Intervenção de Modesto Navarro, Escritor, Conferência «Uma visão universal e progressista da História - A actualidade da Obra de José Saramago»

José Saramago - resistente antifascista, intelectual de Abril e militante do PCP

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Num tempo de tanta pequenês e violência fascista a querer dominar o país surge essa figura impressionante a apoiar a candidatura de Norton de Matos em 1949 e a perder o emprego, o trabalho, em consequência de uma lucidez que iria ser decisiva e transfiguradora.

Veio de longe, criança, e viveu em ruas antigas de Lisboa, na pobreza e na resistência diária. Estudou e, numa casa sem livros, foi à procura desse desencadear de saberes e de consciência, de capacidades conquistadas a par e passo, na biblioteca Galveias, nos livros que encontrava ou lhe davam, depois na escola Gil Vicente e nessa escola de profissões, a Damião de Góis, onde ainda ensinavam filosofia e outras matérias humanizantes e impulsionadoras.

Quando conheci José Saramago ele trabalhava na editora Estúdios Cor e colaborava no jornal A Capital, com crónicas que viriam a formar o livro “Deste Mundo e do Outro”, publicado em 1971.

Mas ainda estávamos em Abril de 1968 e nesse dia realizou-se uma manifestação junto à embaixada dos Estados Unidos da América, contra a guerra no Vietnam.

Coragem, juventude, muita juventude, e, no meio daquilo e da violência da polícia e da PIDE, um cão-polícia ferrava o pé de um jovem que nem sequer olhava para o cão e para o polícia e seguia em frente, no desprezo pela dor que, com certeza, o dilacerava.

No fascismo desse tempo não havia lugar para cobardias, face ao imperialismo dominante. Os que se calavam e faziam pela carreirinha eram mesmo isso e toda a gente interessada e esclarecida sabia o que significavam. Na grandeza e na pobreza de espírito cresciam exemplos como Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, Maria Lamas, José Gomes Ferreira, Soeiro Pereira Gomes, António Alves Redol, Urbano Tavares Rodrigues, Alexandre Cabral, Augusto da Costa Dias, Matilde Rosa Araújo e tantos outros intelectuais conscientes e interventivos.

Na década de 1960/70, José Saramago escreveu e publicou poesia, foi crítico literário na Seara Nova e, a certa altura, em circunstâncias difíceis, apoiou e incentivou jovens escritores e jornalistas. Em 1968, foi companheiro e amigo na publicação de um livro que prefaciou e me ajudou na opção de onde o editar. Nessa noite de um jantar com editores, Rui Moura e Viriato Camilo, convidou-me a tomar um café na Brasileira. Entrámos e saímos sem encontrar uma cadeira que fosse, uma mesa livre, para continuarmos a conversar. Encaminhámo-nos para a Praça Luís de Camões e foi ali que ele me disse aquela frase irónica de quem conhecia o mundo de Lisboa e sabia da sua grandeza aparente:

  • Não temos lugar na Brasileira.

Em 1969, Augusto da Costa Dias propôs a José Saramago que entrasse como militante no Partido Comunista Português. Nesse mesmo ano, perante as eleições para a Assembleia Nacional que iriam realizar-se, um ex-ministro de Salazar, Adriano Moreira, sugeriu a Marcelo Caetano uma forma de dividir a oposição democrática, face à unidade crescente entre o PCP e católicos progressistas que lutavam contra a guerra colonial. Foi então que surgiu a força unitária CDE, Comissões Democráticas Eleitorais, integrando comunistas, católicos progressistas e outros democratas, e depois a CEUD, Comissão Eleitoral de Unidade Democrática, de republicanos e futuros socialistas que seguiam a consigna de “em África não se toca”, vinda da primeira república e da maçonaria.

Na CDE formou-se uma Comissão de Escritores onde reuniam Alexandre Babo, Manuel da Fonseca, Orlando da Costa, José Saramago, Urbano Tavares Rodrigues e muitos outros intelectuais. Destas dezenas de antifascistas militantes partiu a vontade corajosa de constituir uma associação que substituísse a Sociedade Portuguesa de Escritores, atacada e destruída por pides e legionários, às ordens de Salazar, após a atribuição de um prémio ao livro “Luuanda”, de Luandino Vieira, militante e combatente do MPLA então preso no Tarrafal, numa situação em que membros do júri tinham sido presos e torturados.

José Gomes Ferreira presidiu à primeira Direcção da Associação Portuguesa de Escritores, de que tive a honra de ser o mais novo dos dezasseis fundadores. Ali e noutras frentes, José Saramago continuou a lutar, assumiu a responsabilidade de uma célula que integrava António Areosa Feio, engenheiro, Figueiredo Filipe, jornalista e sindicalista, e que passou a integrar-me, por proposta de José Saramago e Areosa Feio, em Março de 1971, nos cinquenta anos de vida e luta do PCP.

Para além do apoio e incentivos a jovens escritores, José Saramago dava especial atenção a iniciativas culturais, nomeadamente em colectividades e outras associações, incentivando a criação de bibliotecas populares, como aconteceu, por exemplo, na Academia Verdi, em Lisboa, que em 1971 tinha já mais de oitocentos livros e que foi apreendida por uma brigada da PIDE. A Academia foi encerrada aos sócios, nessa noite em que ia realizar-se uma sessão de teatro, com uma peça abordando a guerra colonial, e a comissão de cultura foi expulsa da colectividade por ordem do governo civil do Marchueta e da PIDE.

Membros dessa comissão expulsa foram para outra colectividade da zona, o Imparcial, na rua Maria Pia, e ali trabalharam, na resistência, na acção cultural e associativa, no incentivo à leitura, no teatro e outras actividades, até ao 25 de Abril e depois; cumpriam uma das orientações da CDE em 1969, de ir para os sindicatos e colectividade populares; os associados tinham o apoio de um médico, Manuel Souto Teixeira, e as crianças que estudavam na escola primária apenas uma parte do dia tinham o acompanhamento de dirigentes e associados nas instalações da colectividade.

Era um tempo marcado pela intervenção cultural de José Afonso e Adriano Correia de Oliveira, por homens e mulheres da escrita e de outras artes, da criação de uma Comissão de Defesa da Liberdade de Expressão em que Saramago se empenhava, com Maria Isabel Barreno, António Borges Coutinho e outros resistentes. A nossa actividade integrava a reflexão e a acção política sobre o papel dos trabalhadores no acesso ao conhecimento e à cultura interveniente e libertadora. José Saramago apresentou mais tarde uma comunicação ao III Congresso da Oposição Democrática, realizado em Aveiro em 1973, que sintetizava o que era fundamental e resultava de experiências erguidas também em cooperativas culturais que vendiam livros e discos e foram encerradas em 1972, por um decreto-lei de Gonçalves Rapazote, ministro do interior do governo de Marcelo Caetano.

Era já o tempo em que militares do quadro e milicianos lutavam, nos quartéis e nas frentes da Guiné, Angola e Moçambique, por uma solução decisiva numa guerra devastadora. Cerca de 10.000 mortos nas tropas portuguesas, mais 30.000 estropiados, eram as contas que se faziam e que ultrapassaram diferenças e aproximaram militares e civis contra o fascismo, a guerra colonial e a miséria em que o país se encontrava.

Em anos decisivos, na luta clandestina e semi-legal, onde era possível e construindo o que parecia tão longe de conseguir, ergueu-se esse dia luminoso e libertador, em 25 de Abril de 1974, e depois, nos tempos impressionantes de intervenção popular, de trabalhadores organizados e aliados das forças armadas revolucionárias, o MFA.

Ao lado deles estiveram homens e mulheres das letras e das artes; esteve José Gomes Ferreira, amigo e camarada de dois operários da Reforma Agrária assassinados, Casquinha e Caravela; esteve José Saramago nessas terras dos sonhos realizados na conquista das oito horas de trabalho e na procura de um novo país no meio da memória de mortes mais antigas, na revolução nos campos, nas empresas, no poder local democrático, nesses anos e anos de combates e resistências que ainda hoje iluminam as frentes de luta que continuam a exigir o nosso empenho e entrega maior.

No Levantado do Chão do nosso encantamento esteve sempre José Saramago, na resistência e combate à reacção da direita às ideias e valores que defendia na prática política no PCP e nas suas obras, no trabalho criador que abriu novos caminhos à literatura, livro a livro, sem qualquer cedência à indústria da alienação e da ignorância, antes exigindo mais exatidão e rigor, maior elevação e procura dos que lutavam e lutam pelo saber, conhecimento e cultura para serem livres e transformadores da realidade que enfrentamos.

A direita e a extrema-direita aí estiveram na perseguição a esse livro “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, pela mão de um sub-secretário de estado boçal e provocador, a mando de Santana Lopes e este a mando de Cavaco Silva, numa tríade miserável da ideologia dominante e suas tentativas para o silenciar. Não conseguiram, nem esses nem outros que ainda se picam nos bicos de uma Casa em Lisboa que tem o seu nome, num largo que ainda tem mais o seu nome e o seu exemplo de camarada comunista na batalha ideológica e libertadora da cultura e da arte.

De um operário sempre, de um menino vindo com dois anos para Lisboa, de uma origem que era pobre e valiosa em princípios e força de viver, ergueu-se um homem que é honra e prestígio da nossa literatura e da literatura mundial, de um Partido Comunista Portugês que o assume, que resolve dificuldades, que levanta iniciativa a iniciativa, em todo o país, para dizer que aqui estamos com José Saramago e os seus livros, a sua obra e a sua determinação de ser intelectual de Abril, de ter sido exemplar e resistente contra o fascismo, de ser militante comunista até ao fim da sua vida. Para assim continuarmos a enfrentar o que aí está de destruidor e que nos desafia a ir mais longe, nas conquistas da liberdade ameaçada e de um futuro diferente e transformador.

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