Projecto de Lei N.º 116/XIII/1.ª

Impede a mercantilização do abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos sólidos urbanos

Impede a mercantilização do abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos sólidos urbanos

Exposição de motivos

Os serviços de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos sólidos urbanos, doravante designados por serviços de águas e resíduos, foram desde 1976 a 1993 uma responsabilidade exclusiva da administração local do Estado, sendo a sua gestão controlada por órgãos democraticamente eleitos e orientada para a prestação de um serviço público.

O reconhecimento de que a prestação dos serviços de proximidade, entre os quais os serviços de águas e resíduos, se inseria num movimento geral de democratização da sociedade portuguesa é realizado, fundamentalmente, com a publicação de três diplomas: a Lei de Delimitação dos Setores, em julho de 1977, que vedava a empresas privadas e a outras entidades da mesma natureza o acesso à captação, tratamento e distribuição de água para consumo público através de redes fixas; a Lei n.º 79/77 de 25 de outubro, que definia as atribuições das autarquias e as competências dos respetivos órgãos, procedendo ao reforço da autonomia do poder local democrático; e da Lei n.º 1/79 de 2 de janeiro, Lei das Finanças Locais. Reconhecia-se, igualmente, que o envolvimento dos cidadãos nas questões que lhes dizem respeito contribui para o enriquecimento da democracia.

A partir de 1993, os diversos governos aprovaram, ao longo dos anos, legislação que foi criando as condições para a privatização do setor, numa lógica de apropriação privada gradual dos serviços de águas e resíduos.

Em 1993, com o Decreto-Lei n.º 372/93, de 29 de outubro, o Governo PSD/Cavaco Silva alterou a Lei de Delimitação dos Setores, abrindo aos privados, sob a forma de concessão, a captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, a recolha, tratamento e rejeição de águas residuais urbanas, e a recolha e tratamento de resíduos sólidos urbanos.

Apenas uma semana depois, através do Decreto-Lei n.º 379/93, de 5 de novembro, o mesmo Governo do PSD – que, na realidade, apenas pretendia criar mais uma área de negócio para os grandes interesses privados – consagrou o regime legal de gestão e exploração dos sistemas de abastecimento de água e de saneamento de águas residuais, criando os sistemas multimunicipais do Sotavento Algarvio, Barlavento Algarvio, Área da Grande Lisboa, Norte da Área do Grande Porto e Sul da Área do Grande Porto. Os utilizadores - os municípios, no caso de sistemas multimunicipais, ou qualquer pessoa singular ou coletiva, no caso da distribuição direta integrada em sistemas multimunicipais – foram obrigados a ligarem-se a estes sistemas.

Posteriormente, o Decreto-Lei n.º 319/94, de 24 de dezembro, regulamentou o regime jurídico da concessão da construção, exploração e gestão dos sistemas multimunicipais de captação, tratamento e abastecimento de água, enquanto o correspondente regime jurídico para a recolha, tratamento e rejeição de efluentes foi regulamentado pelo Decreto-Lei n.º 162/96, de 4 de setembro.

Em 1995, o Governo PSD deu mais um passo no sentido da entrega dos serviços de águas e resíduos aos privados, com o Decreto-Lei n.º 147/95, de 21 de junho, que regulamentava o regime jurídico da concessão dos sistemas municipais de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, de recolha, tratamento e rejeição de efluentes e de recolha e tratamento de resíduos sólidos. Este diploma determinava, em particular, que o concedente público se comprometia a promover a reposição do equilíbrio económico-financeiro do contrato de concessão. Desta forma, abriu-se a porta para que ao concessionário privado fosse sempre garantida, quaisquer que fossem as circunstâncias, uma elevada taxa de rendibilidade.

A abertura dos serviços de águas e resíduos aos privados através de concessões foi confirmada pela Lei n.º 88-A/97, de 25 de julho, que revogou a Lei de Delimitação do Setores de 1977.

Depois disso, procedeu-se à revisão do regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos sólidos urbanos, através do Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20 de agosto. Este diploma - que descreve ao pormenor a figura de concessão - determina, em particular, que a organização dos sistemas deve privilegiar a maximização de economias de escala e de economias de gama, assim como a integração vertical.

Os principais marcos legislativos, descritos sucintamente nos parágrafos anteriores, abriram caminho, desde 1993, à gradual entrada dos privados na gestão e exploração dos serviços de águas e resíduos. O número de câmaras municipais que geriam diretamente ou através de serviços municipalizados os sistemas de abastecimento de água em “baixa” foi decrescendo, enquanto o número de empresas públicas ou municipais e concessões ia aumentando. Em 2009, o modelo de gestão concessionada representava 8,8% das entidades gestoras e abrangia quase 18% da população. No saneamento de águas residuais verificou-se uma evolução semelhante, representando as concessões 6,3% das entidades gestoras e abrangendo 14,1% da população. Ao longo dos anos, muitos municípios foram ainda empurrados para a entrega dos serviços em “alta” a sistemas multimunicipais controlados pelo grupo Águas de Portugal. Em 2006, este grupo disponibilizava água a 200 municípios e tratava os efluentes de 186 municípios.

O anterior Governo, suportado por PSD e CDS-PP, teve sempre como objetivo acelerar o processo de entrega dos serviços de águas e resíduos aos privados, fundindo os sistemas multimunicipais e neles integrando os sistemas em “baixa” para, ato contínuo, os concessionar ou subconcessionar aos grandes grupos económicos nacionais e internacionais que atuam neste setor. Embora fosse sempre negado, tal processo representou e representa, na prática, a privatização dos serviços de águas e resíduos, colocando nas mãos dos privados mais um setor estratégico da economia nacional. Neste negócio – porque de um negócio efetivamente se trata –, os privados, sem terem que assumir quaisquer riscos, obtêm elevadas taxas de rendibilidade garantidas por via do esforço do Estado e dos consumidores. Sem dúvida que este seria um excelente negócio para os grandes grupos privados que operam no setor, mas um negócio ruinoso para o Estado e para os portugueses.

Com o Decreto-Lei nº 92/2013, de 11 de julho, o Governo do PSD-CDS-/PP criou as condições legislativas para a concretização dos seus objetivos privatizadores.

PSD e CDS foram ainda mais longe com a fusão dos sistemas multimunicipais em mega sistemas multimunicipais, com o argumento de maior eficiência, cuja concretização ocorreu em 2015, com a criação dos Sistemas Multimunicipais de Abastecimento de Água e de Saneamento do Norte, do Centro Litoral e de Lisboa e Vale do Tejo, mesmo contra a vontade dos municípios, dos trabalhadores e das populações. Contudo, o real objetivo foi sempre o de entregar a exploração e gestão destes sistemas multimunicipais aos grandes interesses privados, sem risco e com a perspetiva da obtenção do máximo lucro.

A privatização ou concessão dos serviços de abastecimento de água e saneamento de águas residuais, bem como dos serviços de tratamento de resíduos sólidos urbanos, provocam a degradação da qualidade dos serviços e agravam as assimetrias no acesso aos serviços, principalmente através do aumento dos preços para satisfação dos lucros das empresas concessionárias.

Convém recordar que, de entre os Estados-Membros da União Europeia, os serviços de água são exclusivamente públicos na Dinamarca, Irlanda, Luxemburgo, Holanda e Áustria. Na Holanda, para garantir que essa situação não se alteraria, o Parlamento aprovou em novembro de 2004 uma lei que veda ao sector privado o acesso aos serviços de abastecimento de água. Depois de uma onda de privatizações nos anos noventa, a tendência predominante e crescente desde 2003 tem sido a remunicipalização, por imposição das populações.

Foi tornado público que “Nos últimos 15 anos houve pelo menos 180 casos de remunicipalização em 35 países, tanto do Norte como do Sul, incluindo casos de alto perfil na Europa, Américas, Ásia e África. Exemplo de grandes cidades que remunicipalizaram são Accra (Ghana), Berlim (Alemanha), Buenos Aires (Argentina), Budapest (Hungria), Kuala Lumpur (Malásia), La Paz (Bolívia), Maputo (Moçambique) e Paris (França).” As remunicipalizações avançaram porque se verificou que a gestão privada dos serviços de água conduziu à degradação da qualidade do serviço público, à dificuldade em monitorizar os privados, à falta de transparência, à falta de investimento nas infraestruturas, ao aumento de custos operacionais e ao aumento das tarifas, à destruição de postos de trabalho e à retirada de direitos aos trabalhadores e à degradação ambiental.

O PCP entende que estes serviços devem ser política e democraticamente controlados, sujeitos ao interesse público e às necessidades do País.

Considerando que a água é um bem essencial que deve ser gerido unicamente por organismos públicos, na ótica de um serviço público e não na ótica de obtenção de lucro; rejeitando a visão mercantilista e economicista, da qual só resultará o agravamento dos preços dos serviços de águas e resíduos, assim como a deterioração da qualidade destes serviços; considerando que a água é um recurso fundamental para o desenvolvimento do País, os Deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do PCP apresentam, nos termos constitucionais e regimentais aplicáveis, o seguinte Projeto de Lei:

Artigo 1.º
Da garantia da gestão pública da água e resíduos urbanos

É vedado a empresas privadas e a outras entidades da mesma natureza o acesso às atividades económicas de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos.

Artigo 2.º
Das concessões

1 - A proibição do acesso da iniciativa privada às atividades referidas no artigo anterior engloba a concessão ou subconcessão da gestão e exploração de sistemas municipais e multimunicipais e impede a apropriação por essas entidades privadas dos bens de produção e meios afetos às atividades aí consideradas.
2 - As atuais concessões ou subconcessões, com a participação de entidades privadas, não poderão ser prorrogadas nem renovadas, devendo as entidades titulares dos serviços promover as necessárias diligências para a sua progressiva reversão para o setor público, atentos a prossecução do interesse público e os conteúdos contratuais.

Artigo 3.º
Da delegação dos serviços em empresas do sector empresarial local

1 - A proibição do acesso da iniciativa privada às atividades referidas no artigo 1.º engloba a participação de capitais privados no capital de empresas municipais delegatárias e impede a respetiva exploração e gestão.
2 - As atuais delegações dos serviços, com a participação de entidades privadas, não poderão ser prorrogadas nem renovadas, devendo as entidades delegantes dos serviços promover as necessárias diligências para a sua progressiva reversão para o setor público, atentos a prossecução do interesse público e os conteúdos contratuais.
3 – Fica igualmente vedado às empresas delegatárias de serviços intermunicipais a concessão de parte dos serviços nelas delegados a entidades privadas aplicando-se, às concessões em vigor, com as devidas adaptações, o previsto número anterior.

Artigo 4.º
Norma revogatória

São revogadas todas as normas legais que contrariem o disposto no presente diploma.

Artigo 5.º
Entrada em vigor

A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.

Assembleia da República, em 29 de janeiro de 2016

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