Intervenção de Eugénio Rosa, Economista, Sessão Pública - A alternativa na política fiscal

A opção de classe na política fiscal dos sucessivos governos

A opção de classe na política fiscal dos sucessivos governos

Para além da distribuição primária ou funcional, dos rendimentos que que assenta na exploração do Trabalho pelo Capital, existe uma distribuição secundária, que é feita pelo sistema fiscal que, em Portugal, está a ser utilizado para transferir rendimentos dos Trabalhadores e pensionistas para os grupos económicos e financeiros, poupando os ricos à austeridade. E isto apesar do nº1 do artº 104 da Constituição da República dispor que “O imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar”. O que carateriza o sistema fiscal português é que ele não se baseia nem em impostos únicos nem em taxas progressivas e, além disso, isenta muito os ricos.

Se analisarmos a estrutura das receitas fiscais de 2013, por ex., constatamos que 52,7% das receitas (54,1% nos 1º oito meses de 2014) tiveram como origem impostos indiretos, em que as taxas são proporcionais, ou seja, taxas iguais para pobres ou ricos quando adquirem o mesmo bem. Portanto, são impostos em que não existe qualquer progressividade, não atende ao rendimento de quem paga, agravando as desigualdades.

Em relação aos impostos diretos, constata-se que a receita do IRS, que têm fundamentalmente como origem apropriação de uma parcela dos rendimentos de trabalho e pensões, representa cerca de 73% da receita destes impostos, enquanto a receita que tem como origem o IRC, que incide sobre os lucros das empresas corresponde apenas a 27% das receitas dos impostos diretos. Entre 2011 e 2013, as receitas do IRS aumentaram 2.553 milhões €, enquanto as receitas do IRC diminuíram 540 milhões €. Nos primeiros oito meses de 2014, relativamente a igual período de 2013, a receita do IRS aumentou 869,2 milhões €, enquanto a receita do IRC diminuiu em 111,8 milhões €, representando a receita do IRC já apenas 30% da receita do IRS.

A liquidação da progressividade no IRS, é também visível na sobretaxa de IRS de 3,5%, que é uma taxa fixa, que atinge de uma forma igual a parcela de rendimentos superior ao SMN, seja qual for o seu montante, que determina um corte de 800 milhões €/ano nos rendimentos dos portugueses.

Em 2013 verificou-se uma alteração profunda nas taxas do IRS no sentido contrário ao princípio constitucional da progressividade. E isto porque o aumento percentual verificado na taxa que incide sobre os rendimentos baixos foi quase quatro vezes superior à registada na taxa do escalão de rendimento mais elevado A taxa de IRS que incide sobre rendimentos tributáveis até 4.900€ sofreu um aumento de 30,9%, enquanto a que incide sobre a parcela do rendimento coletável superior a 150.000€ teve uma subida de 8%.

A juntar a isto, há ainda os cortes enormes feitos nas deduções no IRS que atingiram fundamentalmente trabalhadores e pensionistas, e que determinaram um aumento brutal da carga fiscal. Entre 2010 e 2012, as deduções no IRS feitas pelos contribuintes de despesas com a saúde foram reduzidas de 641 milhões € para apenas 204 milhões €; as deduções de juros de crédito à habitação diminuíram de 569 milhões € para 230 milhões €; e as deduções no IRS de despesas de educação baixaram de 302 milhões € para somente 267 milhões €. Só devido a este corte nas deduções no IRS os contribuintes têm de pagar mais 811 milhões € de IRS por ano. E isto porque o governo de Sócrates reduziu a despesa de saúde que pode ser deduzida no IRS de 30% para 10%. E o governo do PSD/CDS reduziu para metade os juros do crédito habitação que podem ser deduzidos no IRS (máximo 296€/ano), e em relação às despesas com educação só podem ser deduzidas no IRS tendo como limite máximo, por ano, 2IAS.

A isto há ainda a acrescentar a não atualização anual desde 2010 da dedução especifica nos rendimentos do trabalhado e nas pensões, que deixou de estar indexada ao salário mínimo anual, o que determinou uma não redução de IRS estimada em 20 milhões €/ano

A espoliação e o massacre fiscal dos trabalhadores e pensionistas tornam-se claros, se se tiver presente que, em 2012, dos 81.026 milhões € declarados para efeitos de IRS, 62,7% eram rendimentos do Trabalho e 27,8% rendimentos de pensões, que somados dão 90,5% dos rendimentos declarados para efeitos de IRS. Os rendimentos de capital e de propriedade representaram, em 2012, apenas 9,5% dos rendimentos declarados para efeitos de IRS.. A isenção, a subdeclaração e a fuga dos rendimentos de capital e de propriedade ao pagamento de impostos é enorme.

A chamada “reforma do IRS” que o governo vai certamente utilizar numa gigantesca operação de manipulação e engano da opinião pública não vai resolver a grave injustiça fiscal existente, até a agrava em vários pontos.

Isto porque não reduz as taxas de IRS nem aumenta as deduções. Nestas áreas mantem tudo na mesma. O que proposta visa é dar uma machadada final no IRS como imposto único sobre os rendimentos, consagrando a dualização do IRS. Segundo a proposta, os rendimentos sujeitos a IRS são divididos em dois grandes conjuntos: um constituído pelos rendimentos do trabalho e pensões sujeitos a taxas que variam entre 14,5% e 48%, e o outro composto pelos rendimentos do capital e propriedade (juros, lucros, mais valias, rendas) a que se aplicam taxas proporcionais (fixas) em que a mais elevada é 28%.

Mas o tratamento mais favorável dos rendimentos do capital e de propriedade não fica por aqui. A proposta pretende legalizar o planeamento fiscal abusivo por parte dos detentores destes rendimentos. Segundo a proposta, os detentores dos rendimentos de propriedade e de capital poderão livremente englobar estes rendimentos ou não conforme as taxas de IRS sejam ou não mais favoráveis. Se as taxas aplicadas aos rendimentos do trabalhadores e pensões forem mais baixas podem optar pelo englobamento e pagarem menos IRS; se forem superiores a 28%, não englobam e pagam assim menos. Imposto. Tudo depende do volume de rendimentos que receberem.

A proposta de “reforma de IRS” destrói também o carater regressivo das deduções no IRS que vigoram atualmente (quanto mais elevado é o rendimento, menor é a dedução) pretendendo substituir por uma dedução fixa igual para todos os contribuintes (dedução no IRS de 272,23€ por sujeito passivo e 265,37€ por dependente), que inclui a atual dedução pessoalizante, e as por conta de despesas saúde, educação, e juros de credito à habitação, tenha-se um rendimento coletável de 7.000€ ou de um milhão €/ano. Sob um aparente tratamento igualitário esconde-se uma profunda desigualdade de rendimentos.

Um aspeto eventualmente positivo da proposta a nível do IRS é a substituição do coeficiente conjugal que vigora atualmente (divisão da matéria coletável do agregado por 2 para saber qual é taxa de IRS que se aplica) pelo coeficiente familiar (divisão da matéria coletável não apenas por 2, mas sim por este número a que se adiciona o valor de 0,3 por cada dependente ou pais, este últimos se tiver rendimentos até 259€), o que reduz, em certos casos, a taxa de IRS que se aplica ao rendimento coletável do agregado familiar. Mas mesmo este aspeto positivo da proposta é anulado por uma outra proposta da comissão de IRS que é a seguinte: a introdução do coeficiente familiar não poderá determinar uma redução de receita para o Estado. E para conseguir isso quer obrigar os casais que não têm filhos (reformados, aposentados, e todos os outros sem filhos) a pagar mais IRS para compensar a redução de IRS aos com filhos. Para isso impõe um limite na redução que poderá resultar da aplicação do coeficiente familiar a qual, em nenhuma situação, poderá ser superior a 750€ por sujeito passivo.

Face à injustiça fiscal atual que atinge fundamentalmente trabalhadores e pensionistas, é necessária uma profunda reforma democrática de todo o sistema fiscal pondo-o de acordo com os princípios constitucionais. Para isso, é necessário reduzir a enorme carga fiscal que incide sobre os rendimentos do trabalho e sobre as pensões, e aumentar a carga fiscal que incide sobre os rendimentos do capital e da propriedade. E essa reforma democrática do sistema fiscal devia assentar nos seguintes princípios:

A transformação do IRS num um imposto único e progressivo sobre todos os rendimentos, tornando o englobamento obrigatório, e acabando com as múltiplas isenções, benefícios, subdeclarações, etc. que determinam que os rendimentos do capital e da propriedade representem atualmente apenas 10% dos rendimentos declarados para efeitos do IRS, enquanto os do trabalho e pensões correspondem a 90%;

Uma alteração profunda da tabela de taxas de IRS tornando o imposto verdadeiramente progressivo (podia servir de base a proposta da CGTP em cuja elaboração participamos);

A reposição das deduções de IRS que estavam em vigor anteriormente relativas a despesas de saúde (30% e não apenas 10%), de educação e de juros com o credito à habitação;

A indexação da dedução específica de rendimentos de trabalho e pensões ao salario mínimo nacional assim como outras que sempre estiveram indexadas a ele, mas que o governo de Sócrates e Passos Coelho eliminaram;

A eliminação da taxa extraordinária de 3,5% de IRS assim como a Contribuição Extraordinária de Solidariedade que apenas atinge os pensionistas;
A redução para os valores que estavam em vigor até ao governo de Sócrates da taxa contributiva dos trabalhadores da Função Pública para a ADSE e das forças de segurança para os outros subsistemas públicos de saúde;

O pagamento pelo empregador da contribuição patronal para a Segurança Social que hoje é paga pelos falsos independentes (trabalhadores com recibo verde)

Para compensar uma eventual redução de receita resultante da diminuição da carga fiscal sobre trabalhadores e pensionistas deviam ser tomadas as seguintes medidas:

Uma profunda revisão do CIRC eliminando os múltiplos benefícios fiscais de que gozam os grupos económicos e financeiros, nomeadamente a eliminação chamada “Participation exemption” criada pela reforma de Lobo Xavier/Frasquilo que alargou a isenção das mais-valias e dos lucros transferidos para o estrangeiro (antes era necessário uma participação de 10% que foi reduzida para 5%, antes não incluía mais-valias e agora passou a incluir)
A criação de um imposto especial progressivo sobre os lucros distribuídos e não investidos superiores, por ex., a um milhão de euros, assim como sobre os resultantes de aplicações financeiras e sobre as grandes heranças (por ex., de valor superior a um milhão de euros);

A criação de um imposto como sobre as transações financeiras, nomeadamente as especulativas geradoras de importantes mais-valias
Um regime de tributação por métodos indiretos tendo como base sinais exteriores de riqueza eficaz e exequível que permita combater eficazmente a evasão e fraude fiscal, e não o da proposta que defende uma alteração profunda do artº 77º da Lei Geral Tributária que deixa a Administração Fiscal totalmente imobilizada.

A adoção do principio de que todos os rendimentos (lucros, mais-valias, juros, rendas, etc.) deviam pagar impostos no país onde foram gerados acabando com o escândalo e a pouca vergonha dos grupos económicos e financeiros de encaminharem os lucros gerados num país para países de impostos mais baixos ou onde não pagam impostos (Irlanda, Holanda, “offshores”)

As receitas assim obtidas através destes impostos sobre os rendimentos do capital e da propriedade e sobre as grandes fortunas que agora escapam ao pagamento de impostos certamente dariam um volume de receita importante que permitiria desagravar significativamente os rendimento do trabalho e as pensões e financiar as funções sociais do Estado e o investimento público, realizando também desta forma uma profunda reforma democrática do sistema fiscal baseada em impostos únicos e progressivos sobre os rendimentos como dispõe a Constituição da República, pondo fim ao tratamento favorável e injusto que têm tido os rendimentos do capital e da propriedade no nosso país

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