Intervenção de José António Gomes, professor do ensino superior, doutorado em Literatura Portuguesa e crítico literário, Conferência «Uma visão universal e progressista da História - A actualidade da Obra de José Saramago»

A obra «Levantado do Chão»

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Muito teremos sempre a dizer acerca dos romances de José Saramago:

  • que são poderosos objectos de linguagem, de sofisticada composição estilística;
  • que são imaginativas e bem tecidas estruturações técnico-narrativas;
  • que a voz que narra é única e inconfundível;
  • que muitas das personagens, sejam femininas ou masculinas, são figuras sabiamente modeladas e inesquecíveis (Blimunda, Ricardo Reis, Lídia, Raimundo Silva, Maria Sara, Cipriano Algor, o cornaca do elefante Salomão…);
  • que as construções alegóricas são peças de largo fôlego semântico-pragmático;
  • que, nos textos, é indiscutível a capacidade de interpelação do leitor sobre os mais diversos temas: História, historiografia e ficção; homem e Deus; homem/mulher; relação entre opressores e oprimidos; política e religião; escrita e oralidade…;
  • que a dimensão interartística e intertextual da prosa saramaguiana é desafiadora e de enorme riqueza.

Mas outra coisa teremos sempre de reconhecer: é que a luta de classes enquanto motor da História da humanidade e o conhecido princípio de Marx, segundo o qual «os filósofos têm interpretado o mundo, de várias maneiras; mas a questão, entretanto, é transformá-lo», constituem, não existam dúvidas, um eixo estruturante de toda a escrita romanesca de Saramago. Mesmo quando tal eixo se nos afigura não propriamente uma corrente de superfície mas sim um rio subterrâneo.

Para reconhecer isso, basta ler seja Memorial do Convento (1982), O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984) ou A Jangada de Pedra (1986), seja História do Cerco de Lisboa (1989), Ensaio sobre a Cegueira (1995), A Caverna (2000) ou A Viagem do Elefante (2008), para apenas apontar alguns exemplos.

Mas em poucas obras como em Levantado do Chão (1980) – que extraordinário peritexto titular é este – a validade de tal constatação é reconhecível. Em Lavre, Montemor-o-Novo, começou a ser pensado, em 1976, este texto que é de viragem, a vários níveis, na produção romanesca de Saramago e no seu estilo, e que se inspira no impressivo relato Uma Família do Alentejo do camponês alentejano João Domingos Serra (2010).

Li o romance aos vinte e sete anos e, de imediato, ele se tornou um dos livros da minha vida, por muitas razões. A principal tinha que ver com o meu amor ao Alentejo, ao seu povo sofredor e corajoso, à sua paisagem («O que mais há na terra, é paisagem» (Saramago, 1983: 11) – assim começa o livro), à sua música, gastronomia e literatura (com Manuel da Fonseca à cabeça). Mas outra razão de fundo prendia-se com a gesta revolucionária da Reforma Agrária, por mim apaixonadamente testemunhada, e que, em 1983 – ano em que li o romance – tinha ainda fortíssimo eco na sociedade portuguesa. Isto apesar da situação seguinte: «Diminuídas na sua área, confinadas às terras mais pobres, incapazes de competirem com as explorações agrícolas do sector capitalista, U[nidades] C[olectivas] de P[rodução] e cooperativas entram num processo irreversível de desagregação. No ano agrícola de 1985/1986 já só ocupam 360 000 hectares de terra, parte dela arrendada aos beneficiários do direito de reserva» (Piçarra, 2020: Introdução).

É que sobre Levantado do Chão podemos dizer, como escreveu o seu autor: «Isto é o Alentejo». Escutemos Saramago (1980), no belo texto que escreveu para a contracapa da 1.ª edição:

«Um escritor é um homem como os outros: sonha. E o meu sonho foi o de poder dizer deste livro, quando o terminasse: “Isto é o Alentejo.” Dos sonhos, porém, acordamos todos, e agora eis-me não diante do sonho realizado, mas da concreta e possível forma do sonho. Por isso me limitarei a escrever: “Isto é um livro sobre o Alentejo”. Um livro, um simples romance, gente, conflitos, alguns amores, muitos sacrifícios e grandes fomes, as vitórias e os desastres, a aprendizagem da transformação, e mortes. É portanto um livro que quis aproximar-se da vida, e essa seria a sua mais merecida explicação. Leva como título e nome, para procurar e ser procurado, estas palavras sem nenhuma glória – Levantado do Chão. Do chão sabemos que se levantam as searas e as árvores, levantam-se os animais que correm os campos ou voam por cima deles, levantam-se os homens e as suas esperanças. Também do chão pode levantar-se um livro, como uma espiga de trigo ou uma flor brava. Ou uma ave. Ou uma bandeira. Enfim, cá estou outra vez a sonhar. Como os homens a quem me dirijo.»

Deixo uma brevíssima nota sobre a recepção crítica de Levantado do Chão, citando uma luminosa síntese de António José Saraiva e Óscar Lopes (1993: 1144): a obra «ergue em quatro gerações de uma família popular a epopeia social do Alentejo, entre a reconstituição histórica, a imaginação pitoresca, dramática ou alegórica, e com adequadas e surpreendentes mutações de estilo narrativo e verbal». E uma passagem dum artigo de Óscar Lopes (1983), reproduzida enquanto peritexto de contracapa na 4.ª edição do romance, dar-nos-á ainda pistas sobre a sua genealogia literária: «Uma profunda sageza feita, não de qualquer experiência comum, mas da experiência fantasiante e humoral dos limites, num realismo em constante avanço. (…) Como Camilo e Aquilino, esses dois mestres do nosso realismo rural, Saramago desenha a traço enxuto as mil e uma maneiras de capear, intrujar, espremer e sangrar os pequenos, a arraia-miúda, que aí, no Alentejo, já em 1385 e 1636 se ergueu em jacqueries e motins contra o Estado dos grandes senhores».

Com inesquecíveis personagens de trabalhadores rurais alentejanos que já são ou irão tornar-se comunistas, como Sigismundo Canastro, João Mau-Tempo (a figura principal do livro), seu genro Manuel Espada, seu filho António Mau-Tempo, e focado no destino de várias gerações da família Mau-Tempo, cujas origens nos é dito remontarem à Idade Média (tal como as dos próprios latifundiários que os exploram, todos eles com nomes terminados em -berto: Lamberto, Alberto, Adalberto, Norberto…); com figuras femininas igualmente difíceis de olvidar, como Sara da Conceição, a mãe de João Mau-Tempo, sua mulher, Faustina, Gracinda, sua filha, ou ainda Maria Adelaide, sua neta, o romance Levantado do Chão oferece-nos, em oposição a estas, uma sombria galeria de personagens. Essas representam aqui a classe dominante dos senhores da terra, ou aqueles outros que justificam (como o padre) a dominação de classe, no contexto do atrasado capitalismo português entre os anos vinte e 1974, e que a defendem pela repressão fascista: latifundiários, germanófilos e salazaristas; a Igreja católica, através do impagável padre Agamedes, o ideólogo alienador de serviço; os violentos oficiais e agentes da Guarda Republicana, e, naturalmente, os esbirros da PIDE; finalmente os inevitáveis feitores e manageiros – personagens tópicas e tipificadas, como as que já encontrávamos nas ficções de um Manuel da Fonseca, por exemplo.

História de exploração desenfreada a raiar a escravidão, de fome e de miséria, história de uma luta pela sobrevivência e de resistência dos mais comuns da terra e do seu combate à opressão, perpetrada por um sistema fundiário iníquo – o latifúndio – e por um sistema socioeconómico de injustiça social gritante – o capitalismo –, sustentado no fascismo salazarista, Levantado do Chão tornar-se-ia, por muitas razões, um dos mais amados romances de Saramago.

Mas, a par da densidade humana das personagens camponesas, do protagonismo que lhes é dado, e do efectivo poder de nos comoverem; a par da pluridiscursividade que caracteriza o texto, na variedade dos seus registos: (o do narrador de tão oralizante voz com o seu modo dialogante e proverbial de contar; o dos latifundiários; o do representante do clero reaccionário; o dos torcionários; o do extraordinário contador popular que é António Mau-Tempo, filho de João e neto de Domingos…), a par de tudo isto e do humor, da tonalidade lírica e da poeticidade de tantas passagens, Levantado do Chão toca o leitor por outro motivo. É que, sem jamais referir o nome do PCP, o romance constitui, na verdade, um tributo inapagável, profundamente humanista e de grande altura poética, ao papel que a organização comunista e os seus militantes de origem camponesa e operária tiveram na gradual, sofrida e sangrenta emancipação do povo alentejano. Essa que culmina no 25 de Abril e principalmente na Reforma Agrária de 1975, espécie de revolução dentro da Revolução.

Erguem-se, não tenho dúvidas, como páginas de antologia aquelas em que Saramago (1983: 165-180) faz a reconstituição ficcional do assassinato, histórico, e cometido pela PIDE, do dirigente Germano Santos Vidigal, em 28 de Maio de 1945 no posto da GNR de Montemor, em decurso da sua ligação à luta dos operários agrícolas de Montemor-o-Novo, e em geral em todo o Alentejo, pelo aumento das jornas (dos vinte e cinco para os trinta e três escudos), no contexto do apelo do PCP à luta, que acabaria por ser vitoriosa, contra a «ofensiva de fome» do regime fascista. Difícil esquecer, também, a recriação do episódio (Saramago, 1983: 303-318) do assassinato do quadro comunista José Adelino dos Santos, em 23 de Junho de 1958, no contexto de uma manifestação, da qual fora um dos organizadores, contra a fraude eleitoral desse ano e contra o custo de vida, em que eram reivindicados melhores salários. Adelino foi atingido na nuca por um tiro disparado pela GNR quando se contava entre os manifestantes que clamavam por trabalho e por pão, e é outro dos mártires da luta antifascista. Um passo do romance que igualmente não se esquece é a reconstituição da luta organizada, também ela vitoriosa, pela jornada de trabalho de oito horas, contra o trabalho de sol a sol, pretendido pelos senhores do latifúndio.

Deixo de lado questões já estudadas como a poética oralizante do narrador saramaguiano, a sua pontuação, ou a sua vertente aforística e proverbial, bem como a dimensão lírica da prosa de Levantado do Chão, de grande beleza por vezes. Deixo de lado as páginas exaltantes, quase épicas, dos derradeiros capítulos, sobre o imediato pós-25 de Abril e, em especial, sobre «os dias levantados e principais» do início da Reforma Agrária. Prefiro terminar este apontamento, evocando apenas uma tirada que guardo no coração: a intervenção de João Mau-Tempo, na sua primeira reunião de célula com Sigismundo Canastro, mais dois camaradas e o funcionário da organização que os acompanhava, acabado de chegar de bicicleta:

«E tu, queres dizer alguma coisa, pergunta inesperada, interpelação que sobressaltou o novel. Não sei, não tenho nada para dizer, e depois ficou calado, mas todos eles estavam calados, a olhar, e assim não podia ser, cinco homens sentados debaixo dum chaparro a jogar o sisudo, e como não tinha mais nada para dizer, disse, Cansamo-nos a trabalhar de noite e de dia, quando há trabalho, e não aliviamos o nosso castigo na vida faminta, cavo uns bocaditos de terra quando mos dão para cultivar, e até altas horas, e agora é um geral desemprego, o que eu queria era saber porque são estas coisas assim e se vai ser assim até morrermos todos, não há justiça se uns têm tudo e os outros nada, e eu só queria dizer que os camaradas podem contar comigo, é só isto e nada mais.» (Saramago, 1983: 212)

Referências bibliografia

Lopes, Óscar (1983), «Uma prova provada da nossa geral necessidade…», in Saramago, J., Levantado do Chão, 4.ª ed., Lisboa: Caminho (texto de contracapa).

Piçarra, Constantino (2020), A Reforma Agrária e O Seu Impacto na Sociedade Rural dos Campos do Sul, 1975 – 1977, Évora: CIDEHUS / Universidade de Évora (disponível em https://books.openedition.org/cidehus/13657, acedido em 20-10-2022)

Saraiva, António José e Lopes, Óscar (1993), História da Literatura Portuguesa, 16.ª ed., Porto: Porto Editora.

Saramago, José (1980), «Um escritor é um homem como os outros: sonha. (…)», in Saramago, J., Levantado do Chão, 1.ª ed., Lisboa: Caminho (texto de contracapa).

Saramago, José (1983), Levantado do Chão, 4.ª ed., Lisboa: Caminho (1.ª ed., 1980).

Serra, João Domingos (2010), Uma Família do Alentejo, Lisboa: Fundação José Saramago (prefácio de José Saramago; posfácio de Manuel Gusmão).

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