Projecto de Resolução N.º 1573/XII/4.ª

Pelo Reforço dos cuidados de saúde de proximidade e pela resolução urgente dos constrangimentos existentes nos cuidados de saúde primários

Pelo Reforço dos cuidados de saúde de proximidade e pela resolução urgente dos constrangimentos existentes nos cuidados de saúde primários

I A realidade dos Cuidados de Saúde Primários

A criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS) a par da descentralização e disseminação dos centros, postos e extensões de saúde pelo país possibilitaram uma evolução muito positiva dos indicadores de saúde, em poucos anos, designadamente no aumento da esperança de vida, na redução da mortalidade infantil e na promoção da saúde. Para a Organização Mundial de Saúde, os Cuidados de Saúde Primários (CSP) são parte integrante do desenvolvimento socioeconómico da sociedade e do SNS, de que constituem função central e são o principal núcleo.

Apesar da importância estratégica dos Cuidados de Saúde Primários ser reconhecida mundialmente, apesar dos avanços legislativos e práticos em Portugal depois de 25 de Abril de 1974, tem havido um progressivo desinvestimento neste domínio por parte dos sucessivos governos e, sobretudo do atual, pese embora a contínua propaganda em torno da valorização dos Cuidados de Saúde Primários. Desinvestimento que tem sido reconhecido por diferentes organizações representativas do setor (sindicatos, associações representativas de profissionais e utentes), por académicos e estudiosos, como recentemente foi admitido pelo Observatório Português dos Sistemas de Saúde no relatório da Primavera e pelo Tribunal de Contas.

Assistimos hoje a uma diminuição da capacidade de resposta dos Cuidados de Saúde Primários, a pretexto dos constrangimentos orçamentais, ao encerramento de serviços de proximidade, à carência de profissionais de saúde, ao desinvestimento na área da saúde pública, à não atribuição de médico de família a todos os utentes assim como à persistente e cada vez mais acentuada discrepância entre as Unidades de Saúde Familiar e as Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados. Desigualdades que se traduzem quer nas condições materiais e técnicas, quer na dotação e valorização dos recursos humanos.

II Modelo de Funcionamento dos Cuidados de Saúde Primários

Ao longo dos anos e por ação de sucessivos governos a arquitetura e funcionamento dos cuidados de saúde primários foram sendo alterados. Presentemente, são vários os diplomas legais que regem o funcionamento dos cuidados de saúde.

Em agosto de 2007, através do Decreto-Lei nº 298/2007, foram criadas as Unidades de Saúde Familiar e estabelecido o regime jurídico da organização e funcionamento dessas unidades de saúde. Este diploma legal prevê a constituição de três modelos de USF, o modelo A, B e C, diferenciados entre si pelo grau de autonomia, a retribuição e incentivos aos profissionais e o financiamento e estatuto jurídico.

Os modelos A e B das USF integram o sector público administrativo, com diferenças ao nível da contratualização e do regime retributivo dos profissionais, enquanto que o modelo C prevê a abertura para entidades privadas, incluindo os sectores social e cooperativo.

De acordo com os dados publicados pela Associação Nacional de USF (USF_AN), “Unidade de Saúde Familiar: USF- Modelo Positivo do Presente e para o Futuro”, de 2006 a 2014 foram realizadas 946 candidaturas para constituição de USF, sendo que em 2014 existiam 415 USF. Destas 415, 223 integravam o modelo A e 192 o modelo B. Uma análise mais detalhada do documento da USF-AN revela, ainda, que “se tem assistido a um decréscimo no ritmo de crescimento das USF (isto é, número de USF que abrem atividade em cada ano) nos anos seguintes a 2009”. No que à tipologia diz respeito, os dados publicados pela USF-AN mostram que tem havido um “número superior de USF de modelo A” a iniciar atividade em comparação com a “USF modelo B”. As USF abrangem cerca de 4,9 milhões de utentes, um pouco menos de 50% da população portuguesa.

O documento em análise revela, igualmente, que “em relação às novas USF, a média no período de tempo 2006-2010 foi de 5,3 novas USF por mês, no ano de 2011-2013 foi de 5,14 por mês e durante o ano de 2014 de 3,2 por mês.” A publicação refere, ainda, que existiam (à data da publicação, dezembro de 2014) “67 candidaturas activas a USF à espera de início de funções” e que “a passagem do modelo A para o modelo B tem, igualmente, sido cada vez menos expressiva, estando 29 USF A em espera.”

Soubemos, também, que o despacho nº 6080-B/2014, de 9 de maio, que estipula o número de USF a abrir durante o ano de 2014 apenas foi cumprido em 50%. No que respeita ao presente ano, o Governo ainda o não publicou, pelo que não existe nenhum compromisso da parte do Governo com a abertura de novas USF`s.

A consagração de USF modelo C abre portas à privatização dos cuidados de saúde primários. O anterior governo (PS) previa avançar com cinco USF modelo C em projeto-piloto e o atual (PSD/CDS-PP) também ensaiou esta possibilidade quando defendeu que as Instituições Particulares de Solidariedade Social podiam dar resposta aos utentes sem médico de família.

As USF`s confrontam-se com outros problemas, que não sendo novos, deveriam ter já sido resolvidos, nomeadamente a carência de profissionais de saúde. Faltam secretários clínicos, enfermeiros, médicos e motoristas. Para colmatar a carência de secretários clínicos e motoristas, as USF`s recorrem aos Contratos Emprego e Inserção, vulgarmente conhecidos por CEI`s. Este recurso para além de incentivar e alastrar a precariedade nos serviços públicos não resolve o problema de fundo, na medida em que, quando os trabalhadores estão aptos para o exercício das funções atribuídas são obrigados a sair e são substituídos por outros nas mesmas condições.

Persistem também os problemas com o sistema informático PEM (prescrição eletrónica de medicamentos). Problemas que se traduzem pela não garantia de acesso à medicação crónica que o doente toma e pela lentidão do sistema que leva a atrasos nas consultas. Assim como com os sistemas de informação que impedem os profissionais de conhecerem e monitorizarem a atividade assistencial e o desempenho.

O Decreto-Lei nº 28/2008, de 22 de fevereiro, instituiu os Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES), cuja missão é “garantir a prestação de cuidados de saúde primários à população de determinada área geográfica” (artigo 3º). Os ACES podem integrar várias unidades funcionais, a saber: Unidade de Saúde Familiar (USF); Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP), Unidades de Cuidados na Comunidade (UCC); Unidades de Recursos Assistenciais Partilhados (URAP) e Unidade de Saúde Pública (USP).

No diploma legal acima descrito estão definidas as funções e atribuições de cada uma das unidades funcionais, sendo afirmado que USF “são disciplinadas por legislação específica” (artigo 9º), porquanto as UCSP possuem “ uma estrutura idêntica à prevista para a USF e presta cuidados personalizados, garantindo a acessibilidade, a continuidade e a globalidade dos mesmos.”Pese embora estar definida a equiparação entre as USF e as UCSP, a realidade mostra a existência de discrepâncias muito assinaláveis entre estas duas unidades funcionais. Diferenças desde logo na alocação de recursos materiais e técnicos mas também ao nível dos recursos humanos e da valorização destes, e até nas condições físicas das instalações, onde as UCSP são claramente prejudicadas e têm menos recursos quando comparadas com as USF, o que se reflete também nos cuidados de saúde prestados aos utentes. Diferenças na acessibilidade e na prestação de cuidados de saúde aos utentes, criando desigualdades entre utentes e entre portugueses. Estas diferenças necessitam de ser solucionadas para melhorar a prestação de cuidados de saúde à população servida pelas UCSP e as condições de trabalho dos profissionais destas unidades de saúde, bem como as suas instalações.

Pugnamos por um Serviço Nacional de Saúde de carácter público, universal e gratuito para todos. Só desta forma é possível assegurar a todos os portugueses os cuidados de saúde de que necessitam, pelo que nos opomos firmemente a toda e qualquer tentativa de privatizar a saúde e, no caso em apreço, os cuidados de saúde primários por via da constituição das USF modelo C.
O Governo está claramente apostado na privatização da saúde, como está bem demonstrado nas PPP hospitalares. A privatização da saúde abre caminho à gestão desligada das necessidades dos doentes, dos critérios de natureza clínica, de qualidade dos cuidados de saúde prestados e do bem-estar das pessoas, assentando em critérios economicistas e de redução de custos.

Por força das opções políticas de sucessivos governos restringe-se o acesso aos cuidados de saúde afastando o seu carácter universal, transformando a saúde num bem que apenas alguns podem pagar. Com a privatização, o desenvolvimento da rede de CSP nunca terá como objetivo a resposta às necessidades das populações mas somente a sua rentabilidade financeira, o que se traduzirá num aumento das transferências de verbas para as entidades privadas, em detrimento da expansão e do aperfeiçoamento da rede pública.

É neste quadro de agravamento das políticas em aplicação que o PCP considera ser urgente a adoção de medidas concretas de reforço dos Cuidados de Saúde Primários de molde a que se proteja a saúde e a vida dos portugueses e defenda o Serviço Nacional de Saúde e que rejeite a privatização dos cuidados de saúde primários.

Nestes termos, ao abrigo das disposições constitucionais e regimentais aplicáveis, o Grupo Parlamentar do PCP apresenta o seguinte Projeto de

Resolução

A Assembleia da República recomenda ao Governo que:
1. Cumpra o estabelecido do quadro legal no que respeita à abertura de Unidades de Saúde Familiar e na passagem da Unidades de Saúde Familiar modelo A para modelo B, tendo em conta as candidaturas apresentadas;
2. Revogue o modelo C das Unidades de Saúde Familiar;
3. Cumpra com o estabelecido na legislação, nomeadamente o relativo aos incentivos institucionais mediante a resolução dos constrangimentos impostos pelas Administrações Regionais de Saúde;
4. Proceda à abertura de procedimentos concursais para os profissionais em falta nas USF`s e em todas as UCSP, pondo fim à precariedade e ao recurso a contratos emprego-inserção;
5. Resolva definitivamente os problemas com a PEM;
6. Solucione os problemas dos sistemas de informação de modo a permitir que as USF`s possam conhecer e monitorizar a atividade assistencial.
7. Mantenha em funcionamento as Unidades de Saúde Familiar que laboram em horário alargado;
8. Promova o alargamento de horário nas unidades que integram os cuidados de saúde primários (UCSP e USF), que ainda não funcionam em alargamento, de molde a responder às necessidades da população servida por tais unidades de saúde;
9. Sejam revistos e negociados os critérios subjacentes à contratualização em saúde, os quais devem estar orientados pelo Plano Nacional de Saúde, pelos Planos Locais de Saúde e pelos Planos de Ação das unidades funcionais, rejeitando qualquer tipo de imposição onde ainda exista.
10. Ponha fim às discrepâncias existentes entre Unidades de Saúde Familiar e Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados, nomeadamente, na dotação de condições materiais, técnicas e de recursos humanos; na remuneração dos profissionais de saúde incluindo o sistema de incentivos, assim como de instalações adequadas, de molde a garantir a prestação de cuidados de saúde de qualidade, pondo fim à discriminação existente.

Assembleia da República, em 3 de julho de 2015

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