Intervenção de Vasco Cardoso, Membro da Comissão Política do Comité Central do PCP, Sessão Pública «Salário, preço e lucro – Uma questão actual»

Voltar ao «Salário, preço e lucro» não é andar 150 anos para trás, é usar Marx para melhor compreender a realidade actual e agir para a transformar

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Boa tarde camaradas e amigos

1. Não há dia que passe sem que se evidenciem as contradições e limites do capitalismo, a sua natureza exploradora, opressora, agressiva e predadora, e a sua crise estrutural, que se expressam de forma abrangente na evolução da situação do País e do planeta. 

2. O capitalismo não só se revela incapaz de responder aos principais problemas da humanidade, como  os promove e agrava. O desemprego e a precariedade, a pobreza, a fome, a subnutrição, a negação de cuidados de saúde e protecção social, o trabalho infantil, o trabalho escravo, o drama que assola milhões de deslocados, refugiados ou migrantes, o tráfico de seres humanos, o comércio de órgãos humanos, a exploração de seres humanos para fins sexuais, tudo isto demonstra a natureza desumana e criminosa deste sistema e a necessidade da sua superação.

3. As últimas décadas têm sido marcadas pela acumulação de elementos tendentes à estagnação e recessão económicas, nomeadamente nas grandes potências capitalistas, e à sucessão de picos de crise, em intervalos mais curtos e de intensidade variável, que têm origem na sobreacumulação e financeirização, intrínsecas ao sistema capitalista, e no contexto da sua crise estrutural.

4. Um capitalismo que se transformou e adaptou em muitos aspectos, mas que conservou e desenvolveu a sua natureza e que atingiu a sua fase superior, ainda mais perigosa, a fase imperialista com o que isso comporta de objectivos de dominação do mundo ao serviço das classes dominantes, com o rasto de destruição e guerra que marcou todo o século XX e que hoje está igualmente presente na escalada de confrontação, guerra e sanções, que marca a situação internacional, incluindo no plano económico, como iremos discutir ao longo desta tarde.

5. Não seria, por isso, preciso vivermos um período de elevada inflacção para o PCP promover mais uma iniciativa sobre a obra de Marx. Mas ela aí está, a corroer diariamente salários e pensões, a devorar o poder de compra de milhões de trabalhadores, de reformados e outras camadas laboriosas sobre os quais recaem níveis de exploração insuportáveis e a conviver com a acumulação de lucros de enorme dimensão por parte dos grupos económicos e multinacionais.

6. Voltar ao “Salário, preço e lucro”, como hoje aqui se propõe, não é andar 150 anos para trás, é usar a teoria, os conceitos e os ensinamentos de Marx para melhor compreender a realidade actual e agir para a transformar. 

7. A inflacção que atinge Portugal, bem como o fundamental das economias dos países capitalistas mais desenvolvidos, é uma manifestação de contradições do sistema capitalista. Reflecte, neste caso concreto, o desfasamento entre uma oferta ainda não totalmente restabelecida no período pós-pandemia, e que foi agravado pelas perturbações induzidas pelos impactos da intensificação da guerra na Ucrânia, pela escalada de sanções e a cada vez mais indisfarçavel “guerra económica” contra a China. Com o grau actual de interdependência económica e financeira à escala global, uma restrição substancial da oferta de algumas mercadorias, especialmente de mercadorias fundamentais (petróleo, gás, metais diversos, cereais), que entram como meios de produção na produção de outras mercadorias ao longo das cadeias produtivas, ou são mesmo bens essenciais de consumo directo, é suscepível de ter o efeito de agravamento geral dos preços. É isso que no fundamental tem estado a acontecer. 

8. No entanto, em torno da inflacção desenvolve-se hoje um intenso debate ideológico. Não para identificar as opções necessárias à diminuição dos seus impactos junto dos trabalhadores e das camadas populares, ou mesmo, do combate às suas causas, mas para procurar justificar a contenção dos salários e a sua desvalorização, ao mesmo tempo que se deixam os lucros intocáveis, particularmente em alguns sectores como os da energia, banca ou grande distribuição, que engordaram significativamente.

9. Comecemos então pelos salários, cujo aumento é apresentado erradamente como factor de agravamento dos preços, quando não, do próprio desemprego. O capital não tem dúvidas que o seu objectivo estratégico é (de sempre) a contenção, e se possível a redução, dos salários captando mais sobretrabalho. Ora aumentando a mais-valia absoluta (alargando a jornada de trabalho) ora aumentando a mais valia relativa (pelo aumento da produtividade). Sempre buscando a maximização da taxa de lucro e combatendo qualquer interrupção do ciclo de acumulação do capital.

10. Mas contrariamente à tese que tende a apresentar o aumento dos salários como indutor da inflacção o que aqui queremos afirmar é que os preços das mercadorias não precisam de subir, com a subida dos salários, se os lucros descerem. Como escreve Marx “o aumento geral na taxa de salários, após uma perturbação temporária dos preços de mercado, resultaria apenas numa queda geral na taxa de lucro, sem qualquer mudança permanente no preço das mercadorias”. 

11. Percebe-se a mistificação produzida pelo pensamento dominante, empenhado em limitar salários e esconder os lucros escandalosos que têm sido realizados nestes meses de agravamento brutal do custo de vida.  

12. Mas vamos aos lucros. Esse objectivo em torno do qual todo o sistema capitalista se move e, por isso mesmo, algo que jamais poderá ser posto em causa. Vejam-se os pedagógicos, por vezes enraivecidos, editoriais contra quem contesta, por exemplo, os 1 718 milhões de euros de dividendos que o Sr. Zara do Grupo Inditex recebeu, e sobre os quais, a jornalista do JN a 31OUT22 dizia: «É muito fácil cair em clivagens demagógicas quando se trata de dinheiro. Não há nada de imoral ou ilegítimo em ter ou ganhar muito dinheiro de forma honesta. O problema não é os ricos estarem mais ricos, é os pobres estarem mais miseráveis e a dita classe média a agoniar com o garrote dos impostos e a escalada dos preços e dos juros». Extraordinário! Para a jornalista não há qualquer relação entre a concentração da riqueza nuns poucos e o crescimento da pobreza em milhões! Já sobre os lucros escandalosos da GALP (e outros grupos): esses lucros «são sempre vistos como o pote do mel do urso gorducho mas preguiçoso» («É melhor o insucesso», escreve o Expresso a 28OUT22. Falar alguém de «lucros excessivos», «lucros extraordinários», «lucros excedentários», «lucros caídos do céu (windfall)» causa, «dano de imagem inaceitável» às empresas ( diz o Público a 22DEZ22). 

13. A traço grosso podemos afirmar que da riqueza, do valor produzido pelo trabalhador, uma parte destina-se a pagar a mercadoria força de trabalho, o que designamos por salário, a outra a para o lucro. Esta é a essência de muitas lutas e combates ao longo de anos. Os que lutam por melhores salários, os que procuram assegurar o máximo de lucros à custa da desvalorização dos primeiros. 

Camaradas e amigos

14. O que parece claro no surto inflaccionista que surgiu em 2021, na fase terminal da pandemia e antes da guerra da Ucrânia, para além da sua origem nas dificuldades na reposição da oferta, é o seu forte e descarado aproveitamento por grupos económicos monopolista e oligopolistas, produtores e fornecedores de bens essenciais, com forte poder de mercado (abuso de posição dominante e abuso da dependência económica de outras agentes do mercado), para fazerem crescer margens comerciais e mesmo praticarem preços especulativos. Como temos dito, para além da inflacção, os trabalhadores e o povo português, enfrentam também o aproveitamento que o grande capital está a fazer da inflacção. 

15. A receita que está em cima da mesa é contenção salarial, contenção do investimento, a começar pelo investimento público como faz o Governo PS e aumento das taxas de juro. Mas combater a inflação pela contenção salarial é um contra-senso económico porque nada evidencia que a origem desta esteja relacionado com o aumento da procura. E é igualmente um absurdo social por agudizar e aprofundar as injustiças e desigualdades. E quase se pode dizer o mesmo perante a actuação dos bancos centrais, apostados que estão em travar a inflacção por via do aumento das taxas de juro. Já se viu que são uma óptima receita para empolar os lucros bancários, mas com toda a certeza uma factor recessivo sem igual, num contexto de economias endividadas em todos os quadrantes: empresas, famílias e administrações públicas! 

16. Será de dar atenção às insuspeitas palavras (julgo eu) de Stiglitz, conselheiro de presidentes nos EUA, Prémio Nobel, keynesiano de bom senso na sua crítica fundamentada aos que acham que o «combate à inflação requer dor económica»:«A inflação de hoje é, em grande parte, impulsionada pela escassez de oferta que, em parte já está em processo de resolução. Portanto aumentar taxas de juro pode ser contraproducente. Não produzirá mais alimentos, petróleo ou gás, mas dificultará a mobilização de investimentos que ajudariam a aliviar a escassez da oferta. A restrição monetária também pode levar a uma desaceleração global. Na verdade, esse resultado é altamente antecipado e alguns comentadores, tendo-se convencido de que o combate à inflação requer dor económica, têm efectivamente aplaudido a recessão. Quanto mais rápida e profunda melhor, argumentam. Parecem não ter considerado que a cura pode ser pior que a doença.». É o que se pode ler num artigo no DN de 29ABR23, com o premonitório título: «O caminho para o fascismo»! 

Camaradas

17. Em Portugal com a Revolução do 25 de Abril e as suas conquistas, plasmadas no fundamental na CRP, foram criados poderosos obstáculos à exploração desenfreada dos trabalhadores e outras camadas trabalhadoras, e dos países e povos coloniais. 

18. A contra-revolução capitalista e imperialista levada a cabo por sucessivos governos do PS, PSD e CDS traduziu-se em revisões constitucionais e numa contra-revolução legislativa, traduzidas, entre outras e graves vertentes, numa continuada, sistemática e profunda alteração da legislação laboral, visando um mercado da força de trabalho liberalizado. A adesão à CEE (depois UE) e à moeda única/Euro foram razões para acentuar ainda mais todo o processo de liberalização do mercado da Força de Trabalho. 

19. Os resultados das políticas salariais e laborais levadas a cabo ao longo de mais de 4 décadas estão bem patentes nos generalizados baixos níveis salariais, responsáveis por uma massa crescente de emigrantes, mesmo altamente qualificados, por uma crise demográfica sem precedentes, por baixos níveis de produtividade do tecido económico. Políticas, que particularmente pela gestão restritiva do nível do SMN e manutenção de elevadas percentagens de precariedade, são responsáveis pelo facto de 20% dos portugueses estarem no limiar da pobreza e, vergonha maior, responsáveis por 11,6% dos trabalhadores portugueses viverem na pobreza!

20. A degradação acelerada do peso dos salários no PIB desde o 25 de Abril, após o salto em 1974 e 1975 com a criação do SMN e os resultados das lutas então travadas, só atenuada entre 2016 e 2020, é o espelho claro do que aconteceu. 

21. A situação só não é mais grave e escandalosa porque há um movimento sindical de classe e fortes e persistentes lutas de classe a travar a ganância nas quais temos estado e vamos continuar a estar empenhados.

22. A luta pelo aumento dos salários, requer também a necessidade de conhecer e compreender melhor a realidade, sistematizar argumentos, desmontar mitos, fazer contas, apontar linhas de intervenção que reforcem a confiança dos trabalhadores e das suas organizações, que abram perspectivas a muitos investigadores, académicos, jornalistas, democratas e patriotas que recusam o pensamento único, que não se conformam com as injustiças e desigualdades, que querem ver o seu País avançar. 

23. No texto Salário, Preço e Lucro, Marx tira 3 conclusões: 1) uma subida geral nas taxa dos salários resultaria numa queda da taxa geral de lucro, mas não afectaria os preços das mercadorias; 2) a tendência geral da produção capitalista não é para elevar, mas para afundar o nível médio dos salários; 3) os sindicatos funcionam bem como centros de resistência contra as investidas do capital – degradação dos salários e condições de trabalho, mas fracassarão («fracassam geralmente») se se limitarem a uma guerra de guerrilha contra os efeitos do sistema capitalista – é preciso ir mais longe: «usarem as suas forças organizadas como uma alavanca para a emancipação final da classe operária, isto é, para a abolição do sistema de salários», ou seja, para superarem o capitalismo, superarem uma sociedade baseada na exploração do homem pelo homem. Numa velha linguagem falaríamos da necessidade de combinar a luta económica e a luta política.

Estas são pistas para um debate que não será um ponto de chegada mas sim, mais um momento, para aprofundar a nossa reflexão e reforçar a nossa luta.

  • Economia e Aparelho Produtivo