Intervenção de João Pimenta Lopes, biólogo e deputado do PCP no Parlamento Europeu, Conferência «Uma visão universal e progressista da História - A actualidade da Obra de José Saramago»

O livro «A Caverna» e as questões da liberdade e da independência

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Aqui celebramos o homem, o escritor de uma vasta e singular obra, a sua criatividade e inovação no modo de escrever, que não se limita a apresentar um narrador que conduz a estória, mas que participa activamente na narração. Podemos ouvir a sua voz nesse papel enquanto percorremos os seus livros.

Como esta conferência faz notar, a sua notável obra, além da expressão de um sensível e humano olhar sobre os problemas do homem e da humanidade, seria diferente, se não tivesse a visão do mundo que resulta da sua condição de militante comunista e da compreensão do seu ideal.

Em “Diálogos com Saramago”, no seu estilo mordaz refere:

“No meu caso, o modo de entender a sociedade e o mundo está ligado à análise e ao entendimento marxista. Até onde eu pude chegar e compreender, como leitor e como estudioso (porque alguma coisa li, embora não me imagine um especialista), o marxismo serve-me para compreender o mundo de um modo que faz todo o sentido. O que quero dizer com isto é que o marxismo, pelo menos para mim, não morreu e continua a ser útil: estou nele e nem sequer posso conceber outro modo de tentar entender o funcionamento das sociedades humanas. Agora, qual será o futuro do marxismo? O que se passa é que vivemos na época do liberalismo económico, do consumismo, da perda de valores éticos e aí o marxismo parece ter pouca voz e pouco lugar. Mas se pensarmos em termos históricos e se verificarmos que nada daquilo que teve que ver com o pensamento e com a acção do Homem morreu, não se percebe por que razão o marxismo haveria de ser uma excepção e morrer mesmo. E como houve alguém que ressuscitou ao terceiro dia, pode bem acontecer que o meu marxismo ressuscite ao terceiro século.”

Essa forma de olhar o mundo, marca profundamente não só como o interpreta, como o traduz na sua obra, na sua escrita.

Assim é em “A Caverna” onde relata o que observa de uma forma crítica, acutilante, opondo o sofrimento, a exploração, à opulência dos grandes grupos económicos cujos interesses tudo determinam e que a todos procuram subjugar.

Trata-se de um livro de inquietante actualidade, desconcertando-nos com problemas reais com que os trabalhadores e os pequenos e médios produtores, as micro pequenas e médias empresas se confrontam.

Aqui se plasma a ideia da desvalorização do trabalho, o papel do grande poder económico, no condicionamento não só da produção, mas na determinação e permanente mudança das “necessidades de mercado” e criação de desejo que anima o consumo, fazendo sobrepor os interesses do capitalismo aos das classes trabalhadoras. “VENDER-LHE-ÍAMOS TUDO QUANTO NECESSITASSE SE NÃO PREFERÍSSEMOS QUE VOCÊ PRECISASSE DO QUE TEMOS PARA VENDER-LHE” diria um novo cartaz do “Centro”, para quem Cipriano Algor, personagem principal, produz louças de barro em regime de exclusividade.

O “Centro”, estrutura massiva, impenetrável e inexpugnável, que se expande, ocupando o território, os modos de vida e costumes, determinando o ritmo da economia, concentrando riqueza.

Uma estrutura que formata a sociedade, vendido panfletariamente como um espaço de progresso, de desenvolvimento, onde tudo existe, tudo, e nada falta.

E de onde não se escapa. Nem os mortos se conhece que dali possam sair.

Um centro maquilhado de cores e slogans para alimentar falsas felicidades, que ocultam o medo, a repressão, a opressão e exploração a que se sujeitam quer os que aí se fixam como os que fora dele permanecem, tidos como uma ameaça à sua existência e com os quais é preciso lidar mesmo que por artifícios ou pela força.

É disso exemplo, a passagem em que Cipriano se desloca ao “Centro” e testemunha a opressão sobre as barracas no caminho e os que aí habitam, a pretexto de pretensa destruição de uma camioneta - episódio sobre o qual reflecte e que bem poderia ser transportado para as manobras que sempre se promovem quando se amplia a opressão e o controlo, resvalando, em função dos interesses do capital, para soltar a besta fascista sempre que não seja possível calar o descontentamento, a pobreza e a fome.

Essa viagem, que enquadra um processo que distende, em desespero, as suas próprias capacidades para encontrar soluções que o permitam continuar a produzir, a sobreviver, é feita em profunda ansiedade pela apresentação de uma alternativa de produto – figurinos estáticos, do passado, remetendo a profissões ou figuras “extintas”, que cruelmente aludem à sua própria condição de oleiro, profissão em vias de extinção como o “Centro” lhe impõe.

Alguns poderiam dizer que Cipriano, por sugestão de sua filha, Marta, teve que empreender. Condição que hoje se quer decretar aos trabalhadores, responsabilizando-os individualmente pela sua condição, nem que seja por essa forma mais precária de um dito empreendedorismo imposto através uberização do trabalho, generalizando a todos a incerteza do futuro. O insucesso, que mais tarde chegaria por um estudo de “mercado”, dever-se-ia, pois, a Cipriano que em diálogo com Marta refere:

“É como se estivéssemos a caminhar na escuridão, o passo seguinte tanto poderá ser para avançar como para cair, já começaremos a saber o que nos espera quando a primeira encomenda estiver à venda, a partir daí poderemos deitar contas ao tempo que nos irão querer, se muito, se pouco, se nada, será como estar a desfolhar um malmequer a ver no que dá,
A vida não é muito diferente disso, observou Marta,
Pois não, mas o que tínhamos andado a jogar em anos passou a jogar-se em semanas ou em dias, de repente o futuro tornou-se curto, (...)”

O “Centro”, alegoricamente apresentado, é uma metáfora que assenta como uma luva nos dias de hoje para a realidade de diversos sectores, como para a realidade que vivemos a macro escala, nomeadamente no quadro da União Europeia. O sacrossanto mercado, que a todo o custo há que defender. Que tudo liberaliza e privatiza, em favor do lucro de alguns, impondo uma maior desigualdade e transferência da riqueza do trabalho em favor do capital.

Seja nos sectores da distribuição, do agronegócio, da energia, dos transportes, das comunicações – que procuram estender à saúde, ou à educação. A concentração de sectores estratégicos, a concentração de tudo em poucos, cada vez maiores grupos económicos, que tudo determinam, que se impõem ao poder político, que se lhes verga, que especulam e se aproveitam das crises, das epidemias, da guerra, para ampliar lucros à custa do empobrecimento e exploração dos trabalhadores e da asfixia das pequenas empresas.

Grupos que se tornam impenetráveis, como o “Centro”, inalcançáveis, quer para consumidores, a quem não se prestam satisfações, quer para produtores, condicionando preços à produção, amarrando os produtores a baixos rendimentos, a condicionalidades na produção, determinando quantidades, exclusividades, tempos dilatados de pagamentos, devoluções de produção - como as louças feitas em cacos sem valor que Cipriano tem que retirar do “Centro” para lhe libertar espaço – o permanente desprezo por quem trabalha e a humilhação a que os sujeitam, tão bem traduzidas em vários diálogos de Cipriano com o chefe do departamento de compras no Centro, como o que segue:

“A decisão tomada foi positiva para uma primeira fase,
Ah, muito obrigado, senhor, mas tenho que lhe pedir que me explique isso da primeira fase,
Significa que iremos fazer uma encomenda experimental de duzentas figuras de cada modelo e que a possibilidade de novas encomendas dependerá obviamente do modo como os clientes receberem o produto,
Não sei como lhe poderei agradecer,
Para o Centro, senhor Algor, o melhor agradecimento está na satisfação dos nossos clientes, se eles estão satisfeitos, isto é, se compram e continuam a comprar, nós também o estaremos, veja o que sucedeu com a sua louça, deixaram de se interessar por ela, e, como o produto, ao contrário do que tem sucedido em algumas ocasiões, não valia o trabalho e a despesa de os convencer de que estavam em erro, demos por terminada a nossa relação comercial, é muito simples, como vê,
Sim senhor, é muito simples, oxalá estes bonecos de agora não venham a ter a mesma sorte,
Tê-la-ão mais tarde ou mais cedo, como tudo na vida, o que deixou de ter serventia deita-se fora,

Incluindo as pessoas,
Exactamente, incluindo as pessoas, eu próprio serei atirado fora quando já não servir,
O senhor é um chefe,
Sou um chefe, de facto, mas só para aqueles que estão abaixo de mim, acima há outros juízes,
O Centro não é um tribunal,
Engana-se, é um tribunal, e não conheço outro mais implacável,
Na verdade, senhor, não sei por que gasta o seu precioso tempo a falar destes assuntos com um oleiro sem importância,
[…]
A razão é que há coisas que só podem ser ditas para baixo,
E eu estou em baixo,
Não fui eu quem lá o pôs mas está,
Ao menos ainda tenho essa utilidade, mas se a sua carreira progredir, como certamente sucederá, muitos mais irão ficar abaixo de si,
Se tal acontecer, o senhor Cipriano Algor, para mim tornar-se-á invisível,
Como o senhor disse há pouco, é assim a vida,
É assim a vida, mas por enquanto ainda sou eu quem lhe vai assinar a encomenda, …”

Aqui se espelha a relação de poder do “Centro” para com todos os Ciprianos, mas também as relações de pequeno poder, dos seus ‘capatazes’ que insignificantes em si próprios, são o braço do desprezo, da humilhação dos seus iguais.

A história de Cipriano Algor, Marta ou Marçal Gacho, poderia ser a história de tantos e tantos pequenos produtores, pequenas e médias empresas, de tantos e tantos trabalhadores com que, hoje mesmo, em qualquer parte do nosso país, nos poderíamos cruzar.

O “Centro” é uma alegoria do Capitalismo, que tudo explora, inclusive a própria exploração, como se plasma no final da obra, onde as seis figuras mortas, três homens e três mulheres, descobertas nas profundezas do centro, amarradas, sentadas na rocha, mumificadas, são “vendidas” como personagens da Caverna de Platão.

Marcante, é o reconhecimento, por Cipriano, Marta e Marçal, e por aqueles que se cruzam com tais figuras, de que são elas próprias, somos nós próprios, que ali estamos. Presos, amarrados, inutilizados, mumificados, descartáveis, formatados, por um capitalismo que procura por todas as formas manter oprimida uma ampla maioria, subjugada, despidos de direitos. É a evidência e auto percepção da exploração do capitalismo, o móbil para que estas personagens se emancipem, ganhem consciência, de classe diríamos, condição essencial para romper com o rumo que se lhes impõe, para escapar ao “Centro”, e tomar em suas próprias mãos o seu futuro.

Aí está, pois, como a visão marxista com que Saramago vê e interpreta o mundo, se revela no caminho da toma de consciência que permita romper com a exploração do homem pelo homem, escapando à “Caverna” que nos oprime.

E já estamos no terceiro século!

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