Declaração de José Neto, Membro da Comissão Política do Comité Central, Conferência de Imprensa

O novo mapa judiciário e o acesso dos cidadãos à justiça

1. Questão central da actualidade política na área da justiça, a proposta do Governo do Mapa Judiciário, novo mapa de organização dos tribunais, tem suscitado justas preocupações e fortíssima contestação.

Preocupações que resultam designadamente da insuficiente informação sobre conteúdos da reforma e sua concretização disponibilizados pelo Governo, mas sobretudo apreensão e discordância quanto aos resultados previsíveis da reorganização em termos da exigência de uma justiça de qualidade e acessivel a todos os cidadãos do nosso país.

O PCP não contesta a necessidade de melhorias na organização e no funcionamento do sistema judicial e sobre essa matéria tem posições e propostas. O que o PCP contesta, e a que firmemente se opõe, é o sentido da reforma e as consequências negativas que teria para os cidadãos no seu acesso à justiça, mas também para as comunidades e o país.

A substituição das actuais 230 comarcas, na base do(s) concelho(s), por 35 novas circunscrições de base geográfica territorial correspondente às NUT's, é uma opção errada que, abdicando de explorar todas as potencialidades e capacidades do actual modelo de círculos judiciais e comarcas, aposta em soluções que se traduzirão em menos justiça e pior justiça.

Não é difícil prever que muitas das actuais comarcas ficarão praticamente desactivadas. E se não fecham os tribunais, como promete o Ministro, ficarão ainda mais esvaziados e sem actividade judicial relevante, muitos deles funcionando como "balcões" ou secretarias judiciais. A única certeza é que os cidadãos ficarão mais distantes da justiça e dos tribunais.

Diz o Governo que a reorganização resulta da necessidade de uma gestão mais racional dos recursos perante a actividade processual reduzida de muitas comarcas. "Um terço das comarcas tem menos de de 500 processos por ano. Numa escala tão pequena não se pode obter uma justiça de qualidade" (palavras do Ministro da Justiça). Por isso, extintiguem-se as comarcas. Com o mesmo tipo de argumento fecharam-se maternidades, urgências e escolas. Fechar tribunais significaria mais desigualdade na justiça. Se já há uma justiça para ricos e outra para pobres, passaria a haver uma justiça para as cidades e o litoral e outra para o interior, cada vez mais abandonado.

Esta estratégia, pretensamente justificada pela racionalização e melhor gestão de recursos, esconde mal razões de cariz economicista, que derivam da obcessão do défice, mas, sobretudo, oculta motivações mais profundas de natureza política, correspondentes aos desígnios da direita e dos grandes interesses económicos.

Que assim é, facilmente se comprova. Tal como para o Pacto da Justiça, uma das fontes inspiradoras da actual reforma está nas conclusões sobre justiça da 1ª Conferência do Compromisso Portugal (Convenção do Beato, nos idos de 2004). Na Proposta 37 - organização judiciária pode ler-se, e vou citar: "Deve proceder-se a uma nova organização judiciária que envolva a relocalização dos tribunais, o que poderá implicar o fecho de alguns (...) movimento semelhante ao das escolas primárias".

Mas não ficam por aqui os nossos gestores capitalistas do Beato.

Ali foi defendida a introdução de gestores profissionais nos tribunais, a melhoria do controlo de qualidade e produtividade nos tribunais e também um sistema de incentivos nas remunerações dos magistrados (incluindo prémios por desempenho). Propuseram ainda um maior recurso à arbitragem e à mediação, sancionando severamente o "recurso abusivo" aos tribunais. Propostas pretensamente cheias de modernidade que encobrem objectivos velhos de uma justiça mais modelada aos seus interesses.

Para nós, PCP, são claros os objectivos do Governo - o primeiro, a redução da despesa, com a diminuição do serviço público de justiça; o segundo, o alargamento do mercado privado de justiça (crescimento da arbitragem e mediação privadas); e o terceiro, por via das novas circunscrições e da dita "gestão racional dos recursos", uma maior governamentalização do sistema, um mais fácil controlo dos magistrados e dos tribunais, visando limitar a sua independência.

Estes objectivos fazem parte de um processo, que vem de trás, de reconfiguração do actual sistema constitucional de justiça, que se encontra nos programas eleitorais da direita e do PS (responsáveis pela situação a que se chegou nessa área) e desenbocou no Pacto da Justiça.

Objectivos e medidas como o novo mapa judiciário, pedra angular do novo modelo judicial, de que o PSD se quer demarcar de forma incoerente, tal como fez na saúde ou na educação, deixando ao PS o odioso de (tentar) concretizar, também na justiça, as políticas que o Governo PSD/CDS não pôde realizar. O PSD não rompeu o Pacto. O PSD foi conivente com o PS na lei da política criminal, que é uma ingerência no poder judicial; na alterações ao Código do Processo Penal, que dificultam o combate ao crime económico e à corrupção; na drástica limitação do apoio judiciário.

2. O acesso dos cidadãos à justiça e aos tribunais, consagrado no artigo 20º da Constituição, é um direito democrático fundamental - nele está contido o principio da não denegação da justiça por insuficiência de meios, o direito à informação e consulta jurídica e ao patrocínio judiciário, a decisão judicial em prazo razoável e processo equitativo.

Mas a realidade mostra todos os dias que é crescente o fosso entre a consagração constitucional desses direitos e a sua realização prática. E que, mais de 30 anos passados, o acesso à justiça continua a ser um dos direitos mais ignorados na vida do povo português.

Mas mostra mais - que se acentuam os traços do que já muitos, para além do PCP, consideram ser uma justiça de classe - que trata de forma desigual quem tem dinheiro e conhecimentos e quem não dispõe de meios para promover a defesa dos seus direitos e interesses.

Uma justiça de classe, ao serviço das classes dominantes, ineficaz com os corruptos e a corrupção, mas que julga e condena um dirigente sindical que protesta em defesa de direitos que lhe são negados.

O actual Governo PS, de José Sócrates, na senda dos anteriores, nada tem feito para alterar este estado de coisas. Bem pelo contrário, todas as medidas seguem uma estratégia bem determinada - diminuição de processos e de matéria processual dos tribunais e afastamento dos cidadãos dos tribunais. Exemplo disso é o elevadíssimo valor das custas. É o apoio judiciário ao nível da indigência. É a compensação económica a quem desistir das acções e dos processos intentados, isto é, o pagamento para desistir dos seus direitos. É a penalização, através do pagamento de custas, de quem não opte pelos mecanismos alternativos de resolução de litígios. É ainda o incentivo à classe dos advogados para que os clientes recorram a esses mesmos mecanismos.

Em nome da desjudicialização (principio correcto em determinadas condições) esvaziam-se os tribunais e abre-se caminho a uma justiça privada, que cresce a olhos vistos - solicitadores e agentes de execução privados para cobrança de dividas, mediadores privados na área cível, na área laboral e até na área penal.

A privatização da justiça aparece, assim, como solução milagrosa para resolver os problemas criados em resultado de políticas que negligenciaram o adequado reforço de meios humanos e materiais no sector da justiça. No entender do PCP, a privatização da justiça, além da aprofundar desigualdades no acesso ao direito e aos tribunais, é ainda susceptível de pôr em causa a fé pública e a segurança jurídica dos cidadãos.

Estas são medidas e este é um governo que, nesta reorganização judiciária, não tem uma palavra para os Julgados de Paz, que a Constituição consagra e poderiam constituir uma rede pública de justiça de pequenas causas, desformalizada e próxima das populações.

Para o PCP é necessário continuar a exigir a proximidade do sistema de justiça, a presença dos tribunais, "casas da justiça", como órgãos de soberania em todos os pontos do país, garantia da igualdade de acesso. E, igualmente, que seja assegurado o atendimento às populações por parte dos serviços do Ministério Público, com as suas funções próprias na defesa da legalidade democrática e na realização da justiça.

Pela importância desta matéria da reorganização judiciária o PCP propõe a realização de um amplo debate público, designadamente ao nível da Assembleia da República, que envolva, além dos partidos políticos, os órgãos da justiça, magistrados, advogados e respectivas associações, os municípios portugueses e todos os que queiram dar o seu contributo para as soluções que melhor sirvam os cidadãos e o país.

O PCP continuará a intervir com as suas posições e propostas em prol da melhoria do nosso sistema judicial, pela dignificação de todos os profissionais e por mais e melhor justiça ao serviço dos trabalhadores e do povo português. E lutará contra esta política de justiça, empobrecedora do nosso regime democrático. Luta que é inseparável da defesa da Liberdade e da Democracia, objectivo da Marcha que realizamos no próximo sábado, dia 1 de Março.

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