde, para que os grupos económicos privados o possam substituir em seu proveito e com grande prejuízo para a grande maioria da população. Tudo, é claro, em nome da defesa do Serviço Nacional de Saúde. É caso para dizer que, com amigos destes, o Serviço Nacional de Saúde não precisa de inimigos.

Mesmo depois da experiência do Hospital Amadora/Sintra, que constitui um dos mais escandalosos exemplos de delapidação do erário público e de promiscuidade entre funções públicas e interesses privados, o Governo não só não arrepia caminho como insiste na receita e ameaça entregar nas mãos dos grupos económicos privados não apenas os hospitais mas também os centros de saúde das suas áreas de influência.

Os senhores podem delapidar recursos públicos a encomendar os estudos e a comprar as conclusões que quiserem, mas não conseguem ocultar que a mola real da vossa política são os compromissos assumidos com os grupos privados da saúde - e os factos estão aí para o demonstrar.

Não nos venham dizer que a política do Governo é inevitável. Se houvesse políticas inevitáveis, os governos não eram precisos para nada. Nem nos venham dizer que a vossa política é necessária para cumprir as obrigações de equilíbrio orçamental que Portugal assumiu perante a União Europeia. É que, mesmo que déssemos de barato - e não damos - que a redução do défice fosse o alfa e o ómega da política nacional, como se não houvesse mais vida para além do Orçamento, não há nada que nos possa obrigar a que a redução do défice seja feita à custa do direito à saúde dos que menos têm e que menos podem.

O Sr. Ministro dizia um destes dias, com a incontinência verbal em que por vezes resvala, que a taxa moderadora diária no internamento hospitalar era o equivalente a um bilhete de cinema, como se o doente pudesse escolher entre a cama do Curry Cabral e a poltrona do Monumental.

O Governo afirma, repetidamente, que os que podem devem pagar os serviços de saúde.

Este é um Governo muito preocupado em fazer pagar aqueles que considera que podem pagar.

Acaba com os Serviços Sociais do Ministério da Justiça; retira aos familiares dos militares e dos profissionais das forças de segurança o direito a recorrer aos Sistemas de Assistência na Doença aos Militares; acaba com a Caixa dos Jornalistas; aumenta as taxas moderadoras; cria novas taxas moderadoras; faz com que os preços dos medicamentos «baixem para cima»; faz com que muitos portugueses percam direitos de há muito adquiridos; faz com que muitos portugueses, que não são indigentes, mas que estão a braços com situações de sobreendividamento, com baixos salários, ou com os orçamentos cada vez mais reduzidos devido ao aumento de todos os bens essenciais, se vejam privados do acesso a cuidados de saúde.

É essa a nossa diferença, Sr. Ministro: o senhor preocupa-se com os que podem pagar; nós preocupamo-nos com os que não podem. Aplausos do PCP.

Uma outra tese muito recorrente é a de que as medidas são boas mas foram mal explicadas. O Governo não soube explicar a razão do fecho das maternidades, nem dos SAP, nem das urgências - e, por isso, as  populações protestam. O Governo esforçou-se, mas as pessoas não entenderam.

Não, Sr. Ministro, os cidadãos que contestaram, e contestam, as suas medidas não o fazem por falta de esclarecimento; fazem-no porque sabem muito bem as consequências dessas medidas na sua própria vida.

As pessoas têm direito a ter acesso a cuidados de saúde e, quando os serviços que os prestam são encerrados, esse direito não se assegura com explicações.

Na política como na vida, governos, partidos e indivíduos demonstram aquilo que são, não necessariamente em função do que afirmam ser, mas em função do que pensam e do que fazem. Um Governo que faz o que a direita pensa, o que a direita quer e o que a direita aplaude, pode dizer o que quiser a seu respeito, mas de esquerda não é, seguramente.

Quando lhe faltam melhores argumentos, o Governo da dita «esquerda moderna» recorre ao mais velho e estafado dos truques: quem critica a política do Governo é porque quer deixar tudo na mesma. Mas para que o Sr. Ministro não venha, mais uma vez, ainda hoje, recorrer a esse truque, deixamos-lhe, aqui, um desafio: não deixe tudo na mesma e mude muita coisa que deve ser mudada.

Acabe, por exemplo, com as taxas moderadoras no Serviço Nacional de Saúde, que pouco acrescentam ao financiamento do sistema e são um encargo que pesa aos cidadãos de menores recursos.

Alargue o mercado dos medicamente genéricos, aumente a sua divulgação e incentive a sua prescrição. Acabe com o sistema de preços de referência ou, pelo menos, introduza uma cláusula de salvaguarda para garantir que o utente não seja prejudicado na comparticipação pelo facto de o médico não autorizar a prescrição de genéricos.

Alargue a lista de medicamentos, para doenças crónicas e degenerativas, comparticipados a 100% e, já agora, no que se refere à comparticipação especial de 15% para as pessoas de menores recursos, aplique o Simplex, em vez de criar entraves burocráticos para impedir essas pessoas de beneficiar do que têm direito.

Aprove uma lei de gestão de serviços de saúde em que os gestores sejam seleccionados por concurso público e não por compadrio.

Sr. Presidente e Srs. Deputados,

O tempo disponível não me permite multiplicar os exemplos, mas o desafio aqui fica: Srs. Membros do Governo, não deixem tudo na mesma, mas façam o que não fizeram até agora. Façam alguma coisa em defesa do Serviço Nacional de Saúde; façam alguma coisa em benefício do direito à saúde dos portugueses; façam alguma coisa que possam dizer, sem corar, que é de esquerda.

Enquanto o não fizerem, e persistirem nesta política, continuarão a deparar com a resistência das populações e terão, da nossa parte, a mais firme e convicta oposição.

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